sábado, 1 de junho de 2024

Noite em tardia orgia

 Por Ronaldo Faria



A fumaça que escapa para o alto vem dos lábios marcados e coloridos de vermelho da boca de Luiza. A luz que a escolheu para se eternizar na penumbra que o bar feito rotunda dá, é quase lúgubre. Fina, em fagulhas de amarelo e cinza, ela mostra o rosto que transcende no silêncio que esbarra na rua em frente – esquecido, retrátil em poucas e nenhuma vida assombrada.
Luiza, fugitiva da fuligem que a estrada do falso amor põe a voar, brinca de forjar olhares de loucos machos em seus desejos transversos e sem versos a recitar. Linda, de vestido vermelho que deixa suas pernas se moldarem de escultura viva, vez ou outra lembra que, outrora, fora cantada em poesia e prosa. Na sua casa, uma fotografia amarelada é sentença malfadada.
Na mesa a poucos metros, perplexo e catatônico, Celidônio se atira na mentira que se tornou sua vida. A amante diz que quer privá-lo de más notícias e o esquece na perene sintaxe da prece. Solitário, vê-se, ele permanece. A performance agora é sobreviver para ver aquilo que ainda vai acontecer. Entregue à própria loucura, soltura de letras e lero-lero, se diz clérigo.
Celidônio é o homônimo de um trágico pseudônimo: é o anônimo. Os garçons não o veem, a cerveja não chega, o mundo prefere não enxergá-lo. No gargalo da garrafa ainda fria, faz sua sina. A mudar de desejos e mundanas, solapa a brincadeira de eira e beira que se tornou sua existência. Na crença nenhuma, viaja na metáfora que é o picadeiro sem bailarina ou graça.
Luiza e Celidônio, porém, no sobretudo que o então dá para o entretanto que habita muito e  tanto e em tudo, contudo, se encontram na fila do banheiro. O lugar, saibamos, nada tem de brejeiro. Há, de fato, um fátuo cheiro. De urina esquecida e cobalto. Na radiação de corpos, surge e urge a química de um elemento do alemão Kobold, duende, demônio das minas.
Se olham e entreolham dos pés à cabeça, cruzando as partes que o íntimo de dois corpos traz à tona quando a nudez detona. Foi como amor à primeira vista, coisa de destino e vida. Agarraram-se lá mesmo. Roçam e tocam, brindam e brincam. A madrugada que os uniu num pueril e insensato pudor os leva à cama mais próxima e próspera. E o restante, naquilo que nunca de fato restou, foi-se à puta que pariu. Logo nascerá um dia em anil.
 
(Sob o som do blues)


Zé Geraldo

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