sexta-feira, 24 de maio de 2024

Alma, calminha. Ainda não é hora de partir

Por Ronaldo Faria


Em pé, Múcio parece um beócio, desses que acha que a felicidade está logo ali do lado, num cabide que se pega e se muda de roupa. Pediu, cheio de crer, “me avisa”. “Diga-me”. Afinal, ele queria era apenas saber. Do outro lado, certamente a ouvir fado, a alma gêmea não está nem aí. Em seu mundo próprio, onde o impróprio está cheio de impropérios etéreos, à merencória cor da lua, como diria o poeta, a essência da ciência não se fez. Mas quem precisa de ciência quando tem a vivência fatídica da vida a costurar?
Sentado no bar besuntado de gorduras que flutuam no ar vindas da cozinha, Múcio levanta o dedo e pede outra gelada. Arcada em seus pesos e pesadelos, pródigos reveses da vida, a moça da mesa defronte ergue a fronte e lhe sorri. Ela está só. Seus dentes brancos, seu ventre ancho, suas ancas desprovidas de falta de vida, libertas ao amor, estão abertas em frestas que afrontam o torpor final. Certamente a mente do homem irá fazê-lo na madrugada acordar a beijar orelhas inexistentes com seu membro a brincar de inchar.

(Ao Zeca Baleiro)
 
II
 
Valêncio, um vivente desses que em cada esquina se esbarra e se evita, segue andrajo de alma e desejo de vida. Resistente na insólita mente, desmente a poesia que a tragédia faz comédia comedida de ditames e sinas. Amores mil no passado, hoje ser quase castrado de falácias, em falésias que nunca andou, corre a discorrer seus desejos e versos torpes. Espera apenas que a solidão da noite que as estrelas trazem seja o seu lençol. Para a música que virá, tanto faz ser em mi ou si bemol. O mundo está sob formol.
Valêncio, ser onde valer na vida já é o bastante que o tanto se proseia, segue a se desvencilhar dos faróis dos carros, das amarras da vida, das feridas que conseguiu em cada canto do labirinto que construiu pra si. É um famélico amante, arfante, dissonante, benfazejo de um destino inconformado consigo mesmo. Sabe que daqui à frente não será muito, no nada que será. Mas, sobrevivente da incerta finitude, tem só uma derradeira atitude: nos passos em descompasso se fará cair calado na voz da paixão.
 
III
 
Fulgêncio, que não foge de si, sabe que apesar do cavalo que sua e relincha na sede que está quase a lhe matar, tem uma estrada ainda a trilhar. Não há nesse mundaréu nenhum rio ou riacho para suprir a sede dos dois. No alforje, um tanto e meio de corte de seda para cobrir o corpo de Marilda, seu amor. Mesmo sabendo que melhor seria vê-lo nu, a deitar quieto sobre o seu na esteira que beira a certeza de um gozo, a cavalgar colada e calada na ilusão de ser um só. A lamber de lambidas de língua a outra língua que lambe de músculos vermelhos os ósculos que adentram entre dentes e ventres. Tudo como a harmonia entre a voz do cantor e a dor que nunca irá cicatrizar. Na essência do destino, o desatino do inócuo luar. Decerto, no mais certo amor dos loucos, haverá à espera um ridículo lugar. Desses que a gente se larga ao largo para achar que a vida tem ainda seu chegar. No absurdo barulho que só o surdo sabe ouvir, Fulgêncio se cobre de blasfêmias e espera que as fêmeas que viveram nele sejam uma só. Assim terá menos dó de si. A viver de efêmeros sermões em que já sabe quantas aves e Marias rezar, troca letras e prosas que os iletrados que passam a noite em claro, bêbados e fugitivos da vida, saberão decifrar. A imensidão que sombreia de clarão a lucidez simplória da inglória certeza de amar e remar nos líquidos que o amor joga em corpos desnaturados, é a dona de tudo. No profundo queixume das ondas que já não aguentam mais bater na areia das praias e beijá-las sem poder parar, o rotundo findar da poesia.

 (Ao Fagner)

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