sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Um monte de canções

 Por Ronaldo Faria



 
No mar as ondas brincam de coração, a ir e vir como o sangue que bombeia sem parar. No que há de fátuo, o fato incontestável de um dia ser, nem que em sonhos múltiplos e mutilados, calados, castrados, cansados de andanças sem ruas a caminhar, sem danças a rodar nos salões.
Embriagado de si mesmo, a brincar de cavaleiro solitário, o homem tropica e cai diante da bica seca que enche as bocas aflitas. Sem rumo, sem prumo, no devaneio que lhe acolhe em cada noite o travesseiro e o leva a sonhos loucos e cadafalsos, se vê só e sem ter porque viver. Do seu lado, a filha de cinzas o espera a olhar quieta com os olhos de DNA. “Ao menos num lugar de carinho poderei aportar”, diz pensar.
No asfalto sem vasto devaneio a viajar, o calor sobe telúrico e condensa no seu corpo o que resta de ácido úrico. O copo, quente e seco, sem bolhas a traduzirem o seu torpor, se esquece de ser vidro ou algo mais. O único abrigo no antigo peito do amigo já não há. O sol expulso por aqui talvez agora brilhe em Bagdá. Num lugar próximo os pais tentam colocar a cria a nanar. Melhor não tê-los, descobrir-se-á mais tarde, quando for tarde demais para se descobrir. Na curva glicêmica, um lugar de morte e paz. No mais, loucuras que certamente incriminam o cardeal primaz. Nalgum lugar, de muito tempo atrás, os maltrapilhos do amor buscam apenas vestes para seus corpos em pó e andrajos.
 
II
 
O amor e Laurinha na praia. As duas e crianças mais, entre os raios que o sol balança nos ventos da brisa. Corpos a buscarem um tanto de areia para os pés pisarem na quentura que o universo mistura entre esperança e verso. Ao longe, o homem ouve Rashid e a batida do rap. Na esquina, o casal se arrepia com o pio da coruja que se fez despertar com a sirene do carro de polícia. Certamente, na mente que agoniza em além-mar, o ausente sente o redescobrir da imaginação que exorciza. Na vida que se abre defronte de duas ruas, a vazante que derreia num congá acima das cabeças. Do alto, um raio brinca de alumiar o céu e desce para a terra em eletricidade que adormecerá a cidade, sem luz. Numa viagem própria, apropriada de si mesma, a vocalizar e verbalizar o silêncio, a insignificante orgia que se acaba em desmazelo. No colo da moradora de rua, a criança recém-nascida espera um pouco de zelo.
 
III
 
A regar um jardim seco e sem flores ou folhas mortas, sem plantas sequer, o homem sonha que a mulher que se esgueira em si mesma consiga romper seus grilhões e senões. Temporãos, os ínfimos toques de um dedilhar equânime de dois dedos se desvencilha da vida e encilha um cavalo para cavalgar por qualquer e ínfimo lugar. Nas patas que pranteiam os pântanos onde as sensações surgem num minuto atrás, o vento rompe a pele que foi feita para se beijar. Certamente no canto de um cântico milenar haverá um luar onde a esfera branca se tornará escuridão a tornear os corpos que se enroscam em desejos que esperam um único dia para rebrotar. A regar o jardim insólito e sórdido, o homem deixa se molhar. Quem sabe ele molhado não fará o único botão do lugar nascer? Camaleão na boca do leão do tempo, o resto que resta a se adequar na madrugada que pranteia a paixão afogada em oceanos de cada um.
 
IV
 
O bafo abafado, travestido e tragado se imiscui nas entranhas estranhas da solidão. E traz sonhos bisonhos, rostos risonhos, lábios famintos e famélicos, retintos à espera da saliva que reviverá o destino em pouca sina. De um lado, o sobrevivente. Do outro, a menina. Submissos aos signos, sexos e próprios tropeços. No horário marcado, tomar o remédio. Que tédio... Aos píncaros pródigos do nada, um oceano todo a se nadar. Seja o porto escondido aqui ou acolá. No cais, a prostituta, o marinheiro e o padre loquaz viram uma verborragia sem salamaleques ou frágeis perfumes a rolar na brisa que pernoita entre barcos afundados e barafundas do jamais... o adeus, como disse o poeta em nova geração, fica para nunca mais.
 
V
 
Retornar dias, meses e anos. Coisa difícil de rever. O tempo, saibam, não sai esbugalhado dos olhos cheios de lágrimas e louvor. Nem é oração que se diz ao alhures de alguém. O que se foi, mesmo logo ali na frente de nós, se foi. No momento que brinca de vento, que não se estoca nem no estoicismo do mais crente amante, o alento de que logo mais nada será. Nas galhardias vadias que se embaralham a cada dia, a soberania tardia do nunca mais se fará metonímia (seja lá o que isso for). Talvez um risco de lembrança que dança ainda criança nos últimos e ínfimos neurônios que permeiam doses alcoólicas e utópicas a crer se tornar dono do trono que há muito foi destronado. Calado, a colidir com o desejo e a ladeira abaixo, o poeta volta a Olinda, brinca em Caraíva, aporta em Porto de Galinhas, vislumbra um Itacaré no meio do Trancoso, retorna ao Rio que um janeiro qualquer joga as águas da Cascatinha para correr trilhos de trem quentes e cheios de medo. No bloco do recordar, sanfona bisonha se faz mistura de cuíca, pandeiro e ganzá. Méier, Madureira, Leblon que se esgueira. Desde menino misturado entre o Nordeste e a “cidade grande”, no cheiro do lampião de querosene e da luz que a eletricidade tudo tenta dar, vai-se o tempo, riscado de momentos, olhares, lamentos, unguentos, perdas e descobertas. Alguma fresta nas janelas, talvez. E se não houver, tanto faz. No cérebro que finda em si mesmo mil rimas e poesias métricas ou milimétricas, a mulher que surge e se insurge para arrancar a raiz nunca plantada. A emoção, púbere, fatiada. A tragédia que a comédia dá. A comédia que a tragédia faz. No ar, as notas e acordes acordam para, com certeza, não deixarem o tempo adormecer...
 
VI
 
Amigo, verbo fatídico. Tragicômico entre um ou outro trago. Canção de quatro. No amargo da cachaça ou do tremoço que o português vendeu estragado. Ao redor, um monte de gente que vomita aspargos e come grama pisada pelo gado. “Vai uma bagaceira aí?” A resposta na mente é “tome cuidado com essa caneta enlouquecida na conta”. Nas ruas que se aprumam perto, o desafeto descrê que o feto natimorto não fede igual ao chulé do Mané (não se leia aqui o Garrincha e suas pernas tortas). Isso é fato concreto. Há uma ladeira de eira e beira, janelas que não fecham nem com tramela, um quintal onde uma cabeça de boi se mistura a pichações e senões que batem de antemão num quem sabe e talvez. Nunca serão. Porque vidas não se escrevem com sonhos, não se entranham nas bucólicas saudades e, amiúde, viscerais e madrigais embustes, se enroscam nas roscas e rosas que desabrocham de quintais e padarias.
 
VII
 
Cantarolar e rodar, gargalhar feito doido, dedilhar sem dedos, cortados pela tristeza. Praguejar igual a um meliante arfante de um amor sem fim, entre o cheiro do jasmim e o vintém chinfrim. Percorrer e correr com medo do corrimão que se dá de antemão para quem ama demais. Frigir ovos de óvulos nunca fecundados, cacos de um copo dado pelo filho, fulgidos lumiares nunca vistos ou extintos. Com cortes na mão, melhor parar de delirar.

Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...