sábado, 6 de abril de 2024

O diálogo de bar

Por Ronaldo Faria



 
— A cerveja vai na forma estúpida geladamente gelada?
— Não precisa. As papilas só precisam que as tulipas estejam na temperatura das lágrimas para suarem no copo como algo trôpego antes de cair, como um corpo, logo ali na frente, diante da tragicomédia rouca.
O diálogo entre o garçom e o som que saía da boca do freguês era o epitáfio de um boteco construído diante da ermida que erguemos em cada um de nós para tentar desatarmos os próprios nós. Era sexta-feira. Dessas que vêm, entre gregos e troianos, tríade de uma verborragia imortal, a se desvencilharem de cada dia. Mistura de bolo de framboesa, na incerteza entre entrar no mar para fugir do calor ou morrer na boca do tubarão. Quem sabe um manjar feito na caçarola que só existe no Japão.
— A batata quer seca ou cheia de gordura e queimada na porção?
— De preferência uma que dê pra comer. No fim, o lugar de saída será o mesmo, a esmo. A dúvida é se será sólido ou líquido. Neste solilóquio, entre Gepeto e Pinóquio, que se traga o menu mais utópico.
— Cresivaldo, solta uma porção de tubérculo arrancado da terra junto com terra calcinada e enche de óleo requentado pela centésima vez!
O freguês, Gonçalves para os conhecidos e Brígido para os íntimos, fez o OK com o polegar. De algum lugar, na história histriônica que se faz falácia a cada segundo, alguém irá aprovar a culinária áfricajamaicanahaitiniana. Na cama, cheio de cana na cabeça, um homem está a buscar no desespero e esmero o hímen da mulher que se espalha em retalhos no colchão rasgado à beira da janela que nem a maior quimera fará dela derradeira espera na esfera. Enfim, Gonçalves Brígido, agora ser frígido, sofre de frio intermitente a sorver e ver a cerveja debulhada da garrafa de casco marrom que vira tom à espera de um Zé.
— A coxinha quer cheia de massa e um tico de frango ou cheia de argamassa e um pico de algo pra ter deixar doidão?
— Manda o que vier. No viés que há entre a vida e a morte, eterna servidão, tanto faz como tanto fez. Prometo mitigar o sabor para dar lugar à dor.
— Cresivaldo, debulha daí um frango triturado e embrulhado de algo que segure!
No derredor que se mistura entre o próximo e a proximidade que se basta, um cachorro raquítico enche a calçada de bosta. As luzes amiúdes de carros e janelas minúsculas, dessas que fazem o arquiteto mitigar nos vidros para reduzir os custos em centavos, brilham e rebrilham na póstuma chegada de mais uma lua pródiga. E casais se iluminam, tevês emitem milhões de pontos aos olhos que se enchem de futuras cataratas esbranquiçadas, batráquios fogem do sal que um idiota mental lhes joga por mal. E a vida, perpetuada na imaginária estrada em frangalhos e frangos a passarinho, espera que de algum ninho uma ninhada pie ao sol sombrio.
— Cresivaldo, solta um pano seco pra limpar a merda que esse bosta vomitou aqui!
— Seco não tem. Pode ser rasgado, mal lavado e insípido?
Ao fundo, São Paulo ressurge de novas cinzas para homenagear Itamar Assumpção, deus da poesia de quem ama a música, seja diante de um teclado ou numa sala de espera...

Zé Geraldo

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