sábado, 3 de dezembro de 2022

Sabadão

 Por Ronaldo Faria


Disco da Nação Zumbi com Chico Science a tocar. Pescoço doendo depois de uma cabeçada na piscina. Espero que não tenha afundado uma vértebra ou detonado um disco. Músculo da perna a vibrar. Cerveja Xingu com a Tia Surica no copo. Corpo relaxado depois da sauna. Um sábado até agora tranquilo... 
“Cadê Rogê?”
Olho para longe e vejo os canais do Recife. Redescubro a mistura do Capibaribe e Beberibe num só. Tudo como um mangue solitário, solidário de dar dó. Afinal, a miséria aqui, como lá, é o que não falta. Como uma boca e a afta: uma à espera da outra. Indivisíveis, invisíveis aos olhos e risíveis à natureza amarga da vida.

Ela estava lá: bela e entregue aos amores da janela. Do seu casebre vê-se, logo defronte, outro e mais outro e outro mais. Uma infinidade de casinhas coloridas e coladas, prostradas de porta a porta em tijolo sobre tijolo. E lá estava ela: limite naquilo que o ser humano já não sabe mais se é idade ou desigualdade. Cabelo longos e queimados do sol que arde no céu, sob um lumiar quase lunar. Em pele agora descobrindo sê-la, imagina o que poderá ser o sangue que escorre da vagina. De fora, ensurdecedor batuque surge como um maracatu atômico.

Lá estava ele: vaqueiro de quadrúpedes e insone senhor de cavalgadas e congadas a vestir-se de couros dourados curtidos do suor desbragado. Homem já quase velho, barbas quase brancas, mãos quase cortadas do chicote que vai e vem sobre o lombo do cavalo e ilimitados sonhos de chegada. Entre um gole e outro na cabaça curtida da vida, suor escorre pelo rosto e a poeira se impregna pelo corpo, lavado numa ou noutra poça que ainda sobra no sertão. E lá está ele: parado diante do crucifixo cravado na casa de farinha, perto de onde tantos anjinhos já viajaram a descobrir outro caminho. A rezar e chorar. Ao largo, ensurdecedor silêncio surge como maracatu atônito.

Entre ambos, a ambiguidade do sexo, a desigualdade da idade, a improvável saudade. Incerteza quase certa que tem o asceta. Insensata palavra que divide mundos e fundos, infinitos e surdos. O mundo real e o fundo do poço cavado a trazer água e lama. No meio, o devaneio de embriagar-se de arte e sentimento, alento ao vento parado, desafio de andar sobre o fio da navalha, sob aquilo que valha. Entre os dois, a dor dilacerada e desbragada que só os trôpegos na madrugada sabem a razão de ser. Como embriaguez sem razão. Quando os dois se encontrarão? Quando farão de mundos tão díspares a diáspora única e espiral? Far-se-ão homem e mulher? Terão a cama como mundo único e uniforme, disforme e lúdico, algoz e súbito? O que faz as pessoas cruzarem caminhos e ninhos? Como juntar, numa única história, dois mundos tão distantes e largados, quase afogados em si mesmos? Lá longe, um ensurdecedor lamento bovino surge como maracatu lacônico.

II

Mas foi numa chuva dessas que cobre o mundo de negror e águas limítrofes entre a vida e a morte que o mundo dos dois se juntou. Uma rês desgarrada resolve fugir quando o derradeiro trovão espocou na caatinga. E correu feito louca, solta ao seu próprio destino. Atrás dela, o vaqueiro galopando em tresloucados descaminhos. E tome galho de mata agreste e espinhosa no rosto, drible de árvore morta e carcaça de boi que desembestou a querer descobrir o que era vida além da chibata do senhor. Louca, a rês invadiu a cidade como enxurrada dos céus e assediou ruas e esquinas, carros e pedestres. Atrás dela, o homem vestido de couro e ouro. A gritar impropérios e dizer-se senhor de impérios. E corre daqui e para ali. Entre os dois, o lixo e limbo sociais. Até que num momento, desses que ninguém sabe de onde vem, o animal caiu cansado e ferido sob a janela da menina que, assustada, tudo via e nada enxergava ou entendia. No corpo da rês, a chaga da adaga. Sobre o bicho, o homem enlouquecido e esquecido da sanidade a disparar facadas e se lavar de bofes e sangue. Em volta, um caos ensurdecedor como um maracatu catatônico.

- Senhor, o senhor quer um pano para se limpar?

A mulher olha para o homem pingando gotas vermelhas de sangue bovino sob a enxurrada da noite, quase madrugada, e vê nele o príncipe das lendas sem princípio, à beira de um precipício. Que une sangues exangues e retintos na união tresloucada sobre paralelepípedos que são púlpitos do amor. No céu, uma grande chuva desagua temporais e aguaceiros. Como milagre, a dor se esvai. Agora, um ou outro que passa ao largo, sem nada entender da cena de morte, corta o derradeiro pedaço da novilha que, ainda quente do medo da morte, descansa sobre a ladeira do desterro. Na casa, o vaqueiro conclui sua viagem.

Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...