quinta-feira, 26 de maio de 2022

Bituca, 80

Por Edmilson Siqueira 


Milton Nascimento está fazendo 80 anos e realizando o que ele chama de sua última turnê pelos palcos do mundo. Numa das chamadas para o show publicada no YouTube, ele diz, humildemente, que todo mundo o conhece por Bituca.  


Conheci música pela primeira vez, num festival da Globo, o FIC, em 1967. Ele nem queria inscrevê-la, avesso que era à competição dos festivais. Quem o fez foi seu amigo Agostinho dos Santos. E não só Travessia, que ganhou letra de Fernando Brant. Inscreveu mais duas de Milton - Maria, Minha Fé e Morro Velho - e as três foram classificadas para a apresentação. Travessia ficou em segundo lugar no festival, perdendo para Margarida, de Guarabira.  


Mas o nome Milton Nascimento já era conhecido no mundo musical, pois um ano antes Elis Regina gravara Canção do Sal. Essas três músicas, mais Travessia, obviamente, estariam no primeiro LP de Milton, lançado naquele mesmo ano. Travessia, o nome do LP, hoje é cultuado e foi vendido no mundo inteiro. Mas era apenas o começo de uma das mais brilhantes trajetórias de um artista brasileiro. 



Milton nasceu no Rio, mas foi adotado por um casal mineiro bem cedo e foi em Minas que ele cresceu e foi exemplarmente educado por seus pais adotivos que Milton, claro, jamais os chamou de adotivos. Diz ele sempre que é o mais mineiro dos cariocas.  


Hoje, 47 discos depois, uma penca de sucessos mundiais - Travessia ganhou letra em inglês e tem dezenas de gravações no exterior, gravou com grandes nomes da música nacional e internacional, ganhou cinco Grammys e, com sua turma do Clube da Esquina, colocou a música produzida em Minas no centro de tudo - Milton anuncia o fim dos shows. Não vai mais cantar em público, pois a voz não é mais a mesma e a saúde anda debilitada. Pudera: são mais de 60 anos na estrada, como ele mesmo gosta de falar.  



Em 2001 estive pela primeira e única vez até hoje, em Londres. Visitei a lendária Tower Records, quatro andares só de discos (já eram CDs) no centro da capital inglesa. Claro que fiquei meio abobalhado lá dentro, nem sabia aonde ir, mas subi para o terceiro andar atraído por uma palavrinha mágica: jazz. Centenas de prateleiras com todo o jazz do mundo. Mas, numa prateleira de três sessões, um título me deixou orgulhoso: "Brazilian Music – Bossa Nova". 

E, se esse título me deixou orgulhoso, outro que vi ali perto, encimando uma prateleira solitária, quase me levou às lágrimas: Milton Nascimento Songs. Sim, havia centenas de estantes de jazz, três da MPB e Bossa Nova e uma, que não se classificava em nada deste mundo, dedicada apenas e tão somente à música de Milton. Jazz, MPB, Bossa Nova? Não! Milton Nascimento! Uma espécie de música universal que saía daquelas cabeças mineiras que ele tão bem representava e ganhava o mundo, enchendo-o de prazer e assombro.  


Depois de Travessia, Elis, nossa maior cantora, virou fã da música de Milton e acabou por popularizar de vez sua obra, que também ganhava interpretações de outros cantores e cantoras, num reconhecimento da qualidade que poucos artistas tiveram no Brasil. 

Em 1972, já consagrado, Milton se junta ao seu amigo Lô Borges e outros com quem se reunia em Minas e lança o LP Clube da Esquina. A produção era tamanha que foram precisos dois LPs na mesma capa para conter as 21 músicas gravada. Do disco participaram nomes que também teriam carreiras consagradas no Brasil e até no exterior: Ronaldo Bastos, Fernando Brandt, Márcio Borges, Beto Guedes, Tavito, Wagner Tiso, Toninho Horta, Robertinho Silva, Paulo Moura, Eumir Deodato, Luiz Alves, Nelson Angelo, Rubinho e Gonzaguinha (fazendo back vocal numa faixa). 


Não me lembro se foi ainda em 72 ou no ano seguinte, que assisti no extinto Cine Carlos Gomes, em Campinas, a um show de Milton, promovendo exatamente o Clube da Esquina.  O que ficou na lembrança - e sempre ficava quando se ouvia suas músicas - foi, além da beleza melódica, aquela voz límpida, metálica e suave ao mesmo tempo, sem paralelo na MPB e que tanto encantava a quem ouvia, fosse em disco ou pessoalmente. 


O Clube da Esquina fez tanto sucesso e a turma era tão produtiva que, em 1978, se reuniram novamente e gravaram mais um, também duplo como o primeiro, com mais 23 músicas e com uma participação maior ainda de artistas já consagrados, como Elis Regina, o grupo Boca Livre, Chico Buarque, o grupo Azimuth e outros.   

 


O fim das apresentações de Milton nos palcos não é o fim de sua carreira artística. Ele ainda compõe e talvez esteja até escrevendo mais alguma coisa. Talvez possa até gravar um disco para nos encantar novamente. 

Seja lá como for, esse artigo, que foge aos parâmetros que me propus nesse blog, é para saudar um dos nossos mais geniais compositores de música. Não vou recomendar qualquer disco de Milton. Compre qualquer um, de olhos fechados. Bote pra rodar seja lá qual for a mídia escolhida. E ouça. Pode fechar os olhos e sonhar. Foi isso que Milton fez a vida toda: nos transmitiu um sonho em forma de música que nos deixou mais felizes.  


Obrigado, Bituca! 

Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...