quinta-feira, 16 de maio de 2024

Tom Zé na furdência

 Por Ronaldo Faria

 


-- Amanhã é dia de birita. Segura a onda, Furdêncio...
Ninguém, na verdade, sabe como um pai e uma mãe põem o nome do filho de Furdêncio. Algo deve ter sido pra foder com a vida do rapaz. E o homem do cartório deveria estar nos dias de ligar um foda-se. “Querem essa merda, bosta seja feita”, pensou. Ele, o homenageado, sabe-se lá com o que, era operário de uma retífica. Mexia com motores, apesar de o seu estar na meia boca, quase parando. Seu amigo era Lupércio, da Silva. Apelido, Silva. Coisa sui generis, com certeza.
-- Furdêncio, você sabe que o dia seguinte é um maremoto quando a espuma da cerveja sobra além do explicável para a realidade... Haja ressaca.
Mas o operário cheio de questões e senões não está nem aí. O dia de agora foi de trampo além da conta diante das contas que estão sobre a mesa do barraco para pagar. “A tal de Serasa me salva desta vez?”– se questionava imperfeito e imprevisível. O importante não era o amanhã. Era o agora. A hora. A razão de viver os poucos segundos da tarde tardia. Acordara às quatro da manhã nas maltrapilhas horas da angústia e da sina. Pegou o trem da CPTM lotado como sempre, gente na frente, do lado e atrás de mais gente. Alguns já suados por antecedência. Outros a ressonarem como ninguém. “Pra puta que pariu nascer pobre”, pensou.
-- Furdêncio, você ouviu o que eu falei?
Silva era um chato bem aprumado. Crente da igreja de algum salvador da vida do pastor e da família e sua amante, ele acreditava que o importante era o instante da morte, quando encontraria o senhor a quem ele dedicou dízimos e crenças. Arrumadinho, indissolúvel na volatilidade da realidade, urgia de um porre redentor. “Senhor Manoel, traz uma água sem gás e natural” – pedia aos perdões para o dono do bar. A falta de uma exclamação na sentença já dá conta de quem ele era.
-- Silva, vai tomar no cu! Me deixa curtir minha vida medíocre e real!
No derredor de uma dor sem ninguém dar jeito, um fundo de bebida no copo reflete a cor que o sol brilha quente no logo depois. Não há como não amarelar sentimentos e se prostrar diante de si mesmo na busca volátil da felicidade que urge a pedir nova idade. Furdêncio, em sua imaginação que vaticina a sina dramática da apatia, projeta um futuro com salário melhor, uma mulher que fale igual a ele, um enredo de novela que o novelo da vida já diz degredado do destino.
-- Furdêncio, vou ter de ir. Tenho culto logo mais.
-- Vá com seu deus. Eu ficarei por aqui com meus demônios.
Na rua poeirenta sem a chuva que o céu faz questão de não dar, as pessoas se achegam ou se recolhem a depender de cada dor. Uma ou outra mulher cheirando a perfume performa com o corpo para garantir o almoço de depois e a janta acompanhada de um qualquer, a ser a si mesma, dona de seu corpo, seu desejo e querer. Furdêncio, sem saber que ele é que o coadjuvante da ação, acredita que o concreto de São Paulo deu um pulo na sua vida ávida de ser fina e bonita. Ledo engano. Cigano da felicidade, ele continuará a ouvir Tom Zé a dizer que “vendeu fiado pra Deus, vai receber depois da morte”.
No dia seguinte, um blogueiro barato e sem seguidores posta que um baiano morreu atropelado na esquina da Ipiranga com São João: “Ele parecia bêbado e a gritar que Furdêncio era o caralho. Que ele era um operário de motor a matar como uma motosserra as matas que escondiam sua quimera”. Na parada de sucesso, o DJ devaneia no verbo encarnado do sétimo dia.

Zé Geraldo

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