quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Rita Lee e o Celso Fonseca

 Por Ronaldo Faria

Parcimoniosa paródia de afetos e féculas a ser comida devagar, para não empapuçar. Unhas das mãos cortadas à beira e untadas de saliva para não machucar. Coisa rara.

-- Mocinha, posso falar com você?

A voz do rapaz, descuidado de si e da vida, ecoa marginal à esquina da cidade grande e engrandecida de concreto e tinturas desiguais. Vai para longe da ladeira que sobe ou desce, à vontade das pessoas, e para no semáforo que acende e apaga cores e nada.

-- Falou comigo?

A voz da menina e mulher, linda como uma canção que se entoa sobre o mar, faz do anoitecer um chamuscar de cores e odores. Tem a batata a assar quieta na chapa untada de temperos e esmeros, a nuvem derradeira que se perfaz altaneira para além da vista.

-- Foi. Falei com você. Não resisti a tamanho charme.

A voz do homem ainda meio menino, aprendiz no esmero do amor, se sobressai diante dos carros que teimam em acelerar no derrear da curva. Para ele, pouco importa se existe meio ou mesmo fim. Na solidão de um solilóquio sequer que venha o que vier.

-- Obrigado pelo elogio. Hoje está difícil de ouvir.

A voz da mulher sai feito nó no peito, sem ar quente ou trejeito. Se introjeta de entremeios e afetos parcos, parcimoniosos e vorazes. No fim de tudo, falácias, sofreguidões, bons e maus motivos. Jeito de quase nada como andarilho a descer barranco qualquer.

-- Foi de coração, juro. Para o que der ou vier...

A voz cadente e incandescente, quase indecente, meio semente de planta qualquer, sai do peito rasgado tantas vezes e costurado a seco. O sangue que tanto desceu, exangue e quente, agora parece feito de cubos de gelo que cristalizam do vapor que a nuvem não quer.

-- Obrigado. De fato, hoje é raro ouvir um elogio puro.

A voz menina que se fez mulher praticamente sozinha surge como beijo à urbe, urge. Aos poucos, os roucos prazeres se farão e se fartarão de delícias e sevícias mil. No interregno entre a vida e a morte, quem tiver um grande amor pode se dar regado no sagrado da pura sorte.

-- Aceita um café, uma cerveja, uma água, um beijo?

As vozes dos dois se unem uníssonas e sonoras. Alhures, finais e fetais. Como um tamborim a encher de acordes um frágil samba. Ao largo, pessoas passam rápido pelo casal que agora se junta e rejunta feito unha e carne. Perto, o vendedor jura que o espetinho não é de gato.

Parcimoniosa paródia de fatos e fotos, de felicidades poucas e toscas, roucas à garganta que se agiganta no meio do quase pouco. Palavras surdas e soltas. Coisa rara.


Zé Geraldo

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