segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Luiz Tatit, o intelectual da canção popular

 Por Edmilson Siqueira

Quem ouve Luiz Tatit cantar aquelas músicas singelas com letras cujas soluções nos surpreendem de tão óbvias e, ao mesmo tempo, tão criativas, e não sabe da carreira do artista, pode pensar que se trata de alguém que gosta de versejar, que sabe completar a rima difícil, uma espécie de repentista moderno com farto e preciso vocabulário. 

Pois Tatit é tudo isso e muito mais. Formado em Letras (Linguística) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo, em 1978, e em Música (Composição), pela Escola de Comunicações e Artes (1979) da mesma universidade, obteve seu doutorado em 1986 na FFLCH da USP, com a tese Elementos Semióticos para uma Tipologia da Canção Popular Brasileira. É professor titular do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras & Ciências Humanas da USP.  

É mole? A tal da MPB tem um legítimo intelectual a lhe cantar os versos e a lhe esmiuçar as entranhas semioticamente, o que, convenhamos, é motivo de orgulho para todos nós, musicoólatras que somos. 

Luiz Tati tem 70 anos e extensa bagagem que o coloca num panteão todo particular da MPB: não deve haver quem torça o nariz diante de sua produção musical. Sua música fala para todos e provoca repentina intimidade em que a ouve. 

Já seu lado intelectual, autor de inúmeros livros de semiótica, pode ser visto em ótima entrevista dada ao portal da Fapesp, a Marcio Ferrari, em 2016, onde ele fala também do início de sua carreira com o Grupo Rumo. Está nesse link: https://revistapesquisa.fapesp.br/luiz-tatit-a-forma-exata-da-cancao/

O começo com Grupo Rumo foi no início dos anos 80, fazendo o que, à época, considerou-se a vanguarda da música paulistana. Foram seis discos gravados, de 1981 a 1991. Em 2019 ainda participou de um disco - Universo - com o Rumo. 

Sua música, além de promover empatia imediata, traz, muitas vezes, uma deliciosa dose de humor, às vezes negro, às vezes meio inglês e outras, ainda, escrachado simplesmente.

Um dos melhores discos dele é Ouvidos Uni-vos, de 2005, sobre o qual vou falar um pouco mais aqui, mas toda sua discografia merece ser ouvida, pois é certo o prazer. 

Gravado pela Dabliú Discos, a obra começa com Baião do Tomás, parceria de Tatit com Chico Saraiva, uma surpreendente canção sobre o nascimento de um garoto que é orgulho da família toda (toda mesmo!) desde o berço.

Final Feliz, a segunda, apenas de Luiz Tatit, é mais introspectiva, na primeira pessoa, trata da fuga de casa, imaginária ou não, que todo e toda adolescente tenta realizar um dia. Quase um blue que termina onde começa e deixa no ar aquela enorme interrogação sobre o que faze no futuro que começa ali. E tudo isso numa linguagem simples e bonita.

A terceira faixa é um rock. Mas não um rock qualquer. É Rock de Breque, dedicada a seu amigo e parceiro Itamar Assunção (13/09/1949 - 12/06/2003), uma mistura deliciosa entre o ritmo norte-americano com o samba de breque estilizado, própria da difícil arte do “mestre Assunção, e cuja letra tem a frase que dá título ao disco”.

Depois da homenagem, Tatit mostra uma parceria com Assunção que retoma aquela linha do humor negro, onde todas suas dores são explicitadas e, de tão pungentes, acabam até por divertir quem ouve. Mas dói.

A grande cantora Ná Ozzetti tem sido uma constante na carreira de Tatit. E é ela que aparece na faixa seguinte, Minta, de Tatit e Ricardo Brein. Trata-se de uma canção de amor, acompanhada apenas pelo piano de Marcelo Jeneci, que Ná Ozzetti interpreta no tom certo, com aquele tom de amargura necessário. 

O tom irônico e divertido, constante obra de Tatit, volta em Perdido. A ajuda forçada que uma amiga quer dar ao personagem por considerá-lo necessitado, cria inusitada situação, numa longa letra que começa e termina do mesmo jeito, com a novidade de que a amiga se propõe a ficar com quem ela "curou". Hilária. 

Com Terceira Pessoa, Tati retoma uma espécie de realismo fantástico musical, misturando duas pessoas diferentes numa só, e preferindo sempre a outra ao invés daquela, embora ambas sejam a mesma. A letra é um achado, própria de quem domina a linguagem e suas entranhas.

Brincadeira, de Tom Ozzetti e Luiz Tati remete quase à bossa nova no início da letra, onde o otimismo do amor que começa parece caminhar para um final feliz, mas é confrontado com as agruras de um relacionamento que ama e odeia.

Um bom samba, Controlado, é o que vem a seguir. É a divertida (mais uma vez) confissão de um amor louco que tenta disfarçar a loucura, mas no fim não consegue, se entrega, mas diz que vai melhorar. Tudo num sambinha rasgado muito bem definido que tanto encanta quanto diverte. 

Tom de Quem Reclama descreve, numa canção singela, uma estranha relação entre o personagem e sua voz que, rebelde, fala muito mais do que seu dono pretende. Surrealista o resultado desse pequeno tratado de rebeldia de "uma voz que não controlo/e que sai da minha boca/eu só falo o necessário/ela é sempre tão barroca". 

A poluição e as enchentes do Tietê são tema da canção que leva o nome do rio. Tatit afirma, ironicamente, não entender por que um rio deixa o verde da serra (sua nascente) para vir pra capital, se sujar e causar enchentes no verão. A canção que dá suporte à reflexão é quase clássica, com acompanhamento de violinos, viola e celo. 

A Perigo, parceria com Edward Lopes, trata da desilusão amorosa que fere e faz sofrer, solucionada com uma letra confessional e muito bem resolvida.

O disco se encerra com um sucesso de Luiz Tatit e Zé Miguel Wisnik - Baião de Quatro Toques - música regravada por vários cantores e grupos, como Mônica Salmaso, Grupo Ordinarius, Grupo São Vicente a Cappela (que apresentou a música na Alemanha) e a dupla Luiz (Brasil) e Jussara (Silveira), entre outros. É uma ousada e criativa "versão" da Quinta Sinfonia de Beethoven "que decantou e ficou só a raiz", como diz a letra.  

O CD Ouvido Uni-vos se encontra à disposição no Youtube - https://www.youtube.com/watch?v=ckBiTyUL9hY&list=OLAK5uy_khffLwNP0GvfoHoE9TuQ7ocGZCiDOVfAA

Mas, como disse anteriormente, a obra de Luiz Tatit merece ser ouvida em sua plenitude. São nove CDs e três DVDs que se encontram à venda nas boas lojas virtuais do ramo.

Zé Geraldo

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