segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

O Mestre no instrumental

Por Ronaldo Faria

Eu idolatro Angenor de Oliveira por ele ser mangueirense e fundador da Verde e Rosa ou eu idolatro a Mangueira por ela ser berço de Angenor de Oliveira e tantos mais? Eis a questão. Até hoje não fechei essa equação. Mas Cartola, assim como Nelson Sargento, Carlos Cachaça e Jamelão, entre tantos outros, são um momento à parte deste mundo chamado Samba, pelo qual sou um apaixonado. Este ano, aliás, se houver Carnaval no Sambódromo, ele, Jamelão e Delegado (mestre-sala maior da escola) serão os homenageados, com justa razão.

Mas Cartola, razão deste texto, é um daqueles casos onde o destino esqueceu e depois lembrou, para as bênçãos da música, que existia e produzia obras-primas do samba. Do Bloco dos Arengueiros que seria a essência para fundação da Verde e Rosa em 1928, Cartola teve sambas gravados na década de 1930 por nomes como Araci de Almeida (musa de Noel Rosa), Carmem Miranda (nossa embaixadora nos Estados Unidos), Sílvio Caldas (o eterno seresteiro), Francisco Alves (Chico Viola ou Rei da Voz) e Mário Reis (o Bacharel do Samba). Contudo, apenas aos 66 anos, em 1974, ele foi a um estúdio gravar o primeiro daquele que daria espaço a mais três discos, até a sua morte em 1980, aos 72 anos.

Mas eu não vou discorrer aqui sobre nenhum desses quatro discos do Mestre Cartola. Mas falarei noutros textos, deles e de outros em sua homenagem, como um do Arranco de Varsóvia. Vou ficar aqui em um que surgiu em 2008 – o Chora Cartola. Esse é um CD instrumental com 15 canções do Mestre em forma de samba/choro ou choro/samba. À exceção da última faixa “A Canção Que Chegou”, todas são um discorrer de notas e harmonias musicais com Carlos Malta (flautas e sax), Marcello Gonçalves (violão de sete cordas), Joel Nascimento (bandolim), Paulo Sérgio Santos (clarinete), Beto Cazes (percussão) e Rildo Hora (gaita). Na derradeira música, a voz de Moyseis Marques. E há outros músicos esporádicos e convidados em algumas faixas.

Na verdade, este CD mostra que o samba de Cartola é de uma profusão de tal beleza que nas mãos de solistas incríveis se enche ainda mais de ternura e musicalidade. Esse é um disco que merece ser ouvido num final de tarde, numa noite de lua, numa madrugada de brisa fresca, numa manhã de sol a brilhar. Enfim, a toda a hora. Tem as clássicas “As Rosas Não Falam”, “Alvorada”, “Tempos Idos”, “O Sol Nascerá”, “Acontece”, “O Mundo É Um Moinho” e “Divina Dama”, entre outras canções que se eternizaram no mundo sonoro da MPB. Como toda a obra de Angenor de Oliveira, este CD é lirismo e samba da melhor qualidade. Logo, que este ano a Mangueira possa homenageá-lo no Sambódromo, ou não, se a pandemia impedir. E se impedir, falhará no seu intento. Afinal, Cartola vive hoje e eternamente em cada acorde que o coração faz pulsar. E isso nenhum vírus vai matar.

Ps.: este disco você encontra no Spotify.
Para ouvir um pouco do Mestre (150 músicas): https://www.ouvirmusica.com.br/cartola/

A Piaf brasileira no palco

 Por Ronaldo Faria

Como escolher algo de Abigail Izquierdo Ferreira para escrever? Dos tantos discos, qual? Difícil escolha. Por isso decidi partir para um dos dois DVDs que tenho dela. Mas qual? Histórias e Canções ou Canta Piaf? Resolvi optar pele segundo, gravado ao vivo no Teatro Maison de France, no Rio de Janeiro, em janeiro de 2004. Nele, se junta a grande Edith Piaf e a não menos menor Bibi Ferreira. Atriz desde os 20 dias de vida, quando estreou nos palcos, Bibi tem uma trajetória incrível e premiada no teatro e na música. Para quem quiser saber mais sobre ela é importante acessar o http://portais.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes/acervo/atores-do-brasil/biografia-de-bibi-ferreira/. Lá há um pouco da sua trajetória. Morta em 13 de fevereiro de 2019, aos 96 anos, Bibi nunca deixou de produzir e subir aos palcos para emocionar com a sua voz.

Neste DVD há um pouco da história de Edith Piaf, contada pela própria Bibi e por um mestre de cerimônias, Nilson Raman. E há muito da artista francesa para ser dito. Ela que foi talvez a maior cantora do universo parisiense e afins. Mas não cabe a mim discorrer sobre ela. Não sou um crítico contumaz, que sabe até quando a figura descrita deu o primeiro espirro. Assim como não serei um conhecedor pleno de Bibi Ferreira. Ela está bem acima daquilo que poderia escrever ou descrever. Mas ouvir e ver o show com ela é invadir um universo múltiplo.

Algumas músicas ela traduziu para o português e as cantou assim.  Declamou, como em Bravo Pour le Clown. Mostrou que unir música e teatro fazem do palco uma grande encenação que raros podem ou sabem dominar. Bibi sabia como poucos. Acompanhada de orquestra e coro, faz dos quase 50 minutos de espetáculo um marco de poesia e emoção. Envolve-se nas canções, as interpreta e não apenas as coloca na voz. Expressa talvez como Piaf a dor de cada melodia. E tudo com um brilhantismo só de Bibi. Nas 16 canções, um mundo à parte, de cafés, bordeis, ruas, vielas, noites, bares, amores, sensações plenas de dor e vida. Um mundo que Piaf viveu e conviveu, sofreu e descortinou, perdeu entre copos e drogas, mas eternizou na voz e encantamento que apenas poucos conseguem expressar.

Bibi a mostrou neste show de forma lírica e conclusiva. Ela, que foi a maior intérprete da francesa em terras tupiniquins, traz o épico La Vie en Rose como um eterno grito de paixão. Ao fim, sob os aplausos da plateia em pé, onde a nossa acadêmica imortal Fernanda Montenegro também estava, fecha com chave de ouro o espetáculo com a interpretação de Non, Je Ne Regrette Rien. Enfim, uma aula de Piaf, um grito de poesia, uma declaração de permanência daquilo que a arte tem de maior. Em tempo: esse espetáculo também foi apresentado em Paris e Nova York com igual entrega do público.

Aqui, um pequeno exemplo de Bibi/Piaf no medley que ela fez em Histórias e Canções: ​https://www.youtube.com/watch?v=gVD0A5kD_zs
Ps.: este disco você encontra no Spotify.


Thelonious, "The Genius"

 Por Edmilson Siqueira

Na apresentação que fiz no blog, escrevi que um disco do Thelonius Monk, comprado na loja Raposa Vermelha, de Campinas, fez minha cabeça em relação ao jazz. Agora, relembrando mais um pouco os meus primórdios do Jazz, lembrei-me que não foi um disco apenas que comprei lá. Houve um segundo que havia me fugido da memória, afinal, já se passaram mais de 40 anos. Remexendo na discoteca, quando bati os olhos nos jazzistas que começam por "C", deparei com uma fieira de Charles Mingus, o que me remeteu ao texto de apresentação. Havia um LP de Mingus também na minha iniciação jazzística. Lembrei-me até do nome, embora ele não esteja mais comigo, nem em CD: "Three or Four Shades of Blues". Era mais uma fusão entre blues e jazz, mas que serviu para que eu conhecesse um universo musical que já vinha me paquerando em alguns filmes há um bom tempo. Trios de jazz e orquestras que apareciam em filmes norte-americanos eram, muitas vezes, minha parte preferida no filme.

Feita a correção, resolvi dar uma ouvida acurada em "The Genius", título dado a um disco de Thelonious Monk que comprei na primeira e única visita que fiz à lendária Tower Records de Londres (que não existe mais) em 2001. Tinha 50 libras para comprar CDs, acabei gastando 100 e saí de lá olhando pra trás, com vontade de voltar e gastar o que eu não tinha. Era um andar inteiro (dos quatro do prédio) só de jazz. Eu me lembro de ter visto uma seção só de Brazilian Music, onde reinava absoluta a bossa nova e uma estante ao lado, só com "Milton Nascimento" e quejandos. Deduzi que não conseguiram enquadrar o nosso grande Milton e a turma do Clube da Esquina em gênero algum...

Esse CD de Monk é uma coletânea e, pelo título que foi dado, pode-se imaginar o tamanho de sua fama, bem-merecida, aliás. Ela foi produzida com as músicas de dois LPs gravados na Blue Note em 1951 e 1956 reunidas em 1989 e depois também lançadas em CD na série Giants of Jazz. 

Logo de cara, o grande sucesso de Monk, "Round Midnight" que ele compôs em 1944 e até hoje é regravada. Diz a Wikipedia sobre a música: "'Round Midnight" rapidamente se tornou um padrão do jazz e foi gravada por uma grande variedade de artistas. Uma versão gravada pelo quinteto de Monk foi adicionada ao Grammy Hall of Fame em 1993. É um dos standards de jazz mais gravados composto por um músico de jazz.

E a genialidade do "The Genius" se faz notar por todas as 21 faixas do CD, sendo 14 dele e as restantes de outros compositores, exceto uma, fruto de uma parceria entre Monk e K. Clark. Embora as gravações já tenham entre 60 e 70 anos, a qualidade é muito boa. Como eram também os participantes dos conjuntos, com destaque para Art Blakey na bateria, que viria a se tornar um bandleader dos grandes, Milt Jackson (vibrafone), Billy Smith (sax tenor), Danny Quebec West (sax alto) que tinha 17 anos à época, Shadow Wilson (bateria), Gene Ramey (baixo), o cantor Kenny "Pancho" Hagood, que comparece em duas faixas e o ótimo trompetista Idrees Sulieman.

Os discos foram considerados à época como "jazz moderno" devido às inovações apresentadas, hoje totalmente normais em qualquer grupo de jazz que se preze. Thelonious não era bem-visto pela crítica, que entortava o nariz tanto à sua postura ao piano (ele tocava bem curvado) quanto aos improvisos, executados com pouquíssimas notas, porém certeiras. 

Seu estilo foi confundido com o bepop no princípio, mas com o passar do tempo ele adquiriu um jeito próprio de tocar e compor, tanto que algumas criações suas viraram standards do jazz, como "Epistrophy", "'Round Midnight", "Blue Monk", "Straight No Chaser" e "Well, You Needn't", das quais, as duas primeiras podem ser conferidas aqui. 

Esse CD em particular, não encontrei disponível no YouTube, mas no link abaixo, estão várias das músicas do "The Genius" além de outras mais. 
https://www.youtube.com/watch?v=NYj61DQzaQs&list=PLBZmD4G_qXo68jkEOw5a18qujtuiTB_zA

Bromélias, mar e Bossa Nova

 Por Ronaldo Faria

Roberto Menescal é um compositor por quem eu tenho admiração profunda. Ou, como ele se mostra no seu site (https://www.robertomenescal.com.br) um instrumentista, compositor, cantor e produtor. Em boa parte, claro, por ter sido um dos caras da Bossa Nova. E como carioca e amante da música, sou bossa-novista convicto. Sei que pode ser retrô, vintage, coisa de velho, parado no tempo etc. Mas, num tempo onde o futuro já perde há muito para o passado, reminiscências valem muito. Ainda mais quando se remete ao Rio de Janeiro que era certamente uma cidade maravilhosa, solar, abençoada pela natureza, com uma gente que não tinha perdido a essência de viver e sonhar. Aonde a música nova chegava para encerrar a melancolia de dores mil e amores perdidos e traídos. 

Enfim, o que escolher do Menescal?  Minha opção foi o CD/DVD de 2017 gravado para um especial do Canal Brasil, em comemoração aos seus 80 anos. Uma raridade que inclui um time pra lá de incrível. O elenco musical que o acompanha em 17 músicas não tem como deixar de reverenciar: Marcos Nimrichter, Wanda Sá, Jorge Vercillo, Quarteto Do Rio, Luiz Pié, Paulinho Moska, Zélia Duncan, Marcos Valle, Zé Renato, Ney Matogrosso, Danilo Caymmi, Cris Delanno, Lenine, Verônica Sabino, Joyce Moreno, Leila Pinheiro, Fernanda Takai e Leny Andrade. Sem dúvida, são 80 minutos de voltar no tempo, misturar lembranças e “cantanças”. De descobrir que vale a pena ter saudade.

Cada música é antecedida por uma explicação sobre ela. Assim é possível ouvir histórias do Ronaldo Bôscoli e seus amores que viravam composição para tentar salvar a barra com as amadas. Histórias das pescarias em Cabo Frio com a turma da Bossa Nova, onde um barco com problema a deriva acabou virando O Barquinho. Da noite devorando a beleza do entardecer solar a se transformar em Nós e o Mar. Um pouco da Nara Leão, musa da Bossa Nova, responsável por juntar a patota no seu apartamento e que roubou o coração na infância do Menescal e depois do Bôscoli. Aliás, ela foi a responsável por arrancar Menescal dos escritórios da PolyGram para devolvê-lo à música depois de 15 anos sem gravar ou tocar. Para cuidar de Nara, com câncer, ele optou por comprar um violão novo e retomar a vida de estrada.

Enfim, o documento dos 80 anos desse instrumentista, compositor, cantor e produtor é, sem dúvida, um libelo para os ouvidos. Como aqui é um espaço para mostrar a paixão pela música, independente das mil críticas, certamente muito mais elaboradas, que já saíram sobre este CD/DVD, vale mostrar meu agradecimento à Bossa Nova por ter ela existido. Certamente quem visitou seus acordes e viveu no Rio antes da perda da sua alma brejeira, sabe que há vida inteligente no planeta – excluindo críticas daqueles que acham que essa é uma expressão pueril de um povo da Zona Sul. Mas, cada um com seu cada qual.

Por fim, um final engraçado. Onde Menescal conta que uma repórter de tevê linda, de seus 22 anos, vai à sua casa fazer uma reportagem sobre bromélias. Ele tem como hobby o cultivo de bromélias. Sempre perguntando se estava bem arrumada nas passagens, ao fim a repórter resolveu dizer que tinha uma surpresa. Que ela queria saber que, se além de cultivar bromélias, ele tinha algum hobby. Para espanto da mocinha, ele falou que gostava de música e fazia música. Surpresa, ela fechou a reportagem dizendo que seu entrevistado, além de cultivar plantas, era músico. Logo, se você quiser ouvir um pouco desse “bromelista”, segue a dica: https://www.ouvirmusica.com.br/roberto-menescal

Azul da Rosa

 Por Edmilson Siqueira

Ela já foi considerada uma espécie de João Gilberto de saia tal a qualidade que imprime em suas interpretações. Mas Rosa Passos não se intimida com tamanha consideração: segue seu rumo fazendo história dentro da MPB como uma de suas mais singulares intérpretes aqui no Brasil e em vários palcos do mundo, como o Carnegie Hall, onde fez um concerto solo para americanos e a Blue Note, lendária casa de jazz de New York.

Sua discografia é vasta e nela se destacam tanto composições de grandes nomes como trabalhos um tanto quanto desconhecidos e também uma lavra própria de alta qualidade. Suas composições serão objeto de um artigo aqui, com certeza, mas hoje quero botar o foco nas belas e sensíveis interpretações de alguns dos nossos grandes compositores reunidos num só disco.

O disco se chama Azul, nome de uma das músicas de Djavan, que está presente em cinco das treze faixas. Foi produzido pela gravadora Velas e lançado em 2002. Os outros compositores premiados com a interpretação de Rosa Passos são Gilberto Gil e João Bosco com Aldir Blanc, Capinam e Abel Silva.

Desse seleto grupo da mais fina MPB, Rosa selecionou joias que fizeram sucesso e outras desconhecidas do grande público apesar da qualidade de seus autores. A novidade aqui é o estilo e a voz da cantora, que veste nova roupagem em cada uma das músicas escolhidas e dão a elas uma digna sobrevida nas vitrolas (cd players, né?) do mundo. 

“Desenho de Giz” abre o disco e Rosa não economiza alguns agudos que normalmente não fazem parte de suas interpretações sempre comedidas e exatas. O bolero de João Bosco e Abel Silva com referências a “Molambo”, ganha arranjo de cordas e sopro de Proveta que embelezam a melodia. 

Djavan, o mais reproduzido no disco, aparece na segunda faixa com o sucesso “Samurai”. Rosa optou por um balanço mais marcado que a gravação do autor. A seção rítmica, com bateria e percussão, no arranjo de Lula Galvão, se destaca durante toda a música e com os metais dando um colorido especial ao conjunto. 

A terceira faixa é de Djavan também - “Aliás” - e nela Rosa assume uma interpretação mais intimista como exige a canção de amor que é entremeada por um belo improviso de guitarra de Marcus Teixeira.

O arranjo de Proveta se destaca também na quarta faixa, “Papel Marché” que o próprio João Bosco gravou com grande sucesso. A letra de Abel Silva, um achado, ganha mais delicadeza na voz de Rosa e o belo arranjo de flugelhorn de Walmir Gil completam um quadro sonoro delicioso de ouvir.

Gilberto Gil chega na voz de Rosa com uma das suas mais antigas composições e que causou certa estranheza à época, não pela música em si, um gostoso samba, mas pela temática, já que Gil, um baiano recém-chegado ao Sul, enveredou por um tema carioquíssimo. E claro, se saiu muito bem com “Mancada”, escrita em 1966. Rosa se mantém fiel à gravação de Gil, sem maiores arroubos, passeando pela melodia com a tranquilidade normal de grande intérprete que é.

E Gil continua na voz de Rosa na faixa seguinte com “Ladeira da Preguiça”, um samba cheio de balanço, de difícil interpretação. Claro que Rosa se sai bem na missão, complicada talvez pelo fato de a música ter sido gravada por Elis Regina numa interpretação exuberante. Mas Rosa não parece se inibir e bota sua marca na música que só tem a ganhar com mais essa gravação. 

Na faixa que dá título ao disco - “Azul” - com arranjo de Lula Galvão, ganha destaque a seção de metais, vibrante e em contraponto com a voz de Rosa, comedida, sem maiores firulas, dando luz própria ao sucesso de Djavan.

João Bosco e Abel Silva são os autores de “Quando o Amor Acontece” e Rosa canta a música como se fosse uma velha conhecida dela, com a “sofrência” dos belos versos e sem cair na armadilha de querer imitar a gravação de João Bosco. Rosa sabe das coisas. 

Nas músicas seguintes “Açaí” e “A Ilha”, ambas de Djavan, Rosa continua a nos mostrar seu belo timbre vocal, principalmente na segunda, um jazz abrasileirado, numa bela letra do autor, até fugindo um pouco dos devaneios poéticos que lhe deram fama. 

Uma música pouco conhecida de Gilberto Gil - “Mar de Copacabana”, de 1983, recebe de Rosa uma delicada interpretação e a seguinte é outro desafio, pois ela traz “Dois Pra Lá, Dois Pra Cá”, de João Bosco e Aldir Blanc, também gravado por Elis Regina e que até hoje frequenta as boas rádios do Brasil. Rosa registra sua interpretação sem maiores problemas, brincando no final com o mesmo bolero que Elis introduziu, acrescentando alguns scats que dão mais brilho ao final do sucesso da dupla.

“Amor Até o Fim”, outra antiga de Gil (1971) encerra os trabalhos dessa intérprete única da MPB. Um samba de Gil que serve a várias divisões vocais que só os grandes conseguem fazer sem perder o ritmo e solidez da interpretação. 

Enfim, Rosa nos mostra nesse disco porque é considerada, com justiça, um pouco acima da maioria das cantoras brasileiras e admirada aqui e no exterior.  

O link para ouvir Azul de Rosa Passos: https://www.youtube.com/watch?v=THdcd9nPQVg

Um Céu de música

 Por Ronaldo Faria

Conheci o Céu da Boca ainda na PUC do Rio. O grupo foi formado em 1979. Na sua composição inicial, Paula MorelenbaumMaucha AdnetMárcia RuizVerônica SabinoRosa LoboPaulo MalaguttiPaulo BrandãoChico AdnetRonald Valle e Dalmo Medeiros. O Malagutti, o Paulinho Pauleira, estudava na minha turma de Comunicação. Entramos em 1978 na PUC. Ele na época estava também, como a quase totalidade do Céu da Boca, na ProArte, no Rio. Depois de dois anos de faculdade, desistiu do Jornalismo e foi se jogar de cabeça na música, onde criou o Arranco de Varsóvia e agora é integrante do MPB4. Enfim, curti o grupo no Teatro Ipanema inicialmente e vi, em 1981, eles lançarem o CD homônimo. Depois, em 1982, lançariam o Baratotal. E daí cada um seguiu seu rumo. Aliás, onde só existia a nata emergente da MPB, todos voaram alto. Tanto que nos anos de 1981 e 1983 o Céu da Boca ganhou o prêmio de Melhor Grupo Vocal, conferido pela Associação de Críticos de São Paulo.

No primeiro disco eles traziam Assis Valente (Uva de Caminhão), Zé Rocha (Bumba Meu Boi da Boa Hora), Alberto Rosenblit/Luiz Fernando Gonçalves (Luciana), Luiz Eça (Melancolia), Aylton Escobar (Sabiá, Coração de Uma Viola), Ernesto Nazareth (Odeon), Armandinho/Moraes Moreira (Davilicença) e Eduardo Dusek (Injuriado), além de composições próprias de Paulinho Pauleira (Clarissa) e Dalmo Medeiros (Trindade, Arado e Araguaia, esta última em parceria com João Fernando Vianna).

Acho que o Céu da Boca foi aquele antagonismo musical e emocional: te faz explodir de emoções e sinergia enquanto existe e te cobre de musicalidade e genialidade quando termina. Afinal, como não amar o trabalho posterior de cada um deles? Falarei em futuros posts ainda sobre alguns dos membros do grupo de quem virei tiete e fã incondicional. Mas este disco – Céu da Boca - é um interminável ouvir de belas canções, interpretações incríveis, sonoridade plena. Para mim, rola sempre quando quero relembrar meus tempos de carioca e, mais do que isso, saber que vi o surgimento de tantos artistas fantásticos num lugar só. Tipo o Asdrúbal Trouxe o Trombone, que aliás tem um disco também incrível do qual falarei.

O Céu da Boca de certa forma contrastou com grupos vocais à época que incluíam ou só homens ou só mulheres. Eles misturaram tudo na dose certa e mostraram que vozes masculinas e femininas se completam e se locupletam na medida exata quando há sonoridade e qualidade implícitas no todo. E esse disco e o Baratotal são a prova máxima disso. Eu se fosse você nunca deixaria de ouvi-lo. O link para ele é o https://www.youtube.com/watch?v=jnVun5qNCe4

Nosso maestro soberano

Por Edmilson Siqueira

Resolvi iniciar esta série com nosso maestro soberano por motivos óbvios. Se pretendemos falar aqui de boa música, Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o nosso Tom, é o primeiro da fila. Há, claro, muitos discos dele que poderiam ser aqui comentados - e serão - mas o primeiro foi escolhido para mostrar não só a grande qualidade de sua obra, mas a dimensão que ela alcançou e que até hoje é subestimada por muitos.

Jobim é um artista de referência na música mundial e isso fica cada dia mais claro, com inúmeras novas gravações nos cinco continentes e muitas composições que surgem com evidente influência da bossa nova, nos Estados Unidos, na França, na Itália, em Portugal, no Japão etc.  

E o disco Antonio Carlos Jobim And Friends, gravado em 27 de setembro de 1993, no Free Jazz Festival em São Paulo, é prova eloquente do tamanho do "nosso melhor Antonio Carlos", como disse Sergio Augusto num texto memorável quando o maestro morreu em Nova York. 

O disco abre com ninguém menos que o grande pianista de jazz Herbie Hancock com um medley de "Inútil Paisagem", "Triste" e "Esperança Perdida". Somente ele e o piano abrindo o show daquela noite já demonstra a veneração que há pela música de Jobim. Herbie passeia pelas finas melodias como velhas e amadas conhecidas e improvisa com grande categoria. 

Na segunda música, Herbie continua ao piano, mas recebe a companhia de Ron Carter no contrabaixo, Harvey Mason na bateria e Alex Acuña na percussão pra dar uma roupagem toda swingada a "Ela é Carioca", no melhor estilo dos trios de bossa nova que surgiram no Brasil na década de 1960.  

O título da terceira música é "The Boy From Ipanema" e é, claro, a versão feminina do maior sucesso de Jobim e Vinícius. Isso porque ela é cantada por ninguém menos que Shirley Horn, que se acompanha ao piano mais Mason e Acuña e o violão de Oscar Castro Neves. A interpretação é alegre com um ótimo scat de Shirley. 

E é a mesma Shirley que nos brinda com o momento mais emocionante do disco. A mesma turma anterior, mais os teclados de Herbie Hancock emolduram a impressionante interpretação de "Onde I Loved" ("Amor em Paz"). Shirley canta a música mais lenta do que é realmente, aumentando o espaço entre as frases, dado a cada verso uma força emocional nessa que é uma das mais belas melodias produzidas pelo nosso maestro. 

"Grande Amor", também parceria com Vinicius, serve para introduzir na cena o sax tenor Henderson e piano de Gonzalo Rubalcaba, com a cozinha que já estava no palco mais Paulo Jobim no violão, um time de cobras que passeiam pela melodia com conhecimento de causa. 

O mega-sucesso de Jobim "Chega de Saudade", considerada a música símbolo do início da bossa nova e que ganhou na versão em inglês o título de "No More Blues" é cantada, em inglês, por Jon Hendricks mostrando familiaridade com o ritmo, que não é nada mais que samba sofisticado o suficiente para ser considerado jazz no mundo inteiro. 

A primeira parte do show se encerra com "Água de Beber", apenas instrumental com grande performance de Gonzalo Rubalcaba ao piano.  Gal Costa entra triunfante abrindo a segunda parte, com "A Felicidade" acompanhada por Herbie nos teclados. Um show de alegria e afinação da musa da Tropicália em grande forma. 

"Se Todos Fossem Iguais a Você", a faixa seguinte, serve tanto para mostrar, mais uma vez, as qualidades vocais de Gal, como para introduzir nosso maestro soberano ao palco. Ao fim da música ele entra triunfante. E se faz um silêncio absoluto no auditório para que, após pequena introdução ao piano, uma voz emocionada de Jobim os versos de "Luiza" e o público aplaude ao fim da primeira frase e, com mais entusiasmo, ao fim. 

Depois do solo, os músicos se juntam par, junto ao piano de Jobim, tocar "Wave", outra música que tem centenas de gravações pelo mundo. Bossa nova, samba e jazz e misturam na mais perfeita harmonia.  
Gal entra novamente com "Caminhos Cruzados", fazendo um anteparo para o número final que se aproxima. 

E o grande disco se encerra com "Garota de Ipanema", desta vez no gênero original, com Jobim e Gal cantando, mais toda cozinha que fez o show, num grand finale digno da obra de Antonio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, o nosso Tom Jobim que, com certeza, teria muitas outras homenagens como essa pelo mundo afora, não nos tivesse deixado aos 67 anos, dois anos e dois meses depois desse show que a Verve gravou e perpetuou.

O link na internet para você curtir é o https://www.youtube.com/watch?v=WxJ-RzKWJM 


Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...