sexta-feira, 18 de março de 2022

Mistério sem critério

Por Ronaldo Faria

Ouvindo What a Wonderful World, na voz eterna de Louis Armstrong, vejo que não há mais muito o que esperar pelo sonho da descoberta passageira. Para sempre, até o meu fim, ficarão a dúvida, a avidez da presença, a ausente presença real. Todas simplistas e efêmeras no silêncio de uma La Vie em Rose no metal do “Boca de Sapo”. Para sempre ficarão o rosto e o corpo escondidos num pedaço do cérebro, entre um neurônio e outro de estúdio de tevê que teima em subsistir as ramificações elétricas, apesar do ocaso geral. Filho único que não se deixa embriagar de passado e olhos sobre o Rio a piscar. É dele, irreal, que retiro a ingrata certeza do dever cumprido, da promessa paga, das letras corretas, das palavras vazias na sombria madrugada na Lagoa. A se despedir do futuro. Tudo como augúrio arrancado a fórceps da felicidade única...

Autumn Leaves passa com seus barulhos de antiguidade na voz de Nat King Cole. E percorre cada segundo com a avidez e celeuma do tempo em que eu não era nada. Agora serei? Entra Wave, com o maestro Tom Jobim. Coisas que só o coração pode entender. Aqui, fundamental é mesmo embriagar-se de passageiras maneiras de vaticinar a dúvida que ficará para sempre. Que fim ela levou? – pergunto ao pai hinduísta. Nada como a vodca da madrugada para nos fazer íntimos do outro e da ausência postergada da vida. E entra Tom de novo. Imagina. Que bom poder exercer no teclado a mesma criação das notas de um piano mágico. Mesmo que longe da genialidade e da ferrenha vontade de expor emoções e volúpias abissais cheias de areia, ondas e pernas morenas, irreais. 

Vamos a Pequenina, de Dércio Marques. Terá sido ela pequena? Não lembro. Menor que eu, certamente. Mas maior, muito maior em certezas e desejos, respostas e (des)caminhos. Por que, então, sumiu na estrada da vida? Que rumos terá tomado, entre imagens a decupar programas cortados em fades, in e out? Somos todos irmãos da Lua. Mas onde está a lua brilhando sobre a Lagoa? Onde está o homem-menino de camisa branca cearense, de saco de estopa, a andar à toa pelos bares do Leblon? Vou-me embora pra Pasárgada. Lá sou amigo do rei, diz Paulo Diniz. Talvez seja a hora de chamar a Mãe D’água para me contar as estórias que, no tempo de menino, ela vinha me contar. Afinal, estou mais triste de não ter jeito, com vontade de me matar. E a mulher que eu quero, na cama que escolherei, sumiu. Ninguém sabe, ninguém viu...

Aqui, no Interior, a Tristeza do Jeca ecoa sem parar. Não há muito o que contar ou reportar. Eu, repórter, falhei em descobrir a fonte. No riacho, a fonte real desce em margeios e anseios próprios. E cai na água fria, gostosa, refeita e rarefeita de fantasias desbragadas e parcimoniosas consigo e comigo mesmo. Naquela mesa irrompe no vozeirão de Nelson Gonçalves. Se eu soubesse quanto dói a vida. Mas a dor ainda dói mesmo assim. O silêncio, sepulcral, metonímico, benfazejo, utópico, dirimido em tópicos aleatórios de clitóris não tocado, é total. A noite adentra misteriosa e cheia de imagens vorazes de verter pelas esquinas, como a toalha de um conto passado, levada ao caixão como um troféu à perda antevista. Os olhos não veem além da tela os olhos negros e vivos dela.

Na verdade, é tudo Papo de Passarim. É tudo gelo em degelo no álcool com gosto de laranja. É tudo quase madrugada de um novo dia, a dois minutos de chegar. É nada e é tudo. É como estar desnudo de corpo e alma a me embriagar de letras e rimas, poesia e cantiga, palavras e vida. Nada há e pouco haverá. A capela gorjeia notas e acordes, mas o coração não acorda da sua imensa tristeza da dúvida real. Nem uma Toada refaz a fatídica e intrínseca verdade de uma saudade que é dor pungente, morena. A ouvir comigo esta cantiga. Vida aventureira. Coisa de dobrar a esquina errada ou certa; digitar a palavra correta ou desconexa, largar entre litros e litros de morte antevista a vida redescoberta em textos de volúpia virginal. 

Ne Me Quitte Pas, no sussurro de Maysa, me remete aos Andes, à Anita em carne viva, pequena, olhos coloridos a brilhar. E tanto e quanto andei, nos últimos anos, para tentar reaver o passado, recuperar o esquecido, ignorar o presente nas suas mazelas e velas acesas ao acaso e ocaso da vida. Como me fiz e refiz na lareira de uma brasa esquecida. Tudo como Gilda, e eu – ante a sua aparição do poeta Vinicius de Moraes. E é a brisa do mar, o solilóquio de reportagens postadas em poemas, penas imaginárias, pênseis e inexplicáveis que fazem um semianalfabeto tirar letras de pedra, brotando-as no quintal da emoção e genética da criação. E chega o Intermezzo From Cavaleria Rusticana. Nesta música só não chora quem não ama. Ou então quem não sabe que a eternidade, na sua finitude, não passa de uma chama. Hoje, porém, deixei de lágrimas derramar.

O CD está para acabar. Foram algumas músicas catadas a dedo de milhares de canções que têm até a voz da loura Marilyn Monroe e seus diamantes que qualquer mulher há de ter como melhor amigo. Por aqui vou ficando e arfando na certeza de não ter terminado a busca que me ofusca e remete a saudades letais. Por aqui, vou passando, Night and Day, a saber que cada noite e cada dia são de um passado real, abrupto, final. Um dia, com toda a certeza que a vida nos dá, a night não verá o day, ou o day não se fará de night. Há escolha? Há como decidir o fim? 

Se assim houver, quero baixar os olhos e emoções ao nada em plena madrugada, embriagada e desmistificada em si mesma. Only You. Senão, quem sabe, em Sampa, a ver amigos da Austrália e trocar selinhos de idas e vindas, de versos e passagens, de regressos e viagens. Coisas de Adios Nonino. É isso: hoje dou adeus ao meu menino que pensa ser o dia-a-dia parte de um parque de diversões dos mortos em férias. Agora, efêmera memória, a feérica luminosidade da saudade dá lugar ao desejo da máquina do tempo que se esconde na brisa do tempo. Mas, hoje, não há canção ou rima metafórica. A catarse da frase se fez sem demora. Agora, a hora é o discrepante fastio maldizente, cheia de gás carbônico e gente que há de vir. Que o tempo nos resguarde, ao menos, de ter de sorrir por sorrir. Dói-me a mandíbula ter de fingir...

quinta-feira, 17 de março de 2022

Solar Trio: uma agradável aula de música

Por Edmilson Siqueira 

Houve um tempo aqui em Campinas que o teatro interno do Centro de Convivência Cultural servia até para gravação de discos. A própria Sinfônica gravou alguns discos ali e vários conjuntos também, como foi o caso do Solar Trio. Abandonado por administrações municipais incompetentes, todo o conjunto ali se arrasta numa reforma há anos, depois de se tornar algo imprestável. Talvez um dia ele volte a funcionar como teatro e não como abrigo de morcegos e outros bichos. 


Mas, quando sua estrutura ainda podia receber um grupo para, aproveitando-se de sua excelente acústica e do belo piano Steinway & Sons que ali havia (não sei se ele sobreviveu ao descaso), gravar um disco, o Solar Trio ali esteve nas noites dos dias 18 e 19 de junho de 1995 e nos presenteou com doze interpretações muito pessoais de várias pérolas da MPB, mais uma gravada no Ômega Studios, além de algumas criações próprias. 

O Solar Trio era formado pelo grande Bebeto ao piano, que assina duas das músicas do disco com seu nome próprio: Arno Roberto von Buettner. Ele morreu em agosto de 2014, aos 66 anos. Na bateria e percussão, o músico da Sinfônica - e do jazz na noite - Jayme Pladevall. E no contrabaixo acústico, o hoje bacharel, mestre e doutor pela Faculdade de Música da Unicamp, Zé Alexandre Carvalho. 


A reunião desses três não poderia dar errado. Músicos de fina sensibilidade, deram às composições escolhidas para o disco um tratamento nobre. Nada de grandes arroubos sonoros, mas apenas o trânsito possível e agradável nas melodias. Trata-se, e digo sem medo de errar, de um excelente disco de MPB e jazz, uma perfeita fusão entre os dois estilos que são responsáveis pelas duas mais belas músicas populares do mundo.  


Bonita, de Tom Jobim, abre disco com uma suavidade impressionante. Bebeto, que costumava se esbaldar nas teclas nas noites campineira, aqui assume um comportamento sóbrio diante da obra de um mestre. O contrabaixo de Zé Alexandre e a bateria de Jayme Pladevall fazem o acompanhamento discreto e certeiro que a melodia necessita. 


De Jobim para Caetano Veloso é o que nos traz a segunda faixa: Muito. Após uma introdução de Bebeto, a jazzística composição de Caetano dá ao grupo a chance de navegar por todas suas possibilidades melódicas. É a música com a maior seção de improviso do disco. 


A música que Roberto Menescal e Chico Buarque fizeram para o filme de Cacá Diegues, Bye Bye Brasil vem a seguir. A melodia de Menescal não é muito grande e se tornou repetitiva na longa letra que Chico escreveu. Aliás, segundo o próprio Menescal, a letra tinha umas dez páginas. A que acabou sendo gravada foi uma pequena parte escolhida por Cacá Diegues. O Solar Trio resolve com maestria e improviso, navegando pelos caminhos sugeridos sem se esquecer da bela melodia, nos sete minutos. 


O clássico Manhã de Carnaval, de Luiz Bonfá e Antonio Maria, mantém não só a qualidade das músicas escolhidas, como perpetua a impressão de que se trata de uma das mais belas melodias da MPB. O grupo não economiza na trilha, com momentos de improviso do contrabaixo que aumentam ainda mais a beleza da música. 


Tristeza de Nós Dois, de Maurício Einhorn, Durval Ferreira e Bebeto Castilho, é música constante no repertório de muitos conjuntos de jazz do Brasil. Com seus sete minutos e um segundo de duração é a música mais longa do disco e campo fértil para o talento do grupo. 


A música seguinte é a primeira de autoria de Bebeto (foto): Notas Bach. Um exercício sonoro muito bem resolvido que mostra que também em composição própria o pianista não deixa a desejar. 


Tom Jobim volta na sétima faixa, na companhia de Vinicius de Moraes com Chora Coração, uma música pouco conhecida da dupla, mas que se presta muito bem à proposta do Solar Trio.

A faixa seguinte é outra de autoria de um membro do grupo: Antigo Nada tras a assinatura do baterista Jayme Pladevall. Como não podia deixar de ser, a percussão inicia a música, vindo a seguir belo solo feito no contrabaixo com arco. É quase uma vinheta, de apenas 1 minuto e 44 segundos, sem a participação do piano de Bebeto.


Outra música de Bebeto (foto), Lisa, também é de ótima qualidade, não ficando a dever nada para as músicas famosas que compõem o CD.


As quatro últimas músicas são todas de autores famosos e de alta qualidade também: Trilhos Urbanos, de Caetano Veloso, Canto Triste, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes (atenção para o belo solo do contrabaixo tocado com arco); Imagem, de Luiz Eça e A. de Oliveira, um samba gostoso e rápido e Outra Vez, de Tom Jobim. Enfim, trata-se de um ótimo disco para ouvir sossegado e sentir saudade do tempo em que Campinas tinha uma vida cultural intensa e acessível.

No YouTube, ao teclar "Solar Trio" encontrei doze das treze músicas do disco. Estão separadas, mas dá pra ouvir bem.   

quarta-feira, 16 de março de 2022

Compositores, cantores, marcos...

Por Ronaldo Faria

Zabumba, Cazuza.

Amanhã, Arantes.

O quereres, Caetano.

Beleza, Fagner.

Solidão, Belchior.

Flor de Liz, Djavan.

Carioca, Buarque.

Eterno, Gudin.

Estampas, Xangai.

O bêbado, João Bosco.

Dorothy, Jorge Benjor.

Iluminação, Mautner.

Xote, Gil.

Acalma, Gonzaguinha.

Orquídeas, Assumpção.

Balada, Macalé.

Impacto, Moska.

José, Diniz.

Formosa, Taiguara.

Mistérios, Zé Geraldo.

Kamikaze, Ramalho.

Casa, Rodrix.

Wave, Jobim.

Bolero, Adnet.

Clara, Himes.

Ponteio, Edu.

Entardecer, Arantes.

Loucura, Raul.

Telegrama, Lulu.

Estradas, Geraldo Azevedo.

Bicicleta, Zé Renato.

Trem, Vercilo.

Lenha, Baleiro.

Pequenina, Dércio Marques.

Morena, Alceu.

Cantador, Gonzagão.

Vida, Gonzaguinha.

Nostradamus, Dussek.

Infernal, Nando.

Em casa, Antunes.

Negro, Melodia.

José, Villeroy.

Um Zé, Tom Zé.

Estrada, Almir.

Alvorada, Teixeira.

Amor, Cartola.

Ouverture, Vinicius de Moraes.

terça-feira, 15 de março de 2022

1968: um ano bom... pro rock

Por Edmilson Siqueira 

Dois dias antes da ditadura militar fechar de vez a carranca e enquadrar todo mundo com o AI-5, na Inglaterra os Rolling Stones entravam em cena, com um punhado de outros roqueiros tão ou menos famosos quanto eles para gravar um especial para a BBC. 


O cantor e compositor Irapuan Peixoto, que mantém ótima página na internet chamada HQRock, escreveu sobre o show: "Os Stones tinham acabado de lançar o álbum Beggars Banquet, no qual retornavam à sonoridade blues e R&B após dois anos imersos na psicodelia. E tiveram a ideia de promovê-lo com um filme para a BBC, a ser exibido na época do Natal. Dirigido por Michael Lindsay-Hogg (que fizera vários clipes para os Beatles e dirigiria em seguida o Let it Be), o The Rolling Stones’ Rock and Roll Circus foi gravado em 11 de dezembro de 1968, numa explosiva reunião de artistas, como Jethro Tull, Taj Mahal, Marianne Faithfull, The Who e o supergrupo The Dirty Mac, que consistia em John Lennon e Eric Clapton nas guitarras, Keith Richards no baixo e Mitch Mitchell (do The Jimi Hendrix Experience) na bateria. Ah, e também Yoko Ono. E, claro, dos próprios Rolling Stones. 


Mas problemas na produção (e a insana decisão de gravar tudo em um dia só, seguindo a ordem das apresentações de verdade) fizeram os Stones se apresentarem já de madrugada, depois de um dia inteiro acompanhando as filmagens, e a banda tocou cansada e desanimada. Avaliando o material, o grupo achou que estava aquém do que queriam e cancelaram o projeto, que não foi exibido. 


Esquecido nos arquivos, o filme foi se tornando lendário com o tempo e vazou para a pirataria. A seção do The Who, por outro lado, foi lançada oficialmente no documentário biográfico The Kids Are All Right, em 1979. Mas no fim das contas, os Stones terminaram lançado o programa em vídeo e disco em 1996." 


Rock And Roll Circus, gravado em 11 e 12 de dezembro de 1968 (o AI-5 mostrou suas garras no dia 13), se transformou num mini festival de rock e numa festa para os ouvidos da moçada. 


E traz um livreto de 40 páginas que contém muitas fotos, ilustrações circenses e dois longos textos de David Dalton, um escrito em 1970 e outro em 1995, ano em que o disco foi lançado. O filme apareceu no ano seguinte. 


A última frase do segundo texto de Dalton diz o seguinte: "Por um breve momento parecia que o rock and roll herdaria a terra." E parecia mesmo, já que a performance dos vários grupos, alguns formados ali mesmo, outros enxertados com artistas de outros grupos, foi de arrasar. Bem como as apresentações do Stones que, embora cansados, não deixaram a peteca cair. 


São treze músicas, sendo as últimas seis dos Rolling Stones, ainda na antiga formação com os cinco que iniciaram o grupo: Mick Jagger, Keith Richards, Brian Jones, Bill Wyman e Charlie Watts, além da presença de Nick Hopkins nos teclados e Rock Dijon na percussão.  

O show começa com um apresentador dando boas-vindas ao distinto público, uma banda tocando música circense para logo em seguida ser anunciada a primeira banda: Jethro Tull, com a música Song for Jeffrey. 


Em seguida o apresentador anuncia The Who que entra com A Quick One While He's Away, escrita por Pete Townshend. 


Over the Waves, a música circense, serve de introdução para o Taj Mahal detonar Ain't That a Lot of Love, elevando definitivamente a temperatura do circo. 

Apresentada por Charlie Watts, que a chama de "beautiful", entra em cena Marianne Faithfull para cantar Something Better. 


Aí é a vez da grande banda formada ali mesmo: Mick Jagger e John Lennon anunciam o grupo Dirty Mac, com Lennon, Eric Clapton, Keith Richards tocando baixo e Mitch Mitchell na bateria. A música escolhida para esta única apresentação desse grupo foi Yer Blues (Lennon/McCartney) que havia sido lançada há pouco no Álbum Branco dos Beatles. 

Depois desse que foi um dos pontos altos, vem uma faixa que dá pra passar batido. Nada contra Yoko Ono, mas Whole Lotta Yoko, que o próprio Dirty Mac ajuda a tocar, até que começa bem, um rock lascado, mas depois que Yoko, ou sei lá quem, começa a soltar gritos descoordenados e até desafinados como se tentasse cantar alguma coisa, é hora de apertar o botão do aparelho de som que faz pular para a próxima música.  


A partir da décima-quarta faixa assumem os Stones com música do Banquete dos Mendigos. E logo de cara atacam de Jump Jack Flash, iniciando uma sequência de sucessos da banda que até hoje tocam por aí. Parachute Woman; No Expectation; You Can't Always Get What You Want; Sympathy for the Devil e, para encerrar Salt of the Earth. 


Um disco que marca uma época que, para nós brasileiros, foi de cinzas, mas para o mundo do rock que estava mudando os costumes e influenciando a vida de milhões de jovens, foi mesmo como David Dalton intitulou seu segundo texto no encarte: "1968... um ano muito bom". 

Presságio natalino

 Por Ronaldo Faria O Natal corre brejeiro e cheio de cheiros, madrigal. Se esconde nas cercanias de casarios perdidos no tempo ao vento qu...