quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

A viola da Filarmônica que rompe veredas

Por Ronaldo Faria

A viola caipira é incrível, coisa sonora que fala por si e nos remete às plagas mais recônditas da alma do sertanejo, do brasileiro que descobriu com o passar dos tempos, neste instrumento vindo de Portugal com nossos colonizadores, uma assinatura melódica do Interior de São Paulo, do Sul de Minas Sul, de Goiás, Mato Grosso e Norte do Paraná, principalmente. Mas tem a viola nordestina também. Todas arraigadas nas cordas de aço e nas mãos do violeiro que a toca a criar notas mil. Hoje eu vou falar sobre a Orquestra Filarmônica de Violas, criada em 2001, com sede em Campinas e que tem três CDs – o Orquestra Filarmônica de Violas I e II e o Encontro das Águas gravados. O primeiro é de 2005, o segundo foi gravado em 2010 e o terceiro é de 2017. São três CDs que não podem faltar para quem ama esse instrumento e a música de raiz. E uma notícia prazerosa: este ano o grupo completa 20 anos de vida sonora. Logo, que mais 20, 40, 60 e tantos outros venham pela frente!

O primeiro disco, o Orquestra Filarmônica de Violas, tem 14 composições e 33 violeiros. Todas elas clássicos do gênero. Logo na abertura tem Vide, Vida Marvada, do grande Rolando Boldrin, a quem vou dedicar um texto obrigatoriamente logo mais. Nessa música, o arranjo do diretor musical do grupo à época, Ivan Vilela, um ícone e uma referência no estudo das raízes da música brasileira, mantém o lirismo e a poesia melódica. Depois vem Estrada da Vida, de Zé Rico, com vozes de João Paulo Amaral, que viria depois a assumir o lugar de Vilela como diretor musical, e Messias. Daí segue com Canoeiro, de Alocin e Carreirinho, clássico que o ex-presidente JK amava; Asa Branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, numa prova de que o Nordeste pode respirar na viola; a eterna Chalana, de Mário Zan e Arlindo Pinto, com batida no fundo da viola a marcar uma percussão; e Luar do Sertão, de Camilo da Paixão Cearense e João Pernambuco, outro marco da MPB, que tem as vozes de Osório e Ana Luiza ao fundo. 

Na sequência temos a bela Arredores, música e solo de Vinícius Alves; Rio de Lágrimas, composta por Tião Carreiro, Piraci e Lourival dos Santos, uma epopeia de Piracicaba e clássica memorável; Vaca Estrela e Boi Fubá, do poeta nordestino e brasileiro Patativa do Assaré, num ritmo melancólico e que remete às tardes de sol a cair; De Papo Pro Ar, dos grandes Joubert de Carvalho e Olegário Mariano, executada pelo Trio Carapiá; A Moda Mula Preta, de Raul Torres; e Cabocla Tereza, de João Pacífico e Raul Torres nas vozes de duas deusas da MPB – Suzana Salles e Ná Ozetti. Daí rola O Menino da Porteira, de Teddy Vieira e Luizinho, que dispensa falação; e finalmente, para fechar o CD, um pouco de respirar São João com Pula Fogueira, de Amor de João Bastos Filho. E haja vontade de ouvir de novo.

No Orquestra Filarmônica de Violas II, com 21 violeiros no dedilhar, há o início de uma virada de composições e alvo, com um trabalho mais esmerado, abrangente além do sertanejo (que continua como mote) e de beleza inconfundível. Ao todo são 12 músicas. Começa com o Você Vai Gostar (Casinha Branca) do monumental Elpídio dos Santos; vai para o clássico Romaria, de Renato Teixeira, de quem um dia falarei. Ela tem a voz de Ana Gilli para abençoar quem vive como caipira; vem então Primavera Pantaneira, de Messias das Violas e Vinícius Alves, num estilo “rasqueado”; e chega a Correnteza, do Maestro Soberano Tom Jobim com Luiz Bonfá, numa prosa de que o instrumento vive para brincar de poesia. A letra tem a voz do grande Renato Braz, que foi tema de um artigo do Edmilson Siqueira aqui no blog; Anastácio, de Anderson Batista, e a folclórica e eterna Índia, de José Asunción Flor e Manuel Ortis Guerreiro, com versão de Zé Fortuna e a voz de Tetê Espíndola dão o tom depois. 

O Orquestra Filarmônica de Violas II continua com Improviso, de Antonio Madureira, na beleza das violas do Duo Catrumano; Cana Verde, de Tonico e Tinoco nas vozes de Messias da Viola e Osório Cardoso; a eterna Chico Mineiro que João Paulo Amaral e Osório Cardoso cantam no clássico de Tonico e Francisco Ribeiro; Campo Branco, do incrível Elomar, com Lenine Santos a cantar; a Coisa Tá Feia, de Tião Carreiro e Lourival dos Santos; e finalmente São Jorge, daquele que é um mito da MPB – Hermeto Paschoal. Ou seja, música para todos os gostos.

No CD Encontro das Águas há as seguintes músicas: Viola Chic Chic (Tião Carreiro e Zelão), Bachianas Brasileiras nº 5 - Ária (Heitor Villa-Lobos), Fé Cega, Faca Amolada (Milton Nascimento e Ronaldo Bastos), Tocando em Frente (Almir Sater e Renato Teixeira), Alvorada (Chrystian Dozza), Encontro das Águas (Tavinho Moura), Terra Clara (João Paulo Amaral e Luis Felipe Gama), Lamento Sertanejo (Dominguinhos e Gilberto Gil), Brejeiro (Ernesto Nazareth) e Going to California (Robert Plant e Jimmy Page). Ou seja, um passeio por gêneros e tempos onde a viola caipira se inclui e se faz. Até no rock britânico de Led Zeppelin. Neste CD, 17 violeiros resistindo ao tempo e provando que a cada novo disco do grupo há uma amplitude de proposta e a coisa fica ainda melhor. Ou seja, o tempo lapida o diamante que sempre foi de milhares de quilates, mas vira algo maior com cada ano vivido e tocado.

Como disse o diretor musical João Paulo Amaral ao blog Cantares e Esquinas (https://ronaldofaria57.blogspot.com/2021/05/filarmonica-de-violas-de-caipira-ou.html). “A gente não tem vontade de fazer a música tradicional de viola simplesmente como ela foi composta há 50 ou 60 anos. A gente tem necessidade de botar um pouco da nossa geração e mostrar essa possibilidade que a viola traz justamente com a linguagem da música caipira junto com a técnica que a viola vem ganhando nos últimos anos. A abertura de ser um instrumento que toca em diversos universos, não só da música de raiz, como no choro, na música instrumental e muito mais. Há coisas que estavam desde nosso primeiro disco. Estamos dando sequência nisso. Mas há mais. Pensando em responder a esse anseio de todos nós de querer fazer um disco mais sofisticado que o anterior, no sentido do desafio, ao mesmo tempo que o grupo é heterogêneo. Tem gente aqui que ainda não é profissional e os arranjos têm de conceber essas condições de ter um naipe mais simples. Mas o arranjador mesmo assim tem condições de fazer coisas bacanas. Logo, não é dizer que é tudo complicado. A gente usa a inteligência desses arranjadores que trabalham junto com a gente, a maior parte sendo do próprio grupo, para tirar o melhor da orquestra. E trazer desafios.” 

Para Amaral, “o terceiro CD é, com certeza, um disco que demandou muito esforço de cada um, de estudo individual. Eu gosto de lembrar que alguns, por conta do disco, passaram a fazer aulas de música em paralelo, para conseguir facilitar esse processo de aprender arranjos novos. Então, isso é um fato que mostra o movimento do grupo. Ou seja, não é nada vertical do tipo tem que fazer isso e pronto. O próprio grupo é que está se movimentando. E esse é o interesse que a gente tem: de mostrar a viola e ainda mais com a coisa dos solistas, algo que foi um desafio e traz um pouco mais de responsabilidade para a gente. Ao chamar e integrar no projeto caras como Nailor Proveta, Toninho Ferragutti, Fabio Presgrave, Chrystian Dozza, Alexandre Ribeiro e Ricardo Herz, cada um que é exponencial na sua área, a gente quis fazer um trabalho que justificasse chamar esses camaradas. Não é uma coisa a reboque, do tipo tem um figurão lá que foi dar uma força. Não. Nós queremos fazer um trabalho que justifique a presença deles e que eles se sintam felizes de participar de um trabalho como o nosso.” Ou seja, nos preparemos para novos voos para os próximos anos. Com a benção de São Gonçalo do Amarante e quem mais for.

O Orquestra Filarmônica de Violas I e Encontro das Águas podem ser ouvidos no Amazon Music, no Spotify e no Deezer. Já o Orquestra Filarmônica de Violas II não está disponível nessas plataformas.

Zé Geraldo

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