quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Pra Pedro parar por aí, mesmo sendo João

 Por Ronaldo Faria


“Mas, João Piedade, vai economizar logo na dentadura?”
A voz do protético entra por um ouvido, faz meia volta e volta e meia e sai pelo outro canal auditivo.
João, homem de poucos centavos, sertanejo acostumado a ver seu povo banguela, faz um sinal afirmativo. E sai a correr em suas saudades, dos tempos em que as abelhas africanas voavam sobre a sua cabeça. “Ainda bem que meu padrinho me avisou quando visse o enxame me jogar no chão e ficar quieto”. Não fizesse isso no passado sequer teria provido na mulher prenha um feto.
E proveu um bando de dez, oito vivos e dois mortos ainda antes de gente virar. “Sorte deles de não verem esse mundo girar”.
Em sua volta a feira fervilha. Moscas voam entre carnes dependuradas. No chão, cachorros esperam um sebo cair.
-- Vem minha gente, oxente que hoje é dia de economizar!
Para João Piedade, maldade só na cabeça dos outros. Outrora quis ser gente, dessas que consegue em verve ser Carnaval o ano inteiro. Virou quarta-feira de cinzas. Mas, tudo bem, sempre enganou o mundo naquilo que dizia ser.
-- Seu Clemêncio, põe duas doses de pinga aí. Uma pra mim, outra pro santo.
Na querência que a demência traz, tomou uma, duas, três, dez. Até o santo de coração seguiu cambaleante nas ruas estreitas da comunidade.
-- Obrigado Seu Clemêncio. Eu, embriagado, te proclamo aos céus!
Daí para a frente, nem o frontispício que mais se jogasse na arquitetura contemporânea iria saber ser. Na cama do hospital, na sorte de quem consegue sair da recepção antes de moer a vida e morrer, João Piedade, aquele que tinha tudo, menos maldade, dormiu o sono dos justos, na injustiça que a felicidade para poucos se dá.

Zé Geraldo

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