sexta-feira, 7 de junho de 2024

Metrô, 23 estações

 Por Ronaldo Faria


 
Acordei mais cedo do que de costume. O sol ainda teimava em querer chegar. Uma névoa fria se misturava com a fumaça da queimada que ardia logo perto. Um urubu ou outro voava rasante no lixo jogado no córrego que escorria quase nenhum detrás dos barracos infestados de moscas e miséria. Pouca gente se aventurava em seguir adiante, mesmo com todos tendo ponto pra bater, condução pra pegar, vida ou morte pra seguir. Mas acordei cedo demais para quem não tem muito porque sair da cama. As molas da cama fazem barulho. Doem o corpo. Na chaleira a água ferve para o resto de café que descansa sobre a mesa. A cabeça dói um pouco. Noite mal dormida, solitária, quebrada em acordar, virar do lado, dormir, acordar, pesadelos, ressonar, descobrir que pobre não tem com o que sonhar. As latas de cerveja e a garrafa de pinga, largadas sobre a pia, tentam dar bom dia. Em vão. Quem dera logo mais rolasse uma orgia. Triste realidade de viver nos ribeirões e rincões da cidade. Mas é hora de voltar a viver.
Entro debaixo do chuveiro que pinga um tanto de água fria e outro de líquido quase quente. É urgente consertar ou comprar a resistência. Um dia o mundo vai me vencer pela persistência. Mas, até lá, vamos tentar. Me enxugo rápido para não perder o horário do primeiro trem. Pego as caixas de bala de hortelã para garantir pelo menos a janta de marmita ou umas latas de suco de cevada na promoção. Preparo a garganta para a propaganda: “Olha lá, minha gente, bala boa é comigo. Compra, confere e descobre a qualidade do artigo”. Se tudo der certo, nos trilhos do trem e do metrô vou conseguir um pouco de combustível para continuar a respirar. Afinal, minha vida é assim: um dia a cada dia, um momento a cada dia. Sobrevida. Do lado de lá da porta tem uma guerra a ser ganha pela briga de ter nascido e urdido em não morrer cedo.
Respiro fundo, levanto a cabeça e abro a porta. Ela range doído, carcomida pela chuva e ratos. Preciso ver se sobra tempo para dar um jeito nisso. Haverá de ter. Agora, porém, é seguir à frente. Tem uma conta corrente inexistente para fechar. O vento bate frio no corpo. É outono quase inverno. O tempo está um inferno. Um gelado que corta até os ossos, mas depois vira quase forno de padaria. Não há como saber o que virá. Mas, nessa vida que voa rápido entre um nascer e morrer de sol, há o que se prever? Ando devagar na viela. Desvio de uma poça aqui e outra logo ali. Os casebres aos poucos despertam para redescobrir filas, festas perdidas, frases esquecidas.
– João? Morreu na última batida. Tentou se esconder, mas a bala foi mais rápida. Disseram que ele era do movimento, jogaram o corpo dele no camburão e estava feita a história final.
– Maria? Coitada, apanhou tanto do Bastião que não aguentou. Ainda foi pro hospital, toda retalhada e moída, mas não resistiu. Seus filhos talvez fiquem com a avó. Senão, vão pra adoção. A assistente social até já veio aqui.
– Dona Antônia? Tadinha, tava velhinha... Não tinha como aguentar mesmo. Até que tentaram uma vaga no SUS, mas não deu tempo. Os pulmões apodreceram antes.
– Clemente dos Pinos? A polícia catou na boca. Encheu ele de porrada e arrastou pro distrito. Saiu até no jornal. Disseram que era dono do esquema. Logo ele, um bosta que não tinha onde cair morto. Está à espera de um advogado. Mas quem vai pagar?
Caminho rápido para pegar o ônibus que vai me levar à estação de trem. O ponto já está cheio. Gente que eu conheço há muito tempo. Gente que eu nunca vi. Favela parece formigueiro. Sempre tem operária nova para servir a rainha. Sempre tem zangão pra morrer. Dou um bom dia rápido para alguns. Para os outros só troco um olhar que se desvia por medo de trocar negligência ou morte. Por aqui o silêncio é não é de ouro. É de couro comido de pólvora ou lâmina afiada. Mesmo a mulher de olhar safado é melhor não ver. Nunca se sabe onde está aquele que dorme com ela. Na casa a esperar ou no canto de uma cela? A realidade do medo e do pobre não é procela. Melhor estar só do que numa estrada em quimera. Um dia, quem sabe, vendo mais do que dropes de hortelã. Acreditar e crer ainda parece ser o maior afã.
O ônibus corre rápido pela quebrada. Também não há muito mais espaço para outra pessoa entrar. O motorista nem para mais. Ele deve ter estudado que dois corpos não ocupam o mesmo espaço. Não é cabaço. O importante agora é só chegar no horário. Quanto mais cedo, melhor. Eu vou quieto no meu acreditar. Afinal, tem gente que não consegue escovar os dentes, por falta de tempo ou de pasta, e usa as minhas balas para achar que não vai perder emprego, mulher, homem, decência ou algo que tenha açúcar ou sal. Que saiba cheirar um odor que não explicite apenas miséria e dor. Sigo assim: metade pro mundo e a outra metade pra mim. Sei que desde o início tudo foi assim. Porque agora é que vai mudar?
O motorista breca o ônibus e desliga o motor. Ponto final e inicial. A estação do metrô está logo ali. Agora é descer e seguir. Entrar no vagão, preparar a voz e tentar não tossir. A tosse hoje espanta o comprador. “Se a bala é boa, por que ele parece um trovão ambulante?” Pago a passagem na bilheteria, fico de pé para percorrer os vagões e retiro o produto da mochila. Quisera, ao invés de bala ou dropes, estar vendendo pele de chinchila. Mas, vamos lá. “Olha lá, minha gente, bala boa é comigo. Compra, confere e descobre a qualidade do artigo”. Nas próximas 22 estações tenho que zerar tudo. Preciso. Necessito. Tenho. Haverei de zerar.
A vida nunca foi fácil comigo. Ávida de ter um exemplo de fé naquilo que não era possível, me fez de exemplo. Por eu sigo, insensato e vazio pelos trilhos do metrô. Ungido de voz e querer me livrar de cada bala que vendo, cada dropes que passo adiante. Tudo como um infante que sobe na nau que vai cruzar os oceanos a crer que há muito a ver e ser. É isso que sou: um infante patético e púbere, que não sabe como funciona o mundo. Que não conhece seus meandros, suas nuances, seus penduricalhos, suas vaginas e caralhos. Apenas é. Ou pensa ser. Metáfora amorfa de um poema que nunca foi lido ou dito. Escondido aos ouvidos e praças públicas, virgens púbicas, pastos devorados por um gado que segue sua boiada tristonha e calada, calejada de nada ser. Ou seja, ver para crer.
Mas a vida será mais do que isso? A que viemos e para onde vamos? Além de nós há outra estratosfera ou sequer uma quimera? Que química nos colocou no mundo quando o mundo não havia e qual nos levará depois dessa suposta orgia? Por que tal primazia? O espermatozoide mais rápido, mais lépido e safado? O destino, no corpo de menina ou menino? E depois, o que ser? Escolher? Viver? Sentenciar? Acreditar e ser? Romper barreiras e hormônios, verdades e sinônimos? Felicidade há de ter? Fidelidade há de ter? Morrer logo cedo ou crescer? Mas o que é crescer? Barba aos machos, às mulheres peitos grandões, ereções, gozos, incongruências, sentimentos, magias individuais, meras porções? Saber-se-á.
– Estação Paes de um Afonso que ainda tem pena.
A voz do condutor, motorista, maquinista, senhor, soa pelos alto-falantes dos vagões. Um tanto pouco de seres humanos desce, outro tanto mais sobe. Nova gente, mais possibilidade de vender, desvendar desejos e fé. Acreditarão eles que minhas balas e dropes feitos lá onde eu nem sei poderão salvar ou melhorar suas vidas? No que eles acreditarão? Ouvirão sermão de pastor ou padre? De onde virão? Serão operários, empregadas, guardadores de carros, vigilantes, prostitutas, amantes? Serão donos de empresas ou diretores de conglomerados que os motoristas que vivem periféricos na periferia faltaram? Eu não sei e ninguém saberá. Falácias de qualquer lugar. Nesses vagões interligados de tecnologia e vidas vazias com suas impróprias azias, ninguém saberá.
O trem do metrô avança. No Japão, a essa hora, alguém janta. Não há milimétrica rima para tanta coisa tântrica. O barulho dos trilhos entrelaçados com as composições sugerem novas rimas e novos sons. Lá fora, no escuro, poucos são os tons. Tudo passa rápido, num descabido e barulhento acalanto. Eu espero um minuto passar, todo mundo sentar e volto com meu canto: “Olha lá, minha gente, bala boa é comigo. Compra, confere e descobre a qualidade do artigo”. Um levanta a mão dali, outro repete o gesto daqui. E lá vou eu: “Um é dois, três é cinco”. Vendo alguns. Fico, por um momento sequer, feliz. Mas o que será esta tal felicidade? Na minha idade, depois de contar na metade de uma mão os raros amigos, de saber que pouco ainda tenho a viver, acho que morrerei sem aprender.
Nasci numa madrugada de um novembro qualquer, nu, rapa do tacho, fruto de uma trepada, não de um amor. Se amor um dia houve, esqueceram de avisar os dois. Filho de uma ninhada de dez. Num barraco à beira de lugar nenhum, aninhado com mais tantos quantos cabiam numa cama ou num sofá velhos, fui me virando pela vida. Aprendendo a sofrer, bater e apanhar. A acreditar que tudo um dia ainda iria mudar. Mas qual… a vida não está aí para se metamorfosear. Fui crescendo, me descobrindo, temendo, reagindo, vivendo. Como diz o samba, a vida foi me levando. Saber-se-á para onde. Agora estou aqui, no vagão de um trem a gritar: “Olha lá, minha gente, bala boa é comigo. Compra, confere e descobre a qualidade do artigo”.
– Estação Cerqueira César. Ponto de interligação com quem seguirá na linha rosa!
A voz do condutor, motorista, maquinista, senhor, soa outra vez pelos alto-falantes dos vagões. Mais gente sobe e desce. O vagão parece um elevador de repartição: uns a descer para fumar e outros a subir para tomar café. Todos, acreditem, na fé. O trem recomeça a seguir seus trilhos. E eu, que trilhos seguirei? Alguns dentes já deixaram minha boca. No último ano de escola, um professor havia dito para a turma que se chegássemos aos 50 anos com todos os dentes, seríamos vencedores. Não cheguei. Sou um perdedor. Hoje eu sei que nunca mais os terei. Assim, vou escondendo o que posso para que os outros não vejam minha vergonha. “Um vendedor banguela a querer nossas quirelas.” Por isso, grito baixo. “Olha lá, minha gente, bala boa é comigo. Compra, confere e descobre a qualidade do artigo”. Acho que consigo enganar bem. Ainda vendo um tanto pouco e bem.
O trem vagueia entre casebres ordinários, trilhos sujos, ruas perdidas em algum canto fedido sob um sol ardido que faz os cães beberem sua própria saliva para não morrerem. Numa ou noutra esquina, a velha senhora desdenha da vida ao ver a moça que passa no seu reluzir de juventude e sedução. Há um aleijado abismado com o correr da criança maltrapilha e o português que, do bar, xinga ao ver o bêbado caloteiro passar. Tem os vagões cheios de gente, o indigente insone, o pedreiro que sonha com as pedras e o cimento que um dia também lhe darão um lar. De tudo há um pouco e outro tanto mais. Tem até o sol que começa a querer aparecer com trejeitos de não deixar chover. Devagar, vou de banco em banco oferecendo meus deleites. Muitos sequer olham pra mim. Fingem dormir. Talvez não tenham mesmo tempo para nada mais além de um ressonar ligeiro. O barulho do trem a correr bairros e paisagens desnudas de algo a ver certamente soam como canções que ninguém nunca lhes ninou. Do alto, um urubu voou.
Penso no meu passado no meio das brincadeiras de rua, bolas de meia de tirar tampões dos dedões do pé, pipas a roubarem das nuvens o seu jeito de algodão-doce e perseguirem seus adversários coloridos que voavam nas mãos de outros meninos. Das brigas infantis que nunca existiram, dos ardis e medos entremeados de medos maiores, dos bancos escolares que pairavam feito nada na cabeça do garoto que só queria ter paz e estrada. Nada de ler e aprender. Para quê? Sequer queria crescer para não ter depois de morrer.
– Você foi no enterro do Senhor José? Coitado, tinha 86 anos, mas se achava jovem. Ria para quem passava, nunca negava um bom dia. Tinha a certeza da serventia. Era um bom homem. Se sofria, ninguém sabia. Morreu como um pássaro, rápido e ao nascer do dia. Dizem que, feito a música, virou cotovia.
Eu pensava como isso poderia ser. De repente, de gente você cria asas e vira andorinha ou rolinha. Sai a voar por onde sempre queria e nunca podia sequer rodear. Passamos a ver lugares bonitos, mares sem fim, montanhas cheias de verde e não de barracos, revê amigos, parentes, amores. Nada de dissabores, tristezas, dores. Deve ser bom. O importante é torcer para que menino nenhum esteja a postos com seu estilingue para abortar esse derradeiro sonhar. Por isso, sempre pensei, quanto mais tarde morrer, melhor. Mesmo que o bater de asas seja mais difícil, só de sair do corpo e crer que já teria feito o seu dever. Mas agora, entre um vagão e outro, sem muita esperança, ainda consigo, ao menos, cantar meu refrão: “Olha lá, minha gente, bala boa é comigo. Compra, confere e descobre a qualidade do artigo”. Um dia, qualquer dia, descubro o meu destino.
– Estação Maria Guadalupe. Desembarque pela direita.
A porta abre ligeira. Dá vontade de descer junto, mas não fiz ainda nem pro pingado. Tenho é que pensar menos e aumentar o meu gingado. Dentro do metrô que corre na terra acima sob o sol inclemente que nem demente aguenta, uma gorda senhora senta no banco quente. Tento lhe vender uma bala com a promessa de que será uma cachoeira fria na sua garganta, mas ela nem olha pra mim. O suor lhe corre cada pedaço de carne. Seus olhos, esbugalhados a rilharem na luz, parecem pedir apenas “me deixe”. Eu deixei. Vou até o outro vagão, na inexatidão de um retirante no instante que a morte parece ser o destino final. Mas está tudo igual: gente triste, cansada, suada, destinada a sucumbir na Estação do Bonfim. Ao parar o trem, o condutor diz que é hora de fazer a baldeação para a linha roxa. O formigueiro em lata desce correndo até as escadas. No rumo, desvia de bêbados e craqueiros que dormem a ver a vida girar. Na esperança que uma larica bata em alguém, grito alto: “Olha lá, minha gente, bala boa é comigo. Compra, confere e descobre a qualidade do artigo”. Em vão.
Faltam ainda várias estações e cores de linhas alinhavadas no destino que nada dá. Penso em desistir de tudo outra vez. Mas lembro da tez de Maria, com seu sorriso cheio de dentes brancos e uma língua que faz a gente enlouquecer. Prometi-lhe casamento quando tivesse condição, por isso entro ligeiro de novo na condução. Se solução não existe é porque solução há de ter. Meu avô, Simplício, costumava dizer isso. Não lembro muito dele, mas ainda assim tento lhe dar a razão nas coisas da vida. Afinal, mesmo pobre e filho do INSS e do salário mínimo chegou quase aos 100. Ou seja, algo especial ou espacial o velho devia ter. Nem que fosse direito a uma cervejinha barata e uma pinga talagada todos os dias. Penso na gira que fui e o cavalo incorporado de exu disse que minha hora ainda ia demorar, mas em qualquer hora que a gente menos esperar, ela iria chegar. Agora, nesse trem que corre os bairros pobres da cidade, só dá vontade é de cagar. “Estação Pedro IV, o Redentor!” Decerto o condutor resolveu sacanear todos nós. Pedro, nesse império que não deu certo, teve só dois. Algo do primário incompleto eu ainda recordo.
Nas próximas estações, cada vez com casas mais miseráveis, certamente ninguém irá comprar minha balas. A maioria não tem dinheiro nem pra pagar as contas de luz e da venda do português. Será que crio uma caderneta também? Mas como, depois, encontrar o cara pra cobrar? Pobre morre fácil, de doença, fome ou bala de metal encontrada. Melhor não. Deixa como está. “Uma é dois, três é cinco”. Recebo, entrego. Não tem pra pagar, não leva. Os vagões, aos poucos, ficam mais fáceis de oferecer o produto. Estão mais vazios. Mas cheio de insones tardios, malandros vadios, anciões de lavradios. No por do sol, quando a luz já fica difícil de ver o que vem adiante, decido parar. “Estação Mãe Menininha do Gantois (Gantuá pra brasileiro). Favor descer pela esquerda”. O recado é uma ordem. Desço com uns caraminguás no bolso. Se eu tomar uma gelada na birosca mais próxima ainda dá pegar o trem na volta e sobra algum vintém. Como não tem solução, solução há. Um dia, quem sabe, a sorte venha me rasgar no meio feito o raio que partiu o José da Ninha na praia logo ali depois da guarita. No céu, a lua ilumina o resto que resta da humanidade.

(Com Zeca Pagodinho)


Zé Geraldo

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