Por Ronaldo Faria
Sua silhueta transborda na bacia
d’água refletida no luar perdido entre nuvens e a fria brisa da madrugada.
Seminua, cantarola versos e prosas. Passo sobre o passo, pé entre a relva e o
silvo do vento nas árvores que parecem serpentes ausentes de uma toca qualquer.
É um misto de mulher e magia, volátil na plenitude de quem descobre, na
solidão, sua inesquecível orgia solar. Vez ou outra, um grito. Presságios de
novos versos, lamentos certos ou gemido em eco. Num canto, um cão ouve tudo submisso, como
padre em sua reza sob o crucifixo fixo na parede sem viço.
Seus cabelos voam rebeldes e revoltos,
volteando como se fosse a noite um vagão de trem: para e segue, solta fumaças e
prossegue na escuridão de onde nem "Deus" sabe de onde vem. Seus olhos, negros,
se misturam ao negror que ilumina aqui ou ali um ponto de luz, entre velas e
chás madrigais. No meio de tudo, saudades e veleidades, dessas que a gente
desanda a cantar com a voz embargada de choro e emoção na viola que desembesta
a jogar sons e tons para o nada. Coisa de imagem roubada. Mas não é que nem
imagem de santo, quietinha num altar a tudo ouvir, consternada. Ela se redescobre
nos pedidos do penitente que desanda a chorar. Imagem da emoção, trazida de um
desabafo sem fé. Jogada ao mundo nessa tal de “interné”.
Suas mãos luzem em unhas e gingado na
mesma velocidade de quem recebe um afago. E os abraços assobiam como fossem
parar depois de um soçobrado qualquer, a espera de um braço forte para salvá-la
das ondas que não batiam no porto onde marinheiros perdidos em arrecifes
buscavam uma única mulher ou mulher qualquer. As pernas, pausadas e pesadas no
cansaço gostoso de um dia a mais, se esperneiam mágicas e múltiplas nos
espelhos que escondem sob o xale cor de rosa as virtudes e as inquietudes de
uma história desbragada, embriagada em si mesma. Ensimesmada de tanto ser.
Passarinha na madrugada em ré.
A esmo, valsa enviesa entre pequenas
árvores, uma ou outra gota de suor. Pirilampos pirilampam reluzentes, desviando
do seu balé enigmático e ausente. Assim, no tanto que um assim pode ser passado,
viaja para o futuro, brinca de presente. Se torna, no agora, um ser ausente,
transeunte feito tanta gente. E ninguém a via entre os mil mundos proscritos
num cantinho qualquer de quintal urbano, desses que a gente sonha ser nosso
naco de terra última, íntima e uterina. Coisa de mulher meio menina. Coisa de
violeiro entre um gole e outro. Coisa de poeta entre a glicose e a angina. Ser
romântico, que deságua a rima na tina.
Dessa forma, em acordes harmônicos e
sinfônicos, recortes sinceros e histriônicos, solicitudes e virtudes desiguais,
ia ela a brincar de bailarina e razões irreais. E o tempo parava, sorumbático,
a se perguntar por que devia passar. Afinal, poderia parar nesse momento e, a
descer rio abaixo, fazer-se poesia onde tudo houvesse, menos lamento. Na
verdade, quem sabe até, pudesse, terno, sentar num bar de esquina e se
encharcar de bebidas, dessas que a gente chama de mé. Ouvir moda de viola e prosa
penitente, indigente à vida de cada um. Coisa de cantiga de roda, pares em
volta, palavreado miúdo e inacabado, achado num baú perdido no canto onde não
cabe nem colher.
Mas, se toda a eternidade ainda me
fosse dada, nessa terna insensatez da morte marcada, certamente não conseguiria
descrever a valsa da mulher que, para uns, era meramente louca, para outros a
poetisa da madrugada. Mas, no silêncio impertinente que se mistura em sons descalços
na grama e soluços poucos e parcos, esparsos, o bailado vai acabando. E as
damas da noite se fecham em pétalas brancas, como fossem fêmeas domadas em
açoite. No mundo, os primeiros raios de sol brincam de querer raiar. Tudo para,
no fim, num derradeiro alento, se dedilhar e dizer impoluto e sagaz: “Êta, que
beleza poder a vida dos outros, em quadrinhas e trovas, sonetos e rosas, a
felicidade deles roubar!”
Escrito sob a magia de
um “Esbrangente”, de Roberto Côrrea, Badia Medeiros e Paulo Freire. Trio bom e
cordeado em violas, com muita semente que só quem rega todo o dia pode ver nascer.