quarta-feira, 18 de maio de 2022

A insustentável leveza do sax de Paul Desmond

Por Edmilson Siqueira 

"Acho que, no fundo, eu queria soar como um martini seco". 

"Sou o saxofonista do quarteto de Dave Brubeck. Você pode me distinguir porque, quando não estou tocando - o que acontece com surpreendente frequência - fico encostado no piano." 


Assim Paul Desmond, o compositor de "Take Five" e, claro, saxofonista do quarteto de Dave Brubeck por 17 anos, se definiu em duas ocasiões, com um humor típico de Woody Allen. A citação de "Take Five" se faz necessária porque o disco onde ela foi gravada foi o primeiro álbum instrumental a ultrapassar o milhão de cópias vendidas. 


Paul Desmond nasceu em San Francisco, em novembro de 1924. Seu pai era organista e arranjador e tocou em cinemas na época dos filmes mudos. Seu sobrenome era outro. Desmond, disse ele, encontrou numa prosaica lista telefônica. 


O disco que estou sugerindo desse grande saxofonista é "Late Lament", gravado entre setembro e outubro de 1961, sendo que uma faixa extra colocada apenas no CD ("Imagination") foi gravada em março de 1962. 

O texto do encarte, escrito por Roberto Muggiati, aborda um pouco mais o sucesso "Take Five", embora essa música não esteja no disco. Serve, claro, para definir o gênio de Paul Desmond e também seu ótimo senso de humor, próprio de sua privilegiada inteligência. Diz Muggiati: "Na verdade, a composição em 5/4 (o tempo rítmico de 'Take Five'), é uma demonstração da impressionante capacidade que Desmond tinha de suingar nos ritmos mais estranhos ao jazz, como o da valsa, o da bossa nova e os da tradição oriental. Às vezes Paul oferecia outra explicação para 'Take Five'. Fumante compulsivo, ele dizia que concebeu o tema para que, durante o solo de bateria, tivesse um tempinho para umas tragadas." Paul morreu de câncer do pulmão, em 1977).  


Gravado com uma orquestra de cordas, o disco percorre um caminho aberto por Charlie Parker que, à época, andou entortando o nariz dos mais puristas do jazz. Só que Charlie transformou o chamado "white strings" num espaço novo e criativo do jazz. Coisa de gênio, claro. 


Trata-se, aqui, de um disco romântico, com um repertório bem a gosto de Paul Desmond. Há clássicos como "My Funny Valentine" e "Body and Soul" e outros menos conhecidos como "I Should Care", I'll Wind" e "Like Someone in Love". 


Muggiati, no texto do encarte, define bem o disco: "Aqui e ali, nos solos e nos arranjos, uns toques elisabetanos ou barrocos - tudo soma para enriquecer a sofisticada atmosfera que cerca Paul Desmond neste álbum cheio de amor e serenidade." 

Em outro trecho que merecer ser lido, Muggiati conta que "certa vez, perguntado onde se encaixava entre a abordagem vertical, ou harmônica, e a abordagem horizontal, ou melódica, Paul Desmond respondeu: 'Acho que vocês poderiam me chamar de diagonal'.  


Assim, diagonalmente, diz Muggiati, "vamos sorver os 43 minutos e 3 segundos de Paul Desmond com todo o sabor cool de um martini seco. E sentir a insustentável leveza do sax". 

terça-feira, 17 de maio de 2022

Ao Geraldo Azevedo

Por Ronaldo Faria

“Quem tem amor, pode rir ou chorar”. 

Vem me amar e me achar, na beira-mar. Vem correr nos segredos e degredos da vida. Vem se descobrir semente a brotar. Senão, seja feito demente a se debulhar de carícias e sevícias – onde tiver que estar. No meio de tudo, a insidiosa senhora a transpirar saudades e versos mil. Na filigrana que existe entre a alegria e a tristeza, um grama a mais. E uma vastidão imensa de crenças e descrenças, saudades inauditas, verdades desditas. Canções a voar pelos ouvidos, unções a cobrirem as feridas, ações a se espelharem em espelhos incrustrados em tetos e se espalharem pelos corpos utópicos transversos em músculos e tetas. Na madrugada suada e sem nexo, perplexo o poeta vê-se amplexo a acreditar em tudo e crer no sexo. Nesse pouco que há, haverá por quê?

Vem me perder e ser, no nosso além-mar. Vem viver em degredo de futuro, em segredo permanente na semente morta do augúrio. Vem saber onde andar e se ater. Senão, seja somente um descrente sem verso ou repente – onde a fotografia se mistura à antropofagia de morrer no eterno querer. No meio de tudo, tubérculos e amplexos desejos. No quase nada que existe entre o passado benfazejo e o desejo terminal. Como versos a escreverem blasfêmias para as fêmeas que se deitam tropicais aos marinheiros quase animais. Na noite que já morreu, deletérios sonhos de amor. Um náufrago maltrapilho e bêbado a suar com os raios de sol que teimam em dizer-lhe que o além, num porto qualquer, o reencontrou. E se desvaneceu de paixão, tesão e remissão.

Vem me antever, me descrer, no oceano a se fazer dragar e se drogar em tempos de verão. No prato a queimar no fogo, frango e estragão, na infinda sensação. No fim de tudo, cheiros mil, fome saciada, saudade amarga, brincadeira desfeita de estrelas e drama. No meio de tudo, a trama. A torrente de areias e ondas no labirinto de outra história. Degredo aqui, segredo ali. No meio de tudo, um mar sem começo e sem fim. Talvez um alvoroço rouco e destrambelhado que vem e vai, um desvão nas notas da canção que caem. Uma cachoeira banida das pedras que deixa seus pingos descaírem incrédulos e imensos, em incensos, nos credos sobre amantes fechados no quadrado e achados e perdidos num balcão qualquer. Ao longe, um mendigo delicia-se à colher.

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Karen Souza, uma grata surpresa

Por Edmilson Siqueira 

Quando você bota pra rodar o CD de Karen Souza sem nunca ter ouvido falar da moça (o que ocorreu comigo), surgem várias dúvidas. Pelo nome e principalmente pelo sobrenome poderia ser uma brasileira. Pela música, jazz essencialmente, ela seria norte-americana. Pela produção do CD, muito bem cuidada, com belas fotos, poderia ser famosa. Aí você vai no Google e descobre que Karen Souza é argentina, que ela começou com outro tipo de música e só depois foi seduzida pelo jazz. Essa sedução provocou um retiro na Califórnia onde sua alma de compositora aflorou. E daí foi concebido o disco "Hotel Souza", uma joia na voz ‘caliente’ e macia de Karen Souza.


Para não dizer que jamais a tinha ouvido, descobri que ela é uma das cantoras que fizeram a série Bossa n' Stones, com as músicas dos Rolling Stones cantadas em ritmo de bossa nova. Tenho os dois CDs da série, mas o nome dela aparece em apenas uma das músicas, embora tudo leve a crer que ela canta em todas ou quase todas elas.  

Segundo a pequena biografia publicada no Google, Karen "começou sua carreira sob vários pseudônimos e colaborando com diversos produtores de música eletrônica, chegando a fazer parte de numerosos sucessos de música House, pelo seu selo Music Brokers, tais como as versões da Radiohead, "Creep", bem como "Do You Really Want to Hurt Me" e "Personal Jesus". Estes trabalhos foram editados originalmente numa série chamada Jazz and 80s. Foi durantes esta época que Karen começou a amar o Jazz e começou a fazer composições para o seu próprio álbum. 


Em 2010 ela passou vários meses em Los Angeles escrevendo canções com a letrista Pamela Oland e gravando os vocais com o produtor da Disney, Joel McNeely. O disco "Hotel Souza" foi lançado em setembro de 2012. 


Pois é esse disco que eu encontrei por aí (não me lembro onde comprei) e que sugiro pra quem gosta de um jazz intimista, num disco muito bem-produzido e com umas pegadas de Diana Krall.  

São 11 faixas, a maioria de autoria dela mesma, em parceira com Dani Tomas e Pamela Oland ou Joel MacxNeely e Maxima Pera Renauld. Mas há também dois standards jazzísticos: "My Foolish Heart" (Ned Washington e Victor Young) e a maravilhosa “Dindi”, do nosso Tom Jobim, na versão em inglês de Day Gilbert.


O CD está à venda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido integralmente no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=YWbrfwha_wU 

sábado, 14 de maio de 2022

Quincy Jones e os primórdios da bossa nova

 Por Edmilson Siqueira 

"A adaptação da bossa nova a uma grande banda de jazz era obviamente a tarefa de Quincy Jones." 


Assim começa um texto escrito por Gene Lees para o disco "Quincy Jones Bossa Nova Big Band". Só que a "tarefa" de Quincy Jones, em 1962, ano de lançamento do disco, não foi tão fácil. Disse ele sobre a tarefa:  "O maior problema foi orquestrar o ritmo, para que fosse compatível com a música que se desenrolava sobre ele." 


Essa dificuldade de Quincy é uma das razões pelas quais a bossa nova estourou nos Estados Unidos. O norte-americano, acostumado a um ritmo mais "certinho" de suas baladas, rocks e do próprio jazz, não conseguia entender direito como uma batida "atravessada" se casava tão perfeitamente à música que se ouvia. Claro que a excelência das melodias ajudou bastante, mas a batida, aquela que João Gilberto transferiu do tamborim maneiro para as cordas do violão, intrigou e conquistou o público norte-americano. Prova disso tudo é que na famosa noite do Carneggie Hall, nesse mesmo ano de 1962, muitos jazzistas famosos estavam na plateia, para entender "ao vivo" o que era aquela música com uma batida diferente que já os havia conquistado. 


O disco que Quincy Jones produziu e que chamou de "bossa nova" é um ótimo exemplo de que, em 1962, os músicos americanos ainda estavam tentando entender a nova música brasileira. Tanto que adaptá-la para uma grande orquestra acaba sendo tarefa ingrata. A bossa nova, com sua economia de instrumentos, seu cantar intimista e seu balanço contido, não se sente à vontade numa orquestra cheia de metais e com uma sessão rítmica acentuada. Assim, o disco acaba se parecendo mais com um disco de samba ao qual foram inseridos alguns temas da bossa nova.  


Mas não se trata de um disco ruim, longe disso. Quincy Jones já era, em 1962, um grande produtor e tinha grandes músicos na sua orquestra. Ele próprio escreveu o tema que abre o disco, "Soul Bossa Nova", uma música que até hoje é tocada em rádios da Europa. 


Mas nos primórdios da bossa nova nos Estados Unidos, ainda havia uma confusão geral sobre ela, tanto que o texto de Gene Lees afirma num dos seus parágrafos: "Bossa Nova - que significa 'nova onda', 'nova voz' ou 'nova coisa', representa uma revolução contra o tradicional samba. Ritmicamente, é muito mais sutil e fluída que o samba, mas não menos agitada. E tem uma sensação que pode ser melhor descrita como movimento controlado. Embora permaneça ritmicamente estável, como o jazz, tem uma sensação constante de propulsão para a frente. É tocada, para usar a frase de um músico, muito em cima da batida." 


Como se vê, havia um esforço para o entendimento da bossa nova, colocando-a inclusive como um movimento contra o samba, quando na verdade, o que a moçada da zona sul carioca estava fazendo era apenas "um sambinha", sem movimento algum contra o samba tradicional.  

Quincy Jones fez um disco que representa o modo como se concebia a bossa nova que ainda engatinhava pelas terras do Tio Sam. Fosse feito dez anos depois, tenho certeza que ele já teria aprendido as lições de Jobim no disco de Frank Sinatra e faria algo completamente diferente, já que talento jamais lhe faltou. 

Mas, apesar dos senões em relação à bossa nova, trata-se de um disco gostoso de ouvir. Basta não dar muita atenção para os arroubos dos metais ou para as sessões rítmicas um tanto exageradas para a bossa nova ou quando elas parecem mais acompanhar um bolero que um "sambinha". 

Presságio natalino

 Por Ronaldo Faria O Natal corre brejeiro e cheio de cheiros, madrigal. Se esconde nas cercanias de casarios perdidos no tempo ao vento qu...