sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Elza, a voz se fez eterna

Por Ronaldo Faria

Ela viveu 91 anos, mas foi como ter vivido centenas deles, pela intensidade de como a sua vida se deu. Tenho todos os discos dela e, ao saber ontem da sua morte, no mesmo dia que faleceu o seu maior amor, Mané Garrincha, o gênio das pernas tortas, há 39 anos, não tive dúvidas: guardei o agradecimento a Vinicius de Moraes e São Sebastião, padroeiro carioca que teve seu dia ontem também, e vim agradecer a Elza Soares por ela ter existido. Foi difícil escolher de qual disco falar. Por mim, falaria de todos, mas há um espaço gráfico a se respeitar. Assim, decidi por dois: Se Acaso Você Chegasse, de 1960, seu primeiro, e Deus é Mulher, de 2018, que virou um marco para mim. 

Em Se Acaso Você Chegasse, a música que dá nome ao vinil é do grande Lupicínio Rodrigues. Nela, Elza joga pela primeira vez num bolachão o falsete que a acompanharia na carreira. Ela mostra neste álbum que surgia para ser uma rainha do samba. Uma voz para marcar o ritmo e fazê-lo ganhar espaço e importância. Nesse disco inicial há também outro clássico – Mulata Assanhada, do não menor Ataulfo Alves, onde ela repete o falsete. Ao todo, são doze canções que compõem o vinil. Nele, a nova cantora era apresentada, num subtítulo, como “A Bossa-Negra”, talvez em contraponto à Bossa Nova em voga.  Não tive este disco em mãos por dois motivos: quando ele saiu, eu ainda não tinha completado os três anos e, como disse na apresentação do blog, nunca tive um vinil (repito aqui que por ter aderido às fitas cassete e depois migrado para o CD, não por não aceitar a qualidade dessa mídia).

Se Acaso Você Chegasse traz, além das duas músicas citadas, Casa de Turfista Cavalo de Pau, Era Bom, Samba em Copa (com falsete), Dedo Duro, Teleco-Teco nº2, Contas, Sal e Pimenta, Cartão de Visita, Nego Tu Nego Vós Nego Você e Não Quero Mais. É um disco curto. A música mais longa tem dois minutos e trinta e oito segundos (Samba em Copa). A mais curta, Não Quero Mais, bate no único minuto e 54 segundos. Quer dizer, sambas curtos, com arranjos simples e a voz incrível da cantora que menos de dois anos depois desse vinil, em 1962, conheceria o Mané Garrincha, craque da futura Copa que dedicaria o título mundial e o coração a ela. Enfim, uma mulher nascida em 1930, no hoje bairro de Padre Miguel, na favela da Vila Vintém, e que gravou apenas quase 30 anos depois.

De lá pra depois, tragédias e perda de quatro filhos (entre eles, Garrinchinha, aos nove anos de idade, num acidente de carro), carreira em ascensão e queda, perseguição de muitos que diziam que ela teria destruído o casamento do craque (apesar dela ter segurado a onda do alcoolismo crônico do eterno camisa 7 do Botafogo e da Seleção). Uma vida onde a trégua pouco aparecia.

Enfim, vale destacar outro disco, como disse: Deus é Mulher, que surgiu 38 anos depois de sua estreia fonográfica. Nele, há onze músicas. São elas: O Que se Cala, Exu nas Escolas, Banho, Eu Quero Comer Você, Língua Solta, Hienas na TV, Clareza, Um Olho Aberto, Credo, Dentro de Cada Um e Deus Há de Ser. Com a participação de Edgar e Ilú Obá de Min em duas faixas, este CD é um soco no estômago daqueles que há quase quatro décadas queriam reduzir Elza Soares a uma caixa de repeniques, tamborins e surdos. Neste CD a música mais curta tem quase um minuto a mais que a mais longa da sua estreia. 

Nele, do alto dos quase 90 anos, Elza explicitou uma força musical plena, com um som rítmico que mostra que a música negra tem mil visões e formas de expressão. Arranjos incríveis e trabalhados, bem diferentes do vinil etéreo e puro inicial da sua carreira. Afinal, ela já não era mais somente uma sambista a mais. Já era, há muito, uma deusa da MPB, um ícone no mundo musical, reconhecida e admirada dentro e fora do Brasil. Na faixa Eu Quero Comer Você, talvez a multiplicidade que ela assumiu em ser plural (que ela já havia mostrado três anos antes em A Mulher do Fim do Mundo) e intérprete no novo tempo. Impossível não amar este disco. Impossível não amar Elza Soares – um ser que se fez volátil para sobreviver àquilo que a vida lhe impôs. 

Uma guerreira sem par. Que lutou com unhas e dentes, garras e força contra tudo, quase todos e o destino, e venceu. Ontem, nos deixou com uma voz que ninguém teve ou terá. Que só melhorou com o passar dos anos. Agora ela irá repousar, rever seu grande amor e filhos. Agora, irá soar no céu a voz que nunca morrerá. Que os anjos e santos a recebam com aplausos e homenagens mil. Afinal, a mulher dentro dela saiu de dentro de casa, ganhou o mundo e hoje é do universo.
 
É possível ouvir esses discos no Spotify, no Deezer e no Amazon Music, além de diversos sites.

No https://pt.wikipedia.org/wiki/Elza_Soares, um pouco dessa mulher infinita.

Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...