sábado, 23 de março de 2024

Na companhia de Muleke do Banjo

 Por Ronaldo Faria

 

“Samba é pra levantar o astral. Senão, de que vale bailar na avenida vazia, sem vida, sem a morena a rebolar?”
A voz de Genovésio na mesa do bar, cercada de garrafas vazias de cerveja por todos os lados, ecoa na viela que se entorta na subida do Morro da Pedra Caída. Defronte ao boteco, para alguns apenas uma birosca a mais, o barraco de Jovelina, sem ter sequer pérolas negras, está iluminado. Malfadado seja, pois, o tempo que desagua na estrada de pó e terra entre ruelas pequenas e cheias de gatos que iluminam a madrugada ou servem de tamborim no Carnaval.
“Seu Juvenal, mestre dos petiscos de além-mar, traz mais outras Brahmas pra gente esvaziar. E anota pra depois de amanhã.”
O pedido de Genovésio é logo atendido. E alguém puxa um cavaquinho, outro saca uma caixa de fósforos e mais alguém surge com o pandeiro. “Agora fodeu”, pensou o trabalhador braçal que, logo perto, desperto, queria poder dormir. Aos poucos, vozes entoarão forte o samba esquecido há muito, sentirão saudades do poeta que se foi, brincarão de rimas e sustenidos para ver aquilo que o universo fora do verso não dá. Quem sabe um bloco não será formado logo depois, no após que o apocalipse da vida dá.
“Alguém sabe que horas são? Para! Pode parar! Aqui ninguém vai saber. A vida é só uma. O pagode não pode esperar ou se esmerar no dia raiar.”
Malandro no mundo da ilusão que só a vida dá, Genovésio puxa um samba novo e outro antigo. Antípoda de si mesmo, a esmo, como quem toca banjo sem saber sequer dedilhar, levanta o dedo e manda descer mais litrões. “Se é pra morrer logo ali, vivamos as ilusões que são o negror da noite que nunca mais vai rebrilhar igual.” Num ou noutro barraco, desses que na primeira chuva forte pode descer o asfalto, o som reverbera feito gérbera que cresce em qualquer lugar.
“Seu Juvenal, fugitivo de Portugal pra descobrir aqui que o melhor é sair de onde o povo se acha mais do que é, manda uma porção de calabresa pra forrar.”
Na esquina que pouco existe numa favela, o pai de santo deixa a oferenda para Exu e Pomba-Gira. Marafo e frango cortado no pescoço com sangue a esvair, farofa e vela, esperança do futuro melhor, e o destino entra em desatino no perder das raras horas. “Oxalá, meu santo maior, meu Omolu que me dará a morte tranquila, minha Iansã que derrubará as águas para lavar o mal, sejam bem-vindos”, pensou Genovésio. Ali perto, no alto de onde o morro vê o mundo girar, um casal se enrosca na cama entre orgasmos e magros rebentos. Os ventos servem apenas para envolver o teatro do acaso.
“Vamos lá, moçada, faltam as dez últimas saideiras antes da derradeira. Vamos deixar rolar que sexta-feira é só uma vez em cada sete dias.”
Genovésio, o inverso do verso nunca cantado na escola de samba que não sai do grupo pra subir para algum grupo que está longe do sambódromo entrar, solta o verbo. E vem a saudade da índia do Pará, com seus cabelos lisos e negros, que se refugia no asfalto do subúrbio e sabe-se lá se viva está. Onde vive é difícil até para ele voltar à estação de um trem que morre do lado da avenida proscrita em seus cubra-libres e gins com tônica. Tempos de amores mil, telefonemas em fonemas, bichos de pelúcia, batas, quando ainda era preciso sinal pra discar, soberba do passado perdido e urdido, desses ardidos que nem a pimenta que se derrama na linguiça dá. Nalgum lugar existirão outros lábios de mel ou fel.
“Que porra é essa que parece brilhar no céu? Quem chamou o sol pra ele acordar? Puta que pariu, porque a vida não nos deixa viver? Por quê?”
Revoltado, Genovésio bate forte na mesa de metal quase a cair de tanto enferrujada. Seu companheiro de birita se irrita e diz apenas: “Genê, dá pra segurar a onda e a loucura? A cura está aqui na mesa. Quer destruir a receita do doutor da ilusão que ao menos deixa a gente esquecer que tem outro dia pra acordar e viver?” Genovésio entende o recado e cai na real. É preciso abrir a roda pra deixar o coração participar. Levanta o dedo, pede outra e olha para o céu em cores a derramar e se redescobrir na madrugada fria que virá se aquecer. Ao redor, um cachorro urina no poste, o ajudante de padeiro desce o morro para cumprir seu labor, uma sirene de carro de polícia vem atender outro defunto perfurado de balas a descansar no asfalto. O mundo permanece igual. Tal e qual.
“Ô português, obrigado por nos deixar sonhar! E viva a Light que deixou a geladeira gelar.”

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