quinta-feira, 21 de março de 2024

Testamento ao som de Marcos Assunção

Por Ronaldo Faria

10/11/2023


Estou bem perto do fim, ou do começo. Eu sei. Talvez só mais um passo, quiçá um tropeço. Um respirar sôfrego, a batida descartável do coração. Decerto, não dará tempo sequer para uma oração. Mas, também, não sou de orar ou pedir e as poucas vezes que o fiz não fui atendido. Talvez, aos mortais, o desejo de um milagre não seja permitido. Mas agora tanto faz.. Aqui nesse mundinho nada mais me atrai ou apraz.

Hoje levei minha filha para passear comigo. Ela estava na frente como sempre, no seu canino rebolar. Ninguém a via, com certeza. Aos olhos do mundo ela estava invisível. Mas eu a via. E conversava com ela. Quem tenha visto talvez tenha se apiedado do velho já caduco, desses que conversam consigo mesmo ou com amigos imaginários. No meu caso, era com uma filha peluda que pisava o asfalto já quente da manhã.

Amigos, já não os tenho em profusão. Na verdade, nunca os tive. E os que restavam já não estão. Fazem falta? Não. Afinal não tenho mais a mínima vontade de interagir com ninguém. Por isso, tanto faz como tanto fez estar aqui ou não. Na verdade, quando este texto estiver no site, em 21 de março de 2024, talvez seja só mais um escrito de quem já se foi sob as chamas de um crematório, agora em cinzas com sua filha.

O certo é que perdi o medo da morte. E para consegui-lo é fácil: é só não ter mais motivos para estar vivo. Se o fim é certo e escrito desde o nascer, não há porque temer. Talvez tenha uma saudade de escrever, beber uma cerveja gelada, ouvir uma boa música, ser. Mas essa saudade logo passará. Onde estiver, “vivo” noutro plano ou em total finitude como deverá ser, estarei com minha Nina, e isso é tudo que faz da morte um renascer.

Mas, se vivo ainda estiver, vamos tocando o tempo que, por ventura, restar. Na procrastinação da eternidade um solilóquio diário há de haver. E novos passeios com a filha sob o céu de um sol escaldante, a revisitar postes e árvores que temos ainda que cheirar ou urinar. E seguir seus passos para onde ela quiser ir. Enquanto não chamarem a ambulância de um hospício para pegar o velhinho da cadela invisível, caminhar...

Zé Geraldo

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