quinta-feira, 10 de março de 2022

À Baby Consuelo, do Brasil

Por Ronaldo Faria

Doidos, doidivanas, dramáticos e lúgubres à vida a se largarem naquilo que ainda se pode ter. No sonho depravado e calado, destravado e cavado em cada centímetro de unicidade e separação. Entre um tempo bom e o bom que já foi atemporal. Nas ladeiras de Salvador e do Rio, de Olinda, ou seja lá onde for. A subir e descer, vociferar gritos de lucidez maluca e inverdade impoluta. Feito um baby, na voz da Baby, que é do Brasil e o sempre foi e será a se desgarrar da realidade inexata cheia de acordes e alforjes que um cavalo trôpego e trêbado carrega sem nunca chegar. 

Sempre viva, a mudar sua vida, vai a caminhar entre nuvens e estrelas ou estradas a brilhar. Lá vai Baby a caminhar e descaminhar, flutuar. Canções mil, milímetros retintos de notas e prosas, prosaicas falácias de saudade. Extintos prazeres e afazeres que o cheiro de creolina e o drama inexato da rima saudaram. Nas esquinas desatinadas de um Leblon qualquer crescem notas e rimas feito doses dadas em colher. E seja o que o destino quiser. Como uma ladeira brasileira e altaneira. Transversa, inversa, misteriosa e a cantar a música derradeira.

quarta-feira, 9 de março de 2022

The foolish heart of Nara Leão

Por Edmilson Siqueira

O título em inglês vem do próprio disco gravado por Nara: My Foolish Heart. É o nome de uma música, aliás, um clássico do jazz, de autoria de Victor Young (música) e Ned Washington (letra). Para Nara cantar em português, Nelson Motta se incumbiu de fazer a letra em nossa língua, que recebeu o título de Descansa Coração e não ficou devendo nada ao original.

O disco todo é de clássicos do jazz e da canção norte-americana. E é a prova de que bom gosto musical não conhece fronteiras. Nara, ligada a movimentos bem brasileiros como a bossa nova (que teve, claro, influência do jazz e, depois, ela própria influenciou não só o jazz, como a música no mundo todo), o protesto do Teatro Opinião, o tropicalismo de Caetano e Gil e compositores dos morros cariocas, mostra, nesse disco, que não estava restrita ao que se produzia no Brasil, e que sempre esteve atenta a tudo que se fazia no mundo e que tinha qualidade.

My Foolish Heart foi o último disco de Nara, gravado em 1989, mesmo ano em que ela morreu, aos 47 anos, vítima de um tumor cerebral. Ele foi feito a pedido de uma produtora japonesa, e seria o show que Nara e Menescal fariam em outubro daquele ano, no Japão, mas não deu tempo, pois Nara morreu em julho. O disco foi gravado nos estúdios do próprio Menescal, no Rio e dele constava, inclusive, um jingle de uma cerveja japonesa, que patrocinaria os show no Japão.

O disco teve a participação dos músicos Luís Avelar (teclados), Jacaré (baixo), Rubinho (bateria), Barney (percussão) e o próprio Menescal no violão. Todas as versões são de Nara e de Nelson Motta. Com exceção para Alguém que olhe por mim (Someone to watch over me, de George & Ira Gershwin), que é assinada por Zé Rodrix e Miguel Paiva.

A produção e os arranjos de Menescal garantem a qualidade das 15 faixas (o LP original tem 14 e o CD tem uma faixa a mais que, provavelmente, não coube no vinil).


O jornalista e escritor Artur Xexéo é quem escreve na capa do LP, texto que não foi inserido no CD. Depois de dizer que Nara e Menescal transformam tudo em bossa nova, ele acrescenta: "O resultado é uma delícia. Mas, como sempre, não serve para ouvidos acomodados. My Foolish Heart dá continuidade ao LP anterior de Nara e Menescal, Meus Sonhos Dourados. Daquela vez, a dupla verteu para o português o repertório que ouvia nos cinemas nos tempos de adolescência. Tea For Two, Over The Rainbow... Agora, a escolha foi dos japoneses e a seleção é mais radical. Ouvidos menos abertos aos rumos sempre surpreendentes de Nara certamente vão rejeitar a transformação de My Funny Valentine, de Rodgers & Hart, em Adeus No Cais; ou de Night And Day, de Cole Porter, em Só Você, ou ainda de Smoke Gets In Your Eyes, de O. Harbach & Jerome Kern, em Fumaça Nos Olhos. É puro preconceito. Ou nesta altura do campeonato alguém ainda duvidaria do bom gosto de Nara Leão?"

O fato é que esse disco acabou sendo o encerramento de uma carreira musical que não encontra paralelos e que ficará para sempre na memória de todos os amantes da boa e sofisticada música popular brasileira. 


terça-feira, 8 de março de 2022

Elza e Mané, vá assistir!

Por Ronaldo Faria 

Ando "preguiçoso" para escrever. Por isso hoje eu vou indicar apenas para assistirem na Globoplay os quatro episódios de Elza & Mané — Amor em linhas tortas. Vale muito e demais a pena. Juro que chorei várias vezes ao vê-lo. Algo que une música, futebol e vida. E amo os três. Parabéns à diretora do documentário, Caroline Zilberman. Um filme onde o resgate de cenas e momentos, muitos inéditos, forja uma história em que o amor, a vida cotidiana e os preconceitos de uma sociedade hipócrita dão o tom.

Vi Mané jogar sua despedida da Seleção, no Maracanã, para arrecadar dinheiro para ele. Estava entre os 155 mil torcedores, em 19 de dezembro de 1973, a assistir a vitória do escrete canarinho contra um combinado de jogadores estrangeiros no Brasil. O Jogo da Gratidão, vencido por 2 a 1 pela seleção, rendeu cerca de 1,3 milhão de cruzeiros (hoje corresponderia a R$ 7 milhões). Garrincha comprou sete apartamentos (um para cada filha), uma casa na Barra da Tijuca, um carro (Mercedes-Benz usado) e um restaurante em Vila Isabel, na zona norte carioca, que era do filho do Nelson Rodrigues (Jofre), transformado depois em casa de shows para Elza (La Boca), além de pagar dívidas. Morreu pobre, nove anos depois, vítima do alcoolismo.

Elza, já sem ele, resistiu como diva da MPB. E ela conta no documentário os perrengues que passou com o alcoolismo crônico do Mané. Como sofreu, como lutou, como resistiu e como agiu sempre para defender o seu amor. Ela, sem dúvida, foi uma guerreira, uma mulher que brigou, muitas vezes literalmente, nas crises de Garrincha violento e embriagado, para manter sua dignidade e seus princípios. Alguém que foi acusada, à época, de ter destruído o casamento do craque da seleção, mas que nada mais foi do que um anteparo na vida dele. Se não fosse Elza, certamente ele teria ele teria afundado muito mais rápido e chafurdado na lama do esquecimento. Na verdade, até o Jogo da Gratidão foi ideia de Elza para ajudá-lo. Hoje, no Dia Internacional da Mulher, que todas as mulheres possam tê-la como exemplo vivo de garra e retidão.

segunda-feira, 7 de março de 2022

Um disco chamado Brazil

Por Edmilson Siqueira 

Sabe daqueles discos que você pega na estante da loja e sente um certo orgulho de ser brasileiro? Eu sei que sentir esse orgulho está meio difícil, já que o país só derrapa onde deveria andar seguro e pra frente, mas tem hora que a gente estufa o peito e dá aquele sorrisinho de superioridade que tanta falta nos faz.  


Pois foi o que senti quando, acho que na saudosa Hully Gully Discos, ali na Doutor Quirino, no Centro de Campinas, peguei um CD importado tendo na capa um cartão da baía da Guanabara com o nome dos dois artistas: Rosemary Clooney e, um pouco menor, John Pizzarelli. Dois grandes do jazz num disco chamado Brazil. 


Comprei na hora e em casa a expectativa se confirmou. Um disco com grande produção e só com música brasileira, cantada em inglês.  


A própria Rosemary escreve no encarte: "Numa manhã de verão de 1968, eu olhei pela janela do hotel e vi montanhas e o mar banhado numa luz de lavanda que eu nunca havia visto antes. O sentimento que eu tive naquela manhã só voltou de novo quando eu ouvi músicas do Brasil." E, em seguida, ela dedica o disco a Antonio Carlos Jobim, Frank Sinatra e Nelson Riddle, acrescentando John Pizzarelli, Diana Krall (que participa do disco numa das faixas), Oscar Castro Neves e Paulinho da Costa. 


Apaixonada pela boa música brasileira, essa cantora de dezenas e dezenas de LPs e CDs gravados, de 1952 até pouco antes de morrer em 2002, não fez por menos. Chamou John Pizzarelli para acompanhá-la com seu violão e voz em algumas faixas e também Diana Krall para fazer dueto com ela em Garota de Ipanema. 


Logo de cara, Aquarela do Brasil, de Ari Barroso, que nos EUA se chama apenas Brazil, na letra em inglês de Sidney Russel, cantada suavemente, num arranjo leve e delicioso. 


Corcovado (Jobim e Vinicius) que em inglês virou Quiet Nights, tem Paulinho da Costa na percussão, o que não deixa o ritmo brasileiro se perder. 


Garota de Ipanema, cantada por Rosemary e Diana Krall virou The Boy From Ipanema, mas não perdeu o balanço nem a sensualidade que Jobim e Vinicius propuseram. 


Wave (Jobim) é a primeira música em que Pizzarelli canta sozinho e não deixa a peteca cair. 


Amor em Paz (Jobim e Vinicius) que virou Once I Loved na letra em inglês de Ray Gilbert, tem belo solo instrumental de Chouncey Welsch no trombone. 


Desafinado, a próxima faixa, é a única do disco que soa meio estranha, talvez pela ausência de um percussionista brasileiro. Curiosamente, o encarte credita a música apenas a Newton Mendonça, deixando de lado o outro autor, Tom Jobim. Além disso, o nome em inglês (Out of Key) também não aparece.  


I Concentrate On You, de Cole Porte é a única música de um autor não brasileiro do disco, mas a presença de Oscar Castro Neves no violão e nos vocais e de Paulinho da Costa na percussão, tornam a música uma bossa nova quase genuína.  


O disco segue mantendo a linha mais que brasileira com Samba de Uma Nota Só (Jobim e  Newton Mendonça, creditada erroneamente a Vinicius no lugar de Newton); How Insensitive (Insensatez de Jobim e Vinicius), Let Go (a versão em inglês feita por Norman Gimbel de Canto de Ossanha, de Baden e Vinicius);  Dindi, o sucesso mundial de Aloysio de Oliveira e Jobim, com letra em inglês de Ray Gilbert) cantada - e muito bem - por John Pizzarelli; Águas de Março (Jobim) num belo dueto de Rosemary e Pizzarelli; Meditação (Jobim e Newton Mendonça); Sweet Happy Life (Samba de Orpheu, de Luiz Bonfá, Antonio Maria e André Salvet); A Day in the Life of a Fool que não é outra senão Manhã de Carnaval (Luiz Bonfá, Antonio Maria) na letra em inglês de Carl Sigman.    

E, pra encerrar, e pra não deixar dúvida algum de que se trata de uma grande homenagem à música brasileira, a Aquarela do Brasil de Ari Barroso é repetida, numa versão bem menor, fechando o disco. 


O CD é importado (não sei se foi editado no Brasil) e está à venda ainda em sites como Mercado Livre e Amazon. Muitas de suas faixas podem ser ouvidas no YouTube. 

sábado, 5 de março de 2022

Noel Rosa e Ivan Lins: um encontro inesquecível (2)

Por Edmilson Siqueira 

Sem mais delongas, o segundo - e também maravilhoso - disco que Ivan Lins fez só com músicas de Noel Rosa e seus parceiros, começa com uma sensacional interpretação de Ivan do clássico Feitiço da Vila (Noel e Vadico). E chamou para participação da música ninguém menos que Nana Caymmi que eleva a música a uma oração aos deuses do samba. 


O segundo disco tem a mesmíssima e ótima produção do primeiro, com encarte de 24 páginas, com todas as letras (e uma historinha de cada música), a ficha técnica de cada gravação, a ficha geral e belas fotografias. A produção é da gravadora Velas. 


A segunda música, Boa Viagem, de Noel e Ismael Silva, dizem que foi feita para se livrarem da pressão de Francisco Alves que cobrava dos autores o pagamento de dívidas em música. Ivan Lins, sozinho nessa, dá conta do recado nesse suingado samba. 


Três Apitos, outro clássico, também cantado só por Ivan, com o devido e primoroso auxílio do grupo Nó Em Pingo D'Água. Curiosidade: essa música não foi gravada, por ordem de Noel. E mesmo depois que ele morreu (em 1937) só foi para o disco, na voz de Araci de Almeida, em 1951. Outra curiosidade: todo mundo pensa que a fábrica de tecidos é a Bangu, que ficava perto da casa de Noel. Não é. A paixão daqueles dias de Noel era uma moça que trabalhava numa fábrica de botões do Andaraí, conforme esclarece o encarte.  


Dois sambas muito bem resolvidos - Quantos Beijos (com Vadico) e O Orvalho Vem Caindo (com Kid Pepe) se juntam na faixa seguinte. E também a eles se junta a turma do Fundo de Quintal. Ficou ótimo. 


O texto que acompanha a próxima faixa, a considera como "a obra maestra de Noel Rosa, música e letra escritas a pouco tempo de sua morte. Último Desejo, é acompanhada apenas do violão de Hélio Delmiro, o baixo acústico de Jorge Helder e a caixa de fósforo de Jaguara. O arranjo emoldura magnífica interpretação de Ivan Lins. Uma curiosidade: no último verso Ivan canta "pagou" ao invés de "guardou" e, segundo os biógrafos de Noel, é essa a versão correta.  


Noel e Lamartine Babo fizeram uma brincadeira "futurista" com a música A.B.Surdo, uma sátira non sense, onde Ivan Lins é auxiliado pelo Aquarela Carioca. E com espaço para uma pequena crítica à velocidade com que os sambas enredo são cantados nos desfiles de Carnaval. 

A marcha-rancho Cidade Mulher, homenagem explícita de Noel ao Rio, onde nasceu, viveu e morreu, é cantada por Ivan Lins e Caetano Veloso. Uma gravação preciosa, à altura de todas as belezas do Rio. 


Mentir, uma obra só de Noel, é considerada uma mentirosa apologia da mentira. Mas Ivan dá conta do recado, com destaque para o piano de Cristóvão Bastos. 


Ivan Lins convidou Emílio Santiago para cantar com ele o samba Até Amanhã, uma das obras de Noel que até hoje é gravada e regravada por aí. Ao dois, se juntou o Coreto Urbano e a festa foi completa. 


Meu Sofrer é outra das músicas desconhecidas de Noel, nesse caso uma parceria com Henrique Britto, seu companheiro no Bando dos Tangarás, que Ivan recupera e traz ninguém menos que o genial Guinga para lhe fazer companhia, tocando violão e produzindo o arranjo de base. É desconhecida, mas não deixa de ser tocante a letra de Noel na música de Henrique Britto.     


Mais um clássico de Noel - Palpite Infeliz - com o qual ele encerrou, e ganhou, a polêmica com o ainda desconhecido Wilson Batista.  


Pierrô Apaixonado, a marcha que Noel compôs com Heitor dos Prazeres é aqui apresentada à capela com Ivan e o grupo Boca Livre. Um trabalho vocal sensacional que dá uma nova feição ao sucesso carnavalesco que sobrevive até hoje, mais de 80 anos depois de sua primeira gravação.  


Outro clássico, Com Que Roupa, vem a seguir. É o primeiro sucesso de Noel como compositor (parceria com Vadico) que aqui ganha a companhia do Coreto Urbano. 


Rir é outra obra meio desconhecida de Noel e uma das poucas parcerias com Cartola que sobreviveu. Houve outras, diz seu biógrafo, mas jamais foram assinadas pelos dois e se perderam. Aqui, Fátima Guedes faz dueto com Ivan Lins, enriquecendo o resultado. 


Três músicas de Noel, de alta qualidade, mas que não alcançaram sucesso como outras, encerram o segundo volume dessa obra de Ivan Lins: Estrela da Manhã, Para Atender a Pedidos e Quem Ri Melhor. A primeira é uma parceria com Ari Barroso e as outras duas são da habitual parceria com Vadico.  


Além desses dois CDs com 35 músicas de Noel, houve um terceiro, com apenas 5 músicas, também produzido e vendido pela Velas. As músicas são as seguintes: Cara ou Coroa (Noel Rosa), Mais Um Samba Popular (Noel Rosa/Vadico), Coração (Noel Rosa), Século do Progresso (Noel Rosa) e Nega (Lamartine Babo/Noel Rosa).

 

Todos os CDs podem ser ouvidos no Youtube e em outras plataformas musicais. No Youtube:  https://www.youtube.com/results?search_query=Ivan+Lins+Noel+Rosa 

Presságio natalino

 Por Ronaldo Faria O Natal corre brejeiro e cheio de cheiros, madrigal. Se esconde nas cercanias de casarios perdidos no tempo ao vento qu...