sábado, 22 de janeiro de 2022

Toots e seu Brazilian cake (1)

Por Edmilson Siqueira

A ideia deve ter sido de Miles Goodman e Oscar Castro-Neves. Convidaram o grande gaitista de jazz Toots Thielemans, colocaram na parada a gravadora de música instrumental Private Music, de Los Angeles, e reuniram um time de artistas brasileiros num trabalho primoroso de escolha e acertos de agendas. 

Luiz Bonfá, João Bosco, Chico Buarque, o próprio Oscar Castro-Neves, Dori Caymmi, Djavan, Elaine Elias, Gilberto Gil, Edu Lobo, Milton Nascimento e Caetano Veloso. É mole? E com cada um deles Toots Thielemans gravou duas músicas que resultaram em dois discos que, de tão ricos de intepretações e arranjos, serão mostrados aqui em duas colunas seguidas. 

O trabalho todo, feito em 1991 e 1992, recebeu o nome de The Brasil Project e, no segundo disco, Toots já o chamou de "Brazilian Cake", pois ele considerava uma delícia tocar aquelas músicas todas ao lado de seus autores, o que deu um brilho todo particular à performance.

Toots era um artista já consagrado mundialmente - o melhor gaitista de jazz do mundo, segundo muitos críticos - ganhou prêmios nos EUA raramente concedidos a estrangeiros (ele nasceu na Bélgica) quando se dedicou ao "cake" brasileiro. Ele amava a música brasileira. Tanto que gravou um disco, em 1969, na Suécia, com ninguém menos que Elis Regina, que se chama Aquarela do Brasil e que será assunto nesse blog dia desses, pois é uma obra prima de ambos. 

Nos dois discos, 26 músicas, 25 delas brasileiras, com os autores na gravação e uma delas, Bluesette, de Norman Gimbel e Jean-Baptiste Thielemans (nome deToots) onde nove brasileiros participam e com letra em português também, de Ivan Lins.

O primeiro disco abre com Começar de Novo, com a gaita fazendo uma longa introdução, já demonstrando toda a qualidade do improviso que sobrevoaria todo o disco. Quando Ivan começa a cantar a primeira estrofe, percebe-se sua emoção depois de tão nobre interpretação de sua música. O arranjo, acertadamente, reserva apenas uma pequena parte da música cantada para Ivan. O astro é Toots e sua incrível gaita. 

A segunda música já ostenta um ritmo mais marcante. É Obi, de Djavan, que acompanha Toots ao violão e também canta sua música acompanhado de Toots, numa harmonia singela e gostosa.

Oscar Castro Neves, produtor do disco e também grande violonista e compositor, entra com sua Felicia e Bianca, apenas instrumental, com, além de Toots e solo de guitarra de Lee Ritenour, Mark Isham no trompete e Cassio Duarte na percussão. 

A famosa canção O Cantador, defendida por Elis Regina num festival da Record, onde ela ganhou o prêmio de melhor intérprete, vem a seguir, com o autor da música, Dori Caymmi (a letra é de Nelson Motta). Com seu vozeirão, Dori inicia a dolorida e bem resolvida letra de Nelson, apenas a primeira estrofe para que a gaita de Toots complete o trabalho com delicadeza e com improvisos que, no talento do gaitista, parecem óbvios de tão belos. Dori volta pra completar a música cantada, abrindo espaço novamente para Toots encerrar com a competência de sempre. 

Chico Buarque e sua Joana Francesa, uma delicada canção com toques, obviamente, franceses, não poderia se encaixar melhor no som da gaita de Toots, já que o acordeom, de som semelhante, é instrumento recorrente da música francesa. Chico só introduz os versos e deixa para Toots continuar, até voltar, misturando francês e português, naquelas soluções linguísticas que a genialidade de Chico sabe encontrar. E com um gênio da gaita como Toots, a canção acaba ganhando uma roupagem de gala.

O samba volta a imperar, agora mais forte ainda, na voz e violão de João Bosco, com Coisa Feita, dele, de Aldir Blanc e Paulo Emílio. Toots o acompanha na letra inteira, até assumir o arranjo e completar, sem perder o ritmo e assumindo a melodia meio complicada do samba em inspirado solo. 

A melodiosa Preciso Aprender a Só Ser, uma variação como uma nova "filosofia" que Gilberto Gil criou sobre o sucesso dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle (Preciso Aprender a Ser Só), cai como uma luva pra longos solos de Toots, numa gravação marcante, onde Gil mantém o tom da sua interpretação, deixando para o gaitista a trabalho de colocar a cereja no bolo.

Fruta Boa de Milton Nascimento e Fernando Brant é a próxima canção que ganhou roupagem nova e de luxo no disco, "apenas" com os teclados de Gilson Peranzzeta, a voz de Milton e a gaita de Toots. Um momento marcante. 

Um dos primeiros sucessos de Caetano Veloso foi a música escolhida para a nona faixa: Coração Vagabundo, que ele fez ainda na Bahia, antes de "descer" para o Rio e São Paulo. Aqui Toots inicia a canção com alguns floreios que a triste melodia permite, acompanhado pelo violão batido de Caetano, que entra cantando sem maiores alardes, comme il faut pro clima. Toots vem em seguida com um solo primoroso, inventando nova melodia sem perder a ambiência. 

O sucesso mundial de Luiz Bonfá, Manhã de Carnaval, é outra música apenas instrumental do disco. E nem precisou ganhar as palavras da magnífica letra de Antonio Maria para que nós brasileiros, ao ouvirmos o disco, lembremos dela. O solo inicial é do violão de Castro-Neves, depois entra a gaita, com a cozinha rítmica ganhando espaço conforme aumentam os improvisos de Toots. Um show. 

Casa Forte eleva a temperatura novamente do disco, com Edu Lobo, seu autor, ao violão e vocal, abrindo os trabalhos para a gaita entrar acompanhada de forte percussão. Em seguida dá lugar aos improvisos de Peranzzeta nos teclados, para numa mistura de voz, violão, gaita e teclados, preparar o final da forte música de Edu que, pelo que sei, jamais ganhou letra.

Eliane Elias, a pianista e cantora brasileira que se firmou no mundo jazz nos EUA, é a autora de Moments, pujante balada jazzística que Toots e o piano de Eliane, com um discreto baixo de Marc Johnson, se incumbem de interpretar com elevado talento, em dois minutos e 32 segundos. 

Por fim, nesse primeiro disco, aquela música em que a trupe brasileira do disco homenageia Toots, cantando a sua Bluesette, num ritmo de bossa nova, por 9 minutos e 39 segundos. É um festival de solos e vozes, em português e inglês de quase todos os participantes do disco com a gaita de Toots entrando eufórica e algumas passagens. 

O próximo disco, que comentarei no próximo artigo, é tão bom quanto esse, gravado um ano depois do primeiro, num projeto que mostra a importância de nossa música e a influência que ela exerceu e exerce sobre muitos dos maiores músicos e cantores do mundo.

Esse CD está à venda no Mercado Livre, a preços entre 50/60 reais. Ele pode ser ouvido no Amazon Music, no Spotify e no Deezer.

Zé Geraldo

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