quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

O jazz caribenho do genial Michel Camilo

Por Edmilson Siqueira 

Michel Camilo, sobre quem vou escrever hoje, nasceu em Santo Domingo, na República Dominicana. Estudou durante 13 anos no Conservatório Nacional obtendo o grau de professor catedrático de Música e aos 16 anos tornou-se o mais novo membro da Orquestra Sinfônica Nacional de seu país. Ele se mudou para Nova York em 1979 para continuar seus estudos na Mannes and Juilliard School of Music. Desde sua estreia no Carnegie Hall em 1985, ele se tornou uma figura proeminente, apresentando-se regularmente em festivais e salas de concerto nos Estados Unidos, Europa, Japão, Ásia, Oriente Médio, América do Sul e Caribe.  


Embora tenha muitas músicas dele no computador, pinceladas aqui e ali, e ele já tenha gravado, até 2019, 27 discos, tenho apenas um disco dele, gravado em 1988, três anos depois de sua apresentação no Carnegie Hall, cujo título é apenas "Michel Camilo". Foi o terceiro da carreira. Nem me lembro onde comprei ou se ganhei de alguém. O certo é que ouvi muito seu vibrante piano, sua técnica arrojada e sua sensibilidade de grande compositor.  

Todas as músicas são de sua autoria e o CD que tenho foi, primeiro, um LP, sobre o qual Jeff Potter, escreveu, na contracapa transformada em encarte: "É difícil rotular o som de Michel. A base da música é o jazz, para o qual Michel traz suas raízes caribenhas com toques de funk. Neste álbum, o lado um nos permite saborear ingredientes separados do molho, voltando-se mais para o elemento jazz, desde a fumegante e direta "Crosswords" até o alto lirismo de "Nostalgia". O lado dois apresenta uma performance mais vigorosamente mexida, onde os ingredientes se sobrepõem com bom gosto, culminando com a peça central do álbum, "Caribe", o tipo de som mais próximo de Camilo que estimula o êxtase balançando e agitando o público a seus pés." 


Michel também deve ser também fã da música brasileira. A sétima faixa se chama "Pra Você" (For Tanai Maria) e se trata de um rasgado baião, com algum toque de sofisticação caribenha. E a faixa seguinte é "Blue Bossa", outra referência às coisas nossas, que, pela sua fortaleza e ritmo remete aos afros sambas de Baden Powell 


Além das músicas já citadas, o disco traz ainda "Suite Sandrine Part 1", que abre os trabalhos; "Dreamlight", Sunset (Interlude/Suite Sandrine); "Yarey" e "Caribe". 


Se você conhece apenas os mais recentes trabalhos de Michel Camilo ou não conhece nada desse ótimo artista, esse CD é uma boa pedida, para ficar por dentro do seu sólido início ou para perceber que ali estavam todas as raízes de uma carreira promissora numa terra onde a concorrência é enorme e, quem vem de fora, tem de ter muito talento para se firmar, como o é presente caso.  


O disco está ainda à venda por aí, nos bons sites do ramo. Não encontrei para ser ouvido, mas uma boa mostra da grande arte de Michel Camilo pode ser conferida nessa sua apresentação do grande sucesso "Take Five", de Paul Desmond, lançada e imortalizada pelo The Dave Brubeck Quartet: https://www.youtube.com/watch?v=ezkrkxg536o . 

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Texto Concreto com Zeca Baleiro

 Por Ronaldo Faria

Concreta daqui que eu concreto acolá. E vamos construindo esquinas e ruas soturnas, prédios de muitos andares e centenas de vidas, misturados de cimento e areia nas retinas. Areia que permeia o tempo que passa e repassa, transpassa emoções e senões. Todas que se bebem e se jogam a salvo. O são. Ou, quem sabe, serão. Entre sermões de um padre alcoolizado e um bardo que solta sua voz à noite que se esparrama entre corpos e copos. Todos a copular bocas ocas e mãos bélicas que correm cada medida dos órgãos úmidos ou eretos.

Concrete-se daqui que eu me concreto acolá. Juntos, cantaremos lê-la-ia-laia. E faremos planos, voaremos em planadores, nos faremos plenos aos píncaros do fim e do nada. Nadaremos entre luas loucas e areias frias, seremos o início e o infinito, de presto. Afinal, de que presta vivermos longe um do outro, ocultos em sombras que definham ao Sol? De que vale nossa dormida insone, caídos em cones que um bêbado equilibra na esquina qualquer? Agora, apenas vivamos ávidos a vida que ninguém nos deu. Sejamos nosso próprio Deus.

E se assim for, que cada concreto recém úmido se forme em escultura que nenhuma cultura saberá decifrar. Depois, que tudo fique largado lá – além de mim e de você – para quem depois quiser escrever. Em baladas travestidas de vida, tangos tangidos de solidão. Diluídos em pedras de gelo, ungidos de paixão. Pouco de quase nada, ínfimos desejos de qualquer criação. Para no depois, de um após suado e criado em servidão, sejamos qualquer um. Eu a ser somente você. Você, meu não. Sementes apócrifas de um poema nunca concreto – quase nada, só canção.
 
Ao ouvir o Zeca Baleiro, na sua calma do coração

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

O grande e eterno Paulinho da Viola

Por Edmilson Siqueira 

Há cerca de um mês e meio - em 12 de novembro - Paulinho da Viola completou 80 anos. E se você não acompanhou direito essa incrível carreira de um dos maiores sambistas do Brasil, há uma boa chance de conhecer uma ótima produção que juntou, num só CD, dois discos dele, gravados em 1982 e 83, sob o título "Dois É Demais". A seleção, lançada em 1996, é uma prova de que Paulinho, que explodiu com "Foi Um Rio Que Passou Em Minha Vida", em 1970, no seu segundo disco de estúdio, continuou com uma sólida careira fazendo o que sabe fazer melhor: sambas e choros, intercalados por alguns sucessos que foram aproveitados em trilhas de novelas famosas da Globo.  

 

Paulinho é uma espécie de unanimidade da crítica brasileira e, entre os fãs da boa MPB, não deve existir quem dele tenha alguma crítica negativa. Sambista da mais pura estirpe carioca, Paulinho é autor de músicas memoráveis, além de um grande preservador da memória do samba e das escolas, pois já gravou muita coisa com a Velha Guarda da Portela, do mesmo modo que louvou sambistas vivos e mortos em seus sambas de roda e outros. Enfim, Paulinho é desses eternos que sempre estará presente em qualquer lista que se faça dos melhores do Brasil de todos os tempos.  

E esse disco, com as músicas de "A Toda Hora Uma História" e "Prisma Luminoso" abrange dois anos bastante criativos do cantor e compositor. Além de músicas de sua autoria, há parcerias com Elton Medeiros, com Sérgio Natureza e com Capinan, além de músicas de outros compositores, como Jorge Mexeu, Armando Santos, Zorba Devagar e Micau, Dona Ivone Lara e Hermínio Bello de Carvalho, Eduardo Gudin e Paulo Cesar Pinheiro e Cartola e Bide, espalhados entre as 22 músicas do disco.  


Como se vê, Paulinho ia buscar parcerias com grandes nomes do samba, mas também garimpava, entre compositores totalmente desconhecidos do morro, pérolas que dificilmente seriam conhecidas não fossem as gravações de um artista mais famoso. Aliás, foi garimpando assim que Beth Carvalho gravou, num só disco, quatro ou cinco composições de um desconhecido sambista chamado Nelson Cavaquinho. Uma curiosidade: Nelson tocava violão e ganhou o apelido de Cavaquinho. E Paulinho, cujo instrumento principal era o cavaquinho (embora toque violão muito bem) acabou apelidado de "da Viola", apelido dado por Sérgio Cabral, o pai, grande jornalista, biógrafo e profundo conhecedor do samba.  


Segue a relação de músicas. As que não tiverem autor são só de Paulinho. "Rumo dos Ventos", "Só o Tempo", "Não É Assim", "Pra Fugir da Saudade" (com Elton Medeiros), "Amor Ingrato" (Jorge Mexeu), "A Maldade Não Tem Fim" (Armando Santos), "Meu Violão", "Que Trabalho É Esse" (Zorba Devagar e Micau), "Nós Os Foliões" (Sidney Miller), "Brancas e Pretas (com Sergio Natureza), "O Tempo Não Apagou", "Retiro", "Cadê A Razão", "Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço" (Ivone Lara e Hermínio Bello de Carvalho), "Mais Que A Lei Da Gravidade" (com Capinan), "Prisma Luminoso" (com Capinan), "Documento" (Eduardo Gudin e Paulo Cesar Pinheiro), "Quem Sabe" (com Elton Medeiros), "Cisma", "Não Posso Viver Sem Ela" (Cartola e Bide), "Só Ilusão" e "Toada".  

 

Trata-se de um ótimo documento para quem quer ouvir aquilo que já era uma ótima obra gravada há 40 anos de um compositor que, aos 80 anos, continua produzindo com grande qualidade.   

 

O disco está à venda nos bons sites do ramo. Mas, para ser ouvido, não encontrei a seleção e sim os dois separados, nos seguintes endereços: https://www.youtube.com/results?search_query=Paulinho+da+Viola+Prisma+Luminoso e https://immub.org/album/a-toda-hora-rola-uma-historia . 

sábado, 24 de dezembro de 2022

Trilhas quentes com um ótimo sexteto de jazz

Por Edmilson Siqueira 

Sabe esses discos que você compra por causa do título, do artista ou das músicas, mas sem saber direito o que está lá dentro? Pois isso aconteceu com o disco de hoje, comprado há mais de quinze anos e, na verdade, já não me lembro exatamente o motivo. Herb Ellis eu já tinha ouvido falar, mas pouco conhecia dele. Ray Brown idem. E o sexteto que eles formaram? Neca de pitiritiba. A turminha tinha ainda Harry "Sweets" Edison, Jake Hanna, Plas Johnson e Mike Melvoin - trompete, saxofone, bateria e teclados respectivamente que gravaram esse "Hot Tracks" em 1976.   


No encarte do CD que tenho, importado da Alemanha, Philip Elwood assina um texto bastante explicativo do encontro, que gerou outros álbuns, como fiquei sabendo em rápida pesquisa pelo Google. Não conheço os outros discos, mas este talvez seja, se não o melhor, um dos melhores do sexteto.   


Diz Elwood no encarte que durante o encontro, "múltiplas faixas foram gravadas, não para uma edição sofisticada ou para acrescentar instrumentos (overdubbing) pós-sessão, mas para tornar o balanço estéreo final tão natural quanto ouvir o grupo em um salão (ou, eu acho, saloon). 


Ouça "Hot Tracks" como um miniconcerto; foi preparado assim. O som agradável, fácil e popular de "Onion Roll" (Herb Ellis, faixa que abre o disco), dá lugar a "Spherikhal" (Ray Brown, a segunda faixa), uma performance mais dura, mais blueseira e mais voltada para o gospel. 


(...) Na terceira faixa você já está familiarizado com a banda e sua versatilidade já foi sugerida, se não totalmente explorada. Hora do tour de force de Ray Brown - "But Beautiful" (Johnny Burka e Jimmy Van Heusen, terceira faixa) - contrabaixo com guitarra. Esse tipo de interpretação praticamente nunca é apresentado ao vivo porque nós, fãs de jazz, raramente fazemos, como artistas fazem, o respeitoso silêncio necessário para absorver tais expressões.

Por "Blues for Minnie" (Ray Brown, quarta faixa), todo o conjunto está em alta, com 'Sweet' and Pas tocando forte; a troca de solos, que inclui o pianista Mike Melvoin e Ellis, é compacta, mas informal. 


Johnson's "Bones" (Plas Johnson, quinta faixa), está na veia do Jazz Messengers, um toque de Horace Silver e um sabor do L. A. Express. "So's Is Your Mother" (Mike Melvoin, a sexta faixa), com 'Sweets' silenciado, é uma reminiscência de outros grupos dos anos 1950 quando Clifford Brown estava por perto. Os harmônicos de Melvoin são substanciais, a tonalidade menor eficaz. 


Os antigos de Johnny Hodge, "Squatty Roo" (Johnny Hodges, sétima faixa) saíram da última sessão de Bluebird daquele grande saxofonista rotulado como "An Ellington Unit', em julho de 1941. 


The Ellis-Brown Sextet captura um pouco do sentimento dukish de 1941 e o move para os sons dos anos setenta. Por um momento, Edison contribuiu com a brincadeira "Sweetback" (Harry 'Sweet' Edison, oitava faixa), como um lembrete de que todos os sopros do mundo não significam nada (como o Sr. Ellington nos lembra há 43 anos) é não tem esse balanço." 


Depois disso tudo o melhor é ouvir esse ótimo disco no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=B-RSMsvDeqQ ) ou comprá-lo: encontrei no Mercado Livre por 90 reais. Vale. 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Ao Dominguinhos

 Por Ronaldo Faria


Que baita sol que socorre à sombra e a faz mais forte do que o corpo que sua no batente, latente a cada gota que desce sob as roupas e vira um forró só. Que sol forte que se espalha e se espelha no asfalto, mesmo sem tomar fortificante desses que a mãe enterra goela adentro do filho que chora sem dó, com gosto de peixe insosso.
 
Seu nome era José. Desses que anda na terra de barro danado, daquele pó que vira parte do corpo e agarra no pé. Desses que ama, teima e desama, anda, desanda e desmama, carrega a caçamba que vomita a água tirada de um poço quente que se mistura ao resto do fio de esperança e faz a pajelança esperar a chuva que se esqueceu de chegar.

O nome do amor de José era Maria – prometida por um Deus sem fé, num lugar qualquer, de um tempo que ninguém até hoje sabe se foi desandar. Que descia da roça toda faceira e brejeira, com seu vestido de chita a ventarolar no fiapo de brisa que curtia seu passar entre os galhos que tinham sobrado no imbuzeiro que dormia quieto no seu próprio teto de luto e restar.

E ambos – José e Maria ou Maria e José – se misturavam ao tempo, assexuado e sem saber se ia ou parava a cada andada dos dois. Aqueciam-se na água nenhuma que vertia do rio seco e se aninhavam no ninho de coruja vazio de piar a cada chuva maior. Eram e faziam, jaziam entre covas pequenas de anjos nunca feitos ou nasciam a cada cantar da ave que viajava de galho em galho para chegar a qualquer lugar.

Amavam-se entre notas e versos, vozes e terços, rios secos, crianças secas, esteira de palha deitada na terra fria, na franzina menina que parece colheita perdida, desviada do seu mundo sem saber porque. E quanta saudade ardida e tardia. Quanta pimenta misturada à farinha criada no tacho da casa onde viviam todos sujos de branco de se comer e a esperar a secura acabar. Ou, porque não, a vida revirar.

Seu nome era José. O nome dela era Maria. Iguaizinhos no desigual que nem o carcará que voou e sobrevoou a rês a morrer sob o mugir da vaca sabe que não terá mais cria ou colher. Homem e mulher a recriarem filhos feito um velho banguela que a comida perde a ver cair cada grão entre os dentes inexistentes à fonte que pinga, respinga e dói.

Desses que sabem que o sol inclemente e ardido que brilha entre nuvem nenhuma, na brita da estradinha cheia de erva daninha, nenhum dia irá baixar. Por isso, a vida, ávida, debaixo do lençol encardido e malpassado, quieto no avesso do verso. Amplexo. No fundo do coração a gritar feito a barriga que ronca zabumba e o triângulo a misturar sons e finitude, em qualquer latitude feita de um quadrado imperfeito. Àquele que chama a paixão se estende a mão e dorme o corpo na derradeira mansidão. No tanto de calor imperfeito, faz-se, mais uma vez, outro tanto de solidão.
 
Dedicado ao mestre Dominguinhos, sua voz e sua sanfona eternas e ternas.

Presságio natalino

 Por Ronaldo Faria O Natal corre brejeiro e cheio de cheiros, madrigal. Se esconde nas cercanias de casarios perdidos no tempo ao vento qu...