terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Século que se foi no piano de João Bittencourt

 Por Ronaldo Faria

“Cafajeste”. Essa foi a primeira palavra que saiu da sua boca. Largada no canto da sala, entre um choro e outro, gato a ronronar no sofá com manta de tafetá, Maria não teve outra reação. E lá estava, a afundar pela porta do mundo, o seu marido José. A atravessar a rua rumo ao bonde que passava lamurioso diante da catedral. No barulho dos trilhos, um tanto de etecetera e tal. Era tarde. No céu a lua transbordava de luar o dourado que caía logo ao longe. Quase à mesma distância, um piano dedilhava notas líricas e sons à surdina do amor desfeito. E até hoje ninguém disse se houve erros ou se o coração de alguém deu defeito. Foi tudo feito partituras sem cor. À dor. Talvez um tom em sustenido, uma nota acrescida em cifras sem nexo ou sentido desigual.

Houve apenas o fim de poemas, a dor de Maria, a euforia finda, a desdita inaudita. A querência de uma paixão que deitou em lençóis para se despedir de saudades e sóis. A triste carência de duas mãos sem poder tocar outras duas e a face de um incrédulo calor. Faltam as coxas, os braços a correrem o ventre, o dente cravado entre pernas a morderem um incrédulo torpor. A janela, agora aberta entre cortinas sujas e brancas, dá para o nada que se transforma em esquinas e sinas. Num canto da cena, no coreto em prelúdio, um casal troca carinhos e promessas que, na pressa, corações deixaram de acreditar. Na casa, é hora de se deitar. De esquecer tragédias e histórias de contos que fadas não fazem ou sabem mais escrever.

Afinal, sabia Maria, nem sempre onde há brisa faz-se o mar. No seu porto quieto, sem ondas a bater, marinheiros a tragarem goles de cachaça e salivas de prostitutas brejeiras, partidas e chegadas, apenas o querer imenso que não fecha a chaga. E anos se passaram, dias amanheceram e derrearam, canções se cantaram e se calaram. Cabelos brancos, pintados de dor e ranço, enfim chegaram. A pele tornou-se um grande antro de rugas e réstias de beleza. Na fraqueza das pernas, o tempo parou. E Maria, a tocar o ventre que nunca brotou, antes da morte teve ainda um suspiro de rancor. “Cafajeste”, disse em presto e tosse ao mundo que a deixou. Longe de lá, bem além-mar, José brindava ao infinito o finito gole de outro bar.
 
A ouvir João Bittencourt Apresenta Júlio Reis

Zé Geraldo

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