quinta-feira, 11 de maio de 2023

A música de abril

 Por Ronaldo Faria


A noite se espreita lá fora à espera da madrugada que se desenrola entre canções e abóboras. A cidade ressona quieta entre um ou outro gemido, carros passando ligeiros, luzes que piscam solitárias num ou noutro lugar. No bar da esquina, os olhares e a sina. A assimétrica vertigem perdida entre o sorriso e os olhares que viajam por copos e goles. À frente do poeta, a mulher de voz e saudades perdidas. No arredor, o som do silêncio se faz apenas um pormenor. O mundo brinca de girar e se largar inerte e derradeiro.

A noite se entrega dissonante e arfante aos dois corpos. A pele, o cheiro, o gosto, os lábios unidos e vadios, a incerteza sempre certa do depois. O poeta, esteta de si mesmo, sabe que nem tudo haverá de sê-lo. Embriagado, partido em cansaços e emoções tão sonhadas e agora entregues, ele redescobre que a vida, ávida de si mesma, brinca de quadrantes que nem sempre são o que se quer. Mas, no fim de dia, diante dele, lá está ela: bem mais do que apenas uma mulher. A quem poemas não podem quantificar.

A madrugada, a brincar de querer esperar o sol voltar de uma bebedeira qualquer, traz um vento frio e esquecido entre as esquinas que descansam ao luar. Solitário, num solilóquio entre o quarto vazio e um armário, o poeta cheira seu próprio corpo para reviver o mundo dela. Se promete, criança que é, que nunca mais se lavará. Que a resguardará em cada poro e porto da paixão. No dia seguinte, que chega quente e ardente sem requinte, acaba por descumprir sua trama. Entre e a realidade e o desejo, urge o drama.

Na madrugada, porém, ficam a saudade e a realidade. Um ou outro ébrio ainda caminha em linhas tortuosas pelas esquinas que se repetem quadrantes e sinas, um casal enfim consegue se aninhar em trejeitos e esmeros, o mundo corre redondo e célere na busca de um sonho. Insone, o poeta fecha os olhos e revê o corpo nu e irreal. Afinal, pôde algum ser criar tal universo expresso em tanta beleza quase sobrenatural? Mais cansado do que o cansaço que o deixou não ser ele adormece para no dia seguinte tentar reviver...

Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...