quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

A falta que Dércio Marques faz...

Por Ronaldo Faria

Ele morreu em 26 de junho de 2012, aos 64 anos. Este ano, portanto, completaremos uma década sem Dércio Marques. Compositor, violeiro, cantor, intérprete e estudioso das raízes da música brasileira, esse mineiro de Uberlândia nos deixou 13 discos e uma vida entregue à cantar a natureza, a pureza dos sons e brincadeiras infantis e das almas que estão além do simples chão. Aqui eu vou tratar de um CD que amo de paixão: Anjos da Terra, dedicado à sua filha Mariana e verdadeira brincadeira de roda, de vida e pureza musical. Dércio era uma espécie de ícone da natureza e das coisas boas. Por isso não entendi a sua morte tão cedo. Alguém que vivia em alfa, além do nosso mundo terreno, era para ter chegado aos 100 anos ou mais. Enfim, que Dércio Marques, onde estiver, certamente numa floresta cheia de verde, animais e paz, olhe por nós. Hoje, nas trevas que o Brasil vive, mais do que nunca precisamos de vozes e almas iguais as suas para vencermos os algozes. 

O mais próximo que estive de Dércio Marques foi num dia de chuva forte, dessa que lava a alma e o passado, quando o compositor, jornalista, cronista e cantor Zeza Amaral me recebeu na sua casa para uma entrevista feita sob a supervisão de seu homônimo emplumado, um canário norte-americano que Zeza garantiu ter onze cânticos diferenciados. O nome do pássaro era uma homenagem ao amigo. “Ele é como o Dércio: quando o cara vinha aqui em casa e começava a cantar, não tinha quem fizesse ele parar. O canário tem horas que fica mais de 20 minutos a trinar”, disse Zeza à época (https://ronaldofaria57.blogspot.com/2021/05/amaral-acreditem-internautas-do-planeta.html). 

À exceção do canário, porém, sempre curti Dércio Marques. Tenho todos os 13 discos dele. Nos meus arquivos em MP3 ele está num HD externo em MPB na pasta Bicho Grilo, que reúne, entre outros, as obras de A Barca, A Barca do Sol, Alceu Valença, Armandinho, Arrigo Barnabé, Asdrubal Trouxe o Trombone, Baby Consuelo, Bubuska Valença, Doroty Marques, Geraldo Espíndola, Grupo Agreste, Grupo Alma, Grupo D’Alma, Grupo Engenho, Grupo Rumo, Grupo Therra, Gutemberg Guarabira, Jessier Quirino, Lanny Gordin, Manacá, Mozart Terra, Moraes Moreira, Parafusa, Paranga, Paulinho Pedra Azul, Renato Terra, Rubinho do Valle, Rui Maurity, Sá, Guarabira e Zé Rodrix, Teatro do Descobrimento, Torquato Neto, Ventania, Walter Franco, Xangai e outros mais.

Mas, afinal o que é uma pasta Bicho Grilo? É a essência de um momento em que viajar em sons na famosa “maionese”, longe da realidade triste e desconexa da vida. Que nos faz acreditar que há algo além da busca do vil metal, das contas e boletos que correm atrás de nós sem parar, das obrigações terrenas que nos abstraem daquilo que deveria ser a busca de um equilíbrio com a natureza. Que nos eleva de um mundo onde a essência da nossa rápida e efêmera passagem por esse planeta azul e redondo é esquecida. Dércio Marques e toda a sua obra estão nesse diapasão “bicho grilista”. Ainda bem que, ao menos, conheci o canário que deve ser a sua reencarnação num ser que ele soube mostrar em vida: o agregado de cantar e viver em sublimação naquilo que a Terra dá e ensina.

Anjos da Terra é uma mistura de pureza da infância e interação com o mundo que respira paz ao nosso redor. São 23 músicas em 49 minutos. Na verdade, uma entrega absoluta entre a brincadeira sonora e de qualidade e o que há de mais sublime para alguém criar e cantar. A letra da música que dá título ao disco é um poema universal. “Mas olha quanta gente que passa/ Sem controlar o sorriso/ São meninos da terra/ São meninos da lua/ Brincando de amor/ Ao redor do mundo/ Anjos da terra/ Beijos de maio/ Mães da alegria/ Que vem da lua/ Desce de um raio/ Cheio de estrela/ Brilho do sol/ Sol virou lua/ Brincar na rua/ Sou um sonhador.” 

Impossível não sonhar junto. Uma adaptação de Cuitelinho (com verso recuperado da composição em Santa Rosa do Viterbo) é linda. A Canção de Ninar, na voz de Titane e o som de Lucas ao fundo, nenê, é algo realmente para ninar o mundo. Tivéssemos tido esse acalanto, certamente seríamos moradores de um mundo melhor desde o berço. Como tudo que era belo e espontâneo em Dércio Marques, nenhuma música, à exceção de Cuitelinho, foi editada. Em Ser Criança, a verdade que cada um de nós deve ter guardada no fundo coração, ou deveria tê-lo feito. 

O disco, de 1991, tem um poema para o amor em Namoro: “Plantei um pé de avenca/ debaixo da tua janela/ E sonhei frutas em penca/ num galho de siriguela/ Plantei um pé de rosa/ lá detrás do murundu/ E sonhei-te mimosa/ com cheirinho de caju/ Plantei um chão de trevo/ no meio do teu caminho/ pra ver se ele se atreve/ a roçar o teu pezinho/ Que o trevo é talismã/ que é pr’eu fazer meu gosto/ de morder a maçã/ a covinha de teu rosto/ Plantei um pé de lírio/ na porta da tua escola/ Mas quero mais delírio/ com o gostim de carambola/ E já nem sei o que faço/ das tranças, da tua franja/ Quero ser teu bagaço/ teu docinho de laranja.”

Há até um blues para a rãzinha. Enfim, todas as composições, sejam na forma instrumental ou cantadas, são uma certeza única: se mais Dércios, fossem eles humanos ou pássaros, tivéssemos, mais viveríamos em outro estágio e realidade. Existiriam menos ganância, destruição da natureza, maldade, ódio e coisas que mostram que o homem às vezes não merece o lugar em que vive. Mas, loas a Dércio Marques e aquilo que ele nos deixou. Sua poesia e seu apelo por um mundo melhor e mais pleno resistem ao tempo. Triste é ver que ele foi bem antes daquilo que o planeta gostaria...

A última faixa do disco dedica os 13 segundos para a natureza e o SOS Amazônia: https://sosamazonia.org.br/

Você ouve essa obra-prima em https://www.letras.mus.br/dercio-marques/discografia/anjos-da-terra-1991/

Zé Geraldo

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