segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Bach na viola caipira e a festa na roça

Por Ronaldo Faria

Imagine o compositor clássico, cravista, regente, organista, violonista e violista  Johann Sebastian Bach a saber que a sua obra viajou do barroco europeu para as cordas de uma viola caipira à terra distante chamada Brasil no longínquo 2017. Ou seja, 267 anos depois de sua morte. Será que ele entenderia a proposta de tal homenagem? E mais, saberia aplaudir a amplitude de tal gesto? Com certeza sim. Afinal, nas cordas de Neymar Dias isso virou realidade e obra de arte. Um Bach que ganha expressão própria que ele não imaginaria existir.  

Artista que toca com maestria viola caipira, guitarra, violão, baixo elétrico, guitarra havaiana e bandolim, Neymar Dias mostra em Feels Bach que a boa música é universal e transcende tempo e instrumento. Ao todo são 20 faixas. Desde as conhecidas Jesus, Bleibet Meine Freude (Cantata BWV 147) e Prélude, Fugue Et Allegro (BWV 998) a composições que não são usuais aos ouvidos daqueles que não têm em Bach um sinônimo de audição constante. No meu caso, acho que ele foi o maior compositor erudito. Talvez por ser um fã do barroco, do som do cravo e daquilo que há entre o sentimento e o silêncio, o sacro e a alma de cada um (apesar de ser ateu). A obra de Bach me traz essa transcendência num espaço tão pouco próprio a reviver sentimentos e paz – a modernidade atual. Mas Neymar Dias transpôs todos os limites dessa geometria sensorial e nos trouxe o erudito em som maior.

Eu o descobri num programa da Rádio USP chamado Revoredo (https://jornal.usp.br/radio-usp/duos-apresentam-a-viola-caipira-e-o-acordeom/). Nele, três duos de viola caipira e acordeão foram apresentados: Valdir Verona e Rafael de Boni; Thiago Paccola e Jonecir Fiori; e Neymar Dias e Toninho Ferragutti. A junção de Neymar Dias com este acordeonista nascido em Socorro (SP) gerou inclusive uma indicação ao Grammy Latino de 2014, concorrendo na categoria de melhor álbum de música raiz com o Festa na Roça. Toninho Ferragutti é outro instrumentista que perpassa a linha da genialidade ímpar.

Seu pai foi Pedro Ferragutti, compositor socorrense que era amigo de meu sogro, o maestro e músico de vários instrumentos Francisco Costa. Enfim, expandindo fronteiras musicais neste texto, o CD Festa na Roça, com suas 14 faixas, é outra pérola mágica que merece ser ouvida em comunhão com aquilo que a arte e o interior do Brasil têm de poético e definitivo – a beleza de dois instrumentos que chegaram a nossas terras com os colonos portugueses e ganharam vida e sonoridade próprias além das plagas lusitanas.  

Nele estão clássicos da música sertaneja tocados de tal forma que qualquer apartamento de cidade grande perde a sua urbanidade para virar um alpendre de casa cercada de serras, pássaros a gorjear e um cigarro de palha a pedir uma dose de aguardente. Tudo num universo de deleite e paz. Um CD que eu defino como marco obrigatório para quem ama o que é bom. Eu, carioca da gema, me rendi ao sertanejo clássico, de raiz, com suas violas e acompanhantes instrumentais, há muito. Talvez, em parte, pela infância nas perdidas fazendas que se banhavam no Rio Real, entre Sergipe e Bahia, à luz de lampião e cheiro de queimadas e grama molhada, a ouvir sanfoneiros nas noites de lua cheia.

Enfim, ficam as dicas, nas cordas e mãos de Neymar Dias: um passeio imperdível entre o erudito e o sertanejo. Assim, há opção para todos os gostos. Onde o principal é saber que a viola com suas dez cordas brincando de cinco pares está mais do que bem representada. Que o instrumento e seu par, aquele que o toca como se ambos fossem um só, são corpo e alma. E viva a eternidade das emoções. Onde São Gonçalo, padroeiro dos violeiros, fica deitado numa nuvem distante, de botas, com sua calça azul e blusa verde, capa marrom e chapéu preto, a se deleitar com aquilo que vida ainda tem de viver e sonhar.

O CD sobre Bach e o Festa na Roça você ouve no Spotify, no Deezer e no Amazon Music. O barroco ainda tem no https://discografia.discosdobrasil.com.br/discos/neymar-dias-feels-bach-viola-brasileira-solo

Zé Geraldo

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