sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Piazzolla/Mulligan: uma reunião de cúpula

Por Edmilson Siqueira

Um disco gravado em 1974 - lá se vai quase meio século - ainda hoje faz a cabeça de muita gente. É o registro do encontro entre o gênio do "nuevo tango" argentino, Astor Piazzolla (1921-1992), e o saxofonista de jazz norte-americano Gerry Mulligan (1927-1996). O disco recebeu o nome de Summit em inglês e Reunión de Cumbre, em espanhol. Ou também Tango Nuevo, como foi chamado em alguns países. Pra nós, Reunião de Cúpula fica de bom tamanho, afinal, são dois expoentes, cada qual com seu particular talento, juntando suas qualidades e nos brindando com quase 40 minutos (os LPs tinham uma limitação de tempo bem inferior aos CDs) de uma música que nos leva por distantes fronteiras de um mundo dividido, mas que poderia se juntar e produzir coisas belas. Acho que essa é uma das mensagens possíveis do disco: a Argentina que estava, até o ano anterior ao da gravação, sob uma feroz ditadura militar (como quase toda América Latina e no Brasil prosseguiria até 1985), e um dos seus mais inquietos artistas, vivendo na Europa, se junta a um norte-americano e, do encontro, sai um disco que, quase 50 anos depois, é exemplo de como a boa música transcende ideologias e agrega muitos valores ao ser humano. 

O disco, eu diria que é mais de Piazzolla que de Mulligan e isso talvez se deva à forte personalidade do argentino e também ao fato de que ele compunha sua obra, enquanto Mulligan, que também compôs, mas não muito, preferia ser um instrumentista. E era dos grandes. 

Assim, das oito faixas do disco, apenas uma é de Mulligan. Nas outras sete, Piazzolla desfila seu repertório "tanguista", porém cheio de referências universais, numa mistura que, feita com capricho e talento, o colocou no centro do cenário da música instrumental da segunda metade do século 20.  

O disco foi gravado em três dias de setembro e quatro dias de outubro em Milão, Itália, onde Piazzolla vivia à época. No estúdio, uma banda moderna, eletrificada, com piano Fender Rhodes, órgão Hammond, duas guitarras elétricas, bateria e percussão, acrescida de um trio com violino, viola e cello acústicos, formou a base para que Piazzolla e Mulligan desfilassem melodias, arranjos e improvisos na viagem musical que se propuseram. 

Piazzolla se encarregou dos arranjos todos, mas percebe-se que sua preocupação com o sax tenor de Mulligan é grande: em momento algum o jazzista fica sem parte importante do solo ou dos improvisos. A camaradagem entre os dois fica evidente e só melhora tudo. 

O clima sombrio da primeira faixa - Twenty Years Ago - dá o mote para o disco, embora haja nele momentos de complexa estrutura musical. A divisão dos trabalhos - o bandoneon e o sax às vezes solando, às vezes casando-se perfeitamente, aponta para uma sequência de prazeres auditivos. 

Close Your Eyes and Listen, a segunda faixa, assume, logo de cara, ares de uma balada romântica ao estilo Chet Baker, com o sax comandando a sessão no início e, depois, dividindo com o bandoneon a tarefa de completar a música, improvisar e torná-la, inclusive, mais alegre. 

A próxima faixa - Years of Solitude - é a mais famosa de Piazzolla no disco. Feita para o espetáculo musical Libertango (também gravado em disco), é a faixa de maior impacto, com marcante percussão que delineia a bela melodia, onde se juntam, no solo, sax e bandoneon, deixando sua massa sonora mais forte.  

Deus Xangô foi feita especialmente para o encontro entre os dois. Nela, Piazzolla expõe um clima misterioso, numa forte presença rítmica que cresce e dá a base para todo o resto, tanto para o bandoneon quanto para o sax, que dividem os solos.  

Twenty Years After não se trata de uma continuação da primeira faixa. É outro clima, muito mais para tango que para jazz, uma música ligeira, que vai para todos os lados possíveis, como a buscar um canto onde possa se instalar, o que parece acontecer na parte final, quando o ritmo alucinante é contido por alguns momentos, para depois voltar àquela urgência. 

A única faixa composta por Mulligan parece ser uma homenagem a Piazzolla: Aires de Buenos Aires. Obviamente, o espírito jazzista se sobrepõe, mas é o bandoneon que comanda toda primeira parte. A segunda parte, mais lenta, traz linda melodia.  

Reminiscense, a sétima e mais longa faixa do disco (6m30s), tem a estrutura clássica de Piazzolla: um começo vibrante, com bateria marcante, até uma espécie de ápice, quando a melodia se desmancha e alguns elementos psicodélicos antecipam a segunda parte, composta por longas frase do bandoneon e do sax para, claro, tudo voltar ao princípio, num ritmo quase frenético a caminho do fim. 

A música que dá título ao disco, encerra os trabalhos: Summit, com pouco mais de três minutos e meio, é uma síntese mesmo do encontro: vibrante do começo ao fim, tem elementos latinos e jazzísticos. Piazzola e Mulligan se despedem em alto estilo, proporcionando um grand finale a um disco excepcional, fruto do talento e da criatividade de dois grandes artistas.  

Esse disco está disponível para ouvir na íntegra no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=OLiJwjc6F1A 

Zé Geraldo

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