quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Bom de voz e de balanço: Miltinho

Por Edmilson Siqueira

No último 31 de janeiro, o senhor Milton Santos de Almeida teria feito 94 anos. Morreu aos 86, depois de uma enorme, vitoriosa e fantástica carreira que gerou unanimidade entre críticos: foi um dos maiores cantores que o Brasil já conheceu. E, pela sua qualidade vocal, pelo seu ritmo, pela sua facilidade de improvisar, teria feito sucesso em qualquer lugar do mundo. 

Estou falando de Miltinho, um pandeirista e integrante de grupos vocais que virou cantor solo para felicidade geral da nação. Anjos do Inferno, Namorados da Lua, Quatro Ases e Um Curinga, Milionários do Ritmo e Cancioneiros do Ar foram os grupos que tiveram Miltinho no elenco. Com o Anjos do Inferno chegou a ir para os Estados Unidos acompanhando Carmem Miranda. 

Mas ele explodiu mesmo quando lançou, no início dos anos 60 do século passado, o LP Um Novo Astro, gravado com Sexteto Sideral. O nome era premonitório, pois Miltinho se tornou um astro rapidamente: conquistou a todos com sua interpretação única, sólida e cheia de gingado. Nesse disco estava a música Mulher de Trinta (Luiz Antonio), que fez sucesso imediato e o próprio Miltinho gravou em outras ocasiões, sozinho ou, como em Miltinho Convida, gravado em 1997, em que ele divide essa música com João Nogueira, num dos melhores momentos do disco. 

E é nesse disco que vou basear esse artigo. Em 1997 Miltinho já estava com 71 anos e sua voz ainda tinha o brilho de sempre. A Globo/Columbia então resolveu fazer uma grande homenagem ao cantor e produziu um disco em que Miltinho canta ao lado de grandes astros da MPB, um repertório especial de seus sucessos, agora em novas e bonitas versões.

Logo de cara, é Luiz Melodia quem emenda a balançada trajetória de Menina Moça, do mesmo Luiz Antonio que fez Mulher de Trinta. Ambas as músicas estavam no LP de estreia de Miltinho e, regravadas mais de 30 aos depois, ainda comportam versões modernas que lhe caem muito bem. 

A segunda faixa traz Nana Caymmi, com sua voz diferenciada, participando de Canção da Manhã Feliz (Haroldo Barbosa e Luiz Reis) e o encaixe sonoro é perfeito. Mulher de Trinta vem a seguir e ambos, Miltinho e João Nogueira, dão um show de intepretação e entrosamento. 

Com Elza Soares, nossa rainha do samba que faleceu recentemente, Miltinho não gravou apenas Cara de Palhaço nesse disco-homenagem. Gravou nada menos que três LPs que receberam o nome Elza Miltinho e Samba, volumes 1, 2 e 3 e que hoje são antológicos. E todos em seguida, um fazendo mais sucesso que o outro, em 1967 e 1969. Depois, entre 1970 e 1973, gravou quatro com Dóris Monteiro, uma grande cantora que também entendia muito do balanço no qual Miltinho era mestre. São, por fim, sete LPs com aulas de interpretações e de como se faz a famosa ginga brasileira no samba. 

O grande João Bosco é o próximo convidado de Miltinho. Ambos cantam Lembranças (Raul Sampaio e Benil Santos), outro sucesso que tem uma poesia cativante. João Bosco, sempre chegado a um improviso vocal, deita e rola ao lado do mestre. 

O Poema das Mãos (Luiz Antonio) traz um grande sambista cantando um samba canção ao lado de Miltinho: Martinho da Vila, aqui com seu vozeirão grave fazendo um contraponto sensível às divisões diferenciadas que Miltinho faz com a melodia. Outra aula de interpretação.

O MPB 4 comparece com uma verdadeira festa musical. Os quatro cantores fazem com Miltinho um pot-pourri com Bolinha de Papel (Geraldo Pereira), Helena, Helena (Antonio Almeida e Constantino Silva) e Boneca de Pano (Assis Valente).  

O samba de Luiz Reis e Haroldo Barbosa - Notícia de Jornal - junta na mesma gravação Miltinho e Chico Buarque. Apesar da inibição que transparece na faixa, Chico se sai bem ao lado de Miltinho e conseguem passar o balanço amargurado da tragédia de Joana que erra na dose, erra no amor e erra de João.

O samba canção Meu Nome é Ninguém (Luiz Reis e Haroldo Barbos), que chegou até a ser ameaçado pela censura da época (antes da ditadura, diga-se) por sugerir uma noite da "ânsia louca incontida do amor" depois que a luz se apaga, é dividido com Fafá de Belém.

Outro grande cantor brasileiro, que também já se foi deixando importante obra, Emilio Santiago, divide a belíssima Eu e o Rio (Luiz Antonio) com Miltinho.  

Poema do Adeus, outro sucesso que Luiz Antonio compôs para Miltinho, traz a companhia suave e emocionada de Tito Madi.

A dupla Jair Amorim e Evaldo Gouveia não poderia ficar de fora nessa homenagem a Miltinho. É deles Poema do Olhar que Miltinho dividiu muito propriamente com Altemar Dutra Júnior, cuja voz faz lembrar o pai.

A penúltima música do disco tem ares jazzísticos. Miltinho canta Devaneio (Djalma Ferreira e Luiz Antonio) e o intermezzo da canção é feita pelo sax de Leo Gandelman, que invade a melodia em outras possibilidades e dá à faixa um tratamento de jazz que a completa muito bem.

A parceria que rendeu quatro LPs com Dóris Monteiro fecha o grande trabalho. E para tal comemoração nada menos que mais um pot-pourri: Recado, Lamento e Murmúrio, todas de Djalma Ferreira e Luiz Antonio, dão uma amostra do que foram aqueles discos que tanto sucesso fizeram no Brasil inteiro e em boa parte da América Latina.

Num outro disco-homenagem a Miltinho, nesse caso pelos seus 80 anos, feito pela Odeon e que mostra sua fase na gravadora, de 1966 a 1976, há um belo texto no encarte, escrito por Rodrigo Faour onde, entre muitas outras coisas, se lê: "Ele diz que aprendeu a ter tanto ritmo assim com Deus. Não teve professores. Desde menino tinha fixação em pandeiro. Todo Natal seu pai lhe perguntava o presente que queria ganhar, e ele: "Quero um pandeiro!" O pai resmungava: "Outro? Mas você já tem dez!" 

O disco Miltinho Convida pode ser ouvido inteiro no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=AB6DeAOYrNI 

Já a homenagem aos 80 anos, Miltinho Samba e Balanço está em https://immub.org/album/miltinho-samba-e-balanco

Zé Geraldo

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