quarta-feira, 15 de maio de 2024

Parceiros e parcerias

Por Edmilson Siqueira




Há muitas histórias de parcerias na MPB. As famosas, como Tom e Vinícius, João Bosco e Aldir Blanc, Toquinho e Vinícius, Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito e muitas outras, estão cheias de histórias, pois nem sempre as parcerias foram aquela coisa precisa, de um fazer a letra e outro a música, como é mais comum, ou um músico botar uma melodia num poema já feito. 
Há parcerias, por exemplo, que o autor da letra nem conhece o autor da música. Foi o que ocorreu com Vinícius de Moraes, quando recebeu uma visita no camarim de um show com muitos artistas. Era Gerson Conrad, de um grupo novo, que nem gravação tinha ainda. Gerson, nervoso diante do poeta, pediu licença para mostrar uma melodia que ele havia feito para um poema do mestre e, claro, "se ele não aprovasse...". Vinicius quis saber qual era o poema. "Rosa de Hiroshima", disse Gerson. Os olhos do poeta brilharam: "Senta aí, mostra como ficou". Ao ouvir a pungente melodia, os olhos de Vinicius se encheram de lágrimas, ele abraçou Gerson e disse: "Meu filho, essa música será um grande sucesso". E foi mesmo, no primeiro disco do grupo Secos & Molhados, que Gerson ajudara a criar, e na magnífica interpretação do "crooner" Ney Matogrosso.  
Chico e Jobim têm duas histórias boas. A primeira ocorreu com "Zíngaro", que Jobim havia feito e gravado com uma grande orquestra, numa igreja em Nova York. Ao fim da gravação, todos os músicos da orquestra, americanos, aplaudiram de pé o maestro pela beleza da melodia. Mas isso é outra história. 
Acontece que ele deu a música pro Chico botar uma letra e, alguns meses depois (Chico era devagar às vezes), ele apareceu com Retrato em Branco e Preto. A bela poesia convenceu Jobim ao ouvi-la cantada pelo próprio Chico. No fim, o nosso maestro soberano só teve um senão com a letra: "Chico, o correto não é retrato em preto e branco?" Chico respondeu: "É, Tom, mas aí eu vou ter de mudar a letra e vai ficar assim: 'Vou colecionar mais um tamanco, outro retrato em preto e branco, a maltratar meu coração...'". Jobim achou melhor não mudar.
Outra música que Jobim deu a Chico foi Wave, hoje um sucesso mundial. Chico ouviu a música na casa de Tom e, antes de levar a fita embora, cantarolou pro Tom: "Vou te contar..." A primeira frase estava feita. Só que o resto demorou. Demorou tanto que Jobim, precisando gravar, fez o resto da letra, gravou e jamais deu parceria pro Chico. Numa boa, claro, pois o próprio Chico contou a história rindo e, com certeza, com saudade do parceiro e amigo.  
Com o mesmo Chico, só que desta vez na companhia de Toquinho e Vinícius, ocorreu outra parceria curiosa. Estavam os três na casa do Chico e, ele e Toquinho estavam terminando uma composição. Assim que acabaram, mostraram pro poeta. Era Samba de Orly. Vinícius gostou da música, mas disse que a letra estava precisando de um "retoquinho". Os dois lhe deram a folha de papel com a letra que foi para um canto da casa. Voltou logo depois: "Só botei uma frase, no lugar de "pede perdão pela duração dessa temporada", mudei para "pede perdão pela omissão um tanto forçada". Os dois gostaram, pois era uma crítica mais explícita à ditadura militar que o Brasil vivia e da qual todos eles eram adversários.
Algum tempo depois, estão Toquinho e Chico no estúdio pra gravar o Samba de Orly. Estavam ainda ensaiando com o conjunto, quando o diretor da gravadora abre a porta e diz: "Para tudo. A censura cortou a letra, proibiu uma frase". "Que frase?", quiseram saber. "Omissão um tanto forçada não pode. Vocês têm de substituir". Chico e Toquinho se entreolharam e disseram que já tinham a frase reserva. Voltaria a letra original. Mas os dois resolveram avisar o poeta que a frase dele havia dançado. Toquinho ligou ali do estúdio mesmo: "Poetinha, a sua frase no Samba de Orly, a censura cortou". Vinícius ficou chateado: "Ah quer dizer que eu perdi a frase que botei?" Pois é, poeta, perdeu". Vinicius manteve a fleuma: "Bom, eu perdi a frase, mas não perdi a parceria, né?" Claro que não", respondeu Toquinho e ele e Chico mantiveram o nome do poeta como um dos autores da música. E fizeram o certo. A ditadura caiu, a censura acabou e a música foi regravada e é cantada por aí com a frase que Vinícius mudou.

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