sexta-feira, 24 de março de 2023

E vão-se as certezas

 Por Ronaldo Faria


Lembranças talvez de ancas, anchos seres com quem cruzamos, vestimentas de passado, utopias que resvalam em diáfanas realidades de um segundo qualquer. Talvez a mulher ao volante, infante na nova vida que espera e esmera, quem sabe um descalabro que vem e volta, mostra que um segundo vale a vida, desmedida vida... Desmentida vida.

Lembranças que logo serão cinzas, solidão infinda e eterna, mas ungidas de duas queimas ao fogo mais imenso, abrandado pelo avarandado que deve existir entre o início e o nada. Quem sabe nessa hora a saudade não bata quieta e vegete feito nesga de sol na noite fugidia. O dia nenhum do depois agradecerá tudo poder na finitude que se antevê letal.

Lembranças de sabe-se lá o quê. Talvez um jeito errado de escrever tantos quês, um espaço próprio na semiótica que nem a ótica mais nítida consiga ver. Uma idiossincrasia qualquer, das partes que se unem e se delimitam nos limítrofes restos de querer ser. Talvez um carro de boi do passado em que não se sabia sequer se haveria presente ou futuro.

Lembranças que destoam daquilo que se queria ser, se é que algo se quis. Que brincam de preto e branco em fotos que fazem aniversário tardio, remontam cenas, montam prosápias e acham que serão para o sempre. Não serão. Nada será. Apesar do novo amanhecer a cada sol que se deixa dormir e acordar, viajar entre luzes e algozes do renascer.

Lembranças de lágrimas. Mas haverá outras? A tal de saudade que nos invade a cada dia não é somente um mar de reminiscências e voltas cheias de desejos e ensejos, coisas desaparecidas e descabidas, como ver a cana virar mel. Senão, ouvir milhares de centenas de abelhas a voar e cobrirem de negror do Nordeste a zoarem no silêncio da tarde quente.

Lembranças de mulheres uivantes ou arfantes, que vêm e voltam nas tardes tardias de um passado que poderia ter sido e não o foi. De noites solitárias, de açoites perdidos, desses que  ninguém quer mas vêm quietos, prestos, passionais, coisa que aflora no repente de uma nota musical, de amor venal, de algo que mistura desejo e sabe-se lá o quê.

Lembranças de compor a sua história e trajetória, seja ela para aonde for, dos espinhos à flor de lis. Quem sabe o desejo guardado e resguardado, antecipado e ceifado, procrastinado por não ter certeza de que esse é o verso final. Assim, como alguém que canta e descobre no atropelo da vida que o universo é um verso transverso que carece de ser. 

(Ao Renato Teixeira, Pena Branca e Xavantinho)

Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...