quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Sob o som de Nando Reis

Por Ronaldo Faria


Os olhos aos poucos falham. Haverá farofa a ver logo ali do depois? Na troca de óculos constante, a frustrante certeza de que falta pouco no oco viver. A incrustrada verdade que voa a saber que não haverá volta. Na blasfêmia da rotina de cada segundo, a falta do tal centro geodésico.

Liberto de vestes etéreas, sem, porém, vetusto ser, Camilo caminha em si mesmo. Dá voltas nas tantas curvas, esquinas, ruas, avenidas, estradas cheias de pó da saudade. Sua roupa tem rasgos do tempo, costuras feitas a mão, dessas que a gente fura os dedos com agulhas de costurar feridas e buracos que nunca fecharão. Quase tosco, antropófago de si mesmo, suicida de uma história, vê que o cérebro, aos poucos, está a apagar. Hoje, sai a vagar claudicante e arfante por não ter aonde chegar. Entre pesadelos enegrecidos e desejos proscritos, vive o pouco que decidiu sobreviver.

-- Até quando, me perguntaria o Armando...

O tal Armando era o último amigo de Camilo. Conhecido de anos muitos atrás, desse tempo que hoje apenas a saudade traz. Não fique, além disso, porém, raro leitor. Armando há muito já se foi do mundo dos vivos. Talvez agora esteja em algum lugar de um céu qualquer a ver seu amigo professar profecias iniquas e inexistentes na realidade que ainda há.

-- Brinde procê, mano velho!

 Com disco na vitrola, Camilo caminha a esmo na madrugada seca e insólita.

-- E se o homem acabar com a Terra? Se ela nos autodevorar por tudo aquilo que fazemos com ela? Se um louco resolver um botão apertar? Se o coração nesse próximo segundo resolver parar?

Perguntas. Mil perguntas a assuntar. Era isso que Camilo tinha para pensar. Amou em vida o que, aquilo e quem pôde. Mais não o fez foi porque não conseguiu.

-- Mas com o que tinha, botei pra quebrar...

Liga a tevê, muda de canais de forma enlouquecida e sôfrega. Não para sequer um minuto em qualquer um deles ficar. Surgem rostos, vozes, obuses de uma guerra externa, anúncios de margarina feliz, atores e atrizes a volatizarem em gamas de pequenas luzes. Para ele, nada mais serve de alento. Camilo apenas espera uma veia estourar no cérebro, um pulmão deixar de se encher de vento, o coração decidir descansar, os olhos fecharem para nunca mais precisarem de óculos de lentes e armações. Do lado de fora, aforismo de tudo, uma chuva cheia de relâmpagos se arma para cair. Quieto, levanta, vai até a cozinha e abre outra garrafa que embriagará sua dor. Na secura do tempo a fumaça de vapor volatiliza a vida...

Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...