segunda-feira, 15 de maio de 2023

Montenegrando

 Por Ronaldo Faria


Carótida exposta e posta à mesa. No mezanino, o homem ouve os barulhos da rua. Atordoado, revoa saudades e fatos. Fátuas lembranças mortas e desgarradas, tragadas pelo tempo ou pelo destino. Em desatino, a história de um pequeno menino. Um rincão no recôndito que pode ser o menor e mais escondido lugar do coração. Talvez um verso transverso e acarinhado de dedos próprios a correrem os cabelos a embranquecer. Uma lívida face a refazer esquinas e dobrar ruas retas e sem fim. No sol poente, a chuva que molha carros rápidos e pessoas que tentam se proteger na árvore mais fina da praça. Um perdão nunca dado, o filho torto a voar entre as nuvens esbranquiçadas de poeira de carvão, a entrega de duas almas para a paz. Na eterna prisão do ser, cataclismos fazem tudo revirar. Zarolha, o rapaz olha para o mar. Ao longe, vê um barco com seus degradados a jogarem remos acima e abaixo. No limite entre os raios coloridos e os ruídos de pássaros, as velas acesas ao acaso namoram o vento na maior calmaria da vida.

No sertão crispado de mortes e pequenos fetos que viraram fátuas pétalas a forrarem o solo seco, vozes vazias e cavalos magros e tordilhos se foram a trotar em dança as valas mortas. No salão, numa valsa, a bela brindava corpos e notas, ia às mesas mais tortas de copos e garrafas pesados, sentava-se com seu vestido de um azul lilás, bebia um ou dois goles, engolia palavras e frases, se esvaziava de sangue no choro escorrido dos olhos carcomidos pelo vendaval. Na cozinha, o mestre-cuca sujava de gordura o seu avental. Lá fora, entre aforismos e calçadas cheias de gente a esperar o trânsito parar, luzes chapiscavam de negror as gotas que brincavam de se atirar no chão. No todo, um ônibus, desavisado da poesia do tudo, as jogava para longe, conspurcando de realidade o quadro final. Num apartamento acima, onde se guardava a morena mais brejeira do lugar, duas mãos trançavam de ilusão e emoção a pincelada final. Da portaria, o interfone chamava o sono para acordar. A vida chamava para o tempo se fazer renascer.

Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...