sábado, 19 de fevereiro de 2022

Resgate de crônicas

E pra não ficar mais uns dias ausente, vasculhei meus arquivos das mais de 400 crônicas que escrevi para a Revista Metrópole do Correio Popular e garimpei duas delas que seguem abaixo. Minha próxima vez aqui é segunda-feira. Acho que até lá vai dar pra voltar a escrever. 

Por Edmilson Siqueira 

Pimenta Pura 

Pois o choro, aquele mesmo que Pixinguinha, Ernesto Nazaré e Chiquinha Gonzaga andaram inventando no início do século 20, encontrou bom abrigo por essas plagas. Depois de pairar soberano por décadas no Rio de Janeiro, ele foi renascer justamente onde menos se esperava: em Brasília. Explica-se: no início dos anos 60 a capital do país saiu do Rio e foi para o Planalto Central. Muitos funcionários públicos cariocas tiveram que deixar as praias e ir respirar o ar seco do planalto central. E quando batia a saudade, o que rolava? Claro que um bom samba e um choro. Os filhos desses “candangos” cresceram ouvindo boa música e, no fim dos anos 80, já adultos, iniciaram uma pequena revolução musical instituindo o choro como música oficial em alguns botecos brasilienses. A moda pegou, claro.  

E aqui em Campinas? Nossa revoluçãozinha começou com a Sinfônica e o curso de Música da Unicamp atraindo talentos de várias partes do país. Daí a vida noturna intensa em matéria de música ao vivo que tivemos nos anos 80 e início dos 90, e que agora está retornando em diversas casas espalhadas por Barão Geraldo, Sousas, Joaquim Egídio, Cambuí, Vila Nova etc.  

Claro que por aí se ouve de tudo, jazz, rock e samba, mas um CD recém-lançado chama a atenção. É de “cinco bandidos” que se juntaram justamente para tocar na noite. E de bar em bar foram construindo uma identidade difícil de se encontrar mesmo nas melhores famílias. Eles são o Choro Bandido, uma das mais gratas surpresas musicais dos últimos tempos que essa cidade produziu.  Adriano, Anderson, Marcelo, Daniel e Chiquinho mostram no CD a mesma perfeição das tardes de domingo do Deck Sousas, quando, entre generosos copos de chopp da Brahma, a gente se esquece do tempo ao som do bandolim, do clarinete, do violão de sete cordas, do cavaquinho e do contagiante ritmo do pandeiro de Chiquinho do próprio. Ou então nas noites de terça do Santa Fé, quando o grupo faz a gente comer mais uma pizza mandando o regime às favas, só para ouvir mais um pouco o som dos ‘bandidos’.  

O CD se chama Apimentado, que é o choro que abre o disco, composição de Marcelo Falleiros, que não fica devendo nada para choros de Ari Barroso, Paulinho da Viola, Dilermando Reis, Jacob do Bandolim e Laércio de Freitas, cujas composições também estão presentes no CD, numa ótima seleção. Taí uma sugestão de presente tão bom de dar quanto de receber. 


Um elepê 

Foi na loja do Osny, a Hully Gully Discos, que vi a cara do elepê. Estava lá na estante onde ficam os elepês e não o teria visto se ele não fosse o primeiro da fila. Por desvalorizados 5 reais qualquer um poderia levá-lo para casa. O nome é simples: Plus. Na capa, sorridentes e trocando um olhar que parece significar algum caso entre eles, Astrud Gilberto e James Last. De Astrud qualquer amante amador da música como eu sabe que foi quem primeiro gravou, nos Estados Unidos, Garota de Ipanema em inglês, com João Gilberto e Stan Getz e ficou várias semanas em primeiro lugar na parada lá deles. Além disso, é dona de uma sólida carreira e suas interpretações percorrem mundo. Sem ser uma superstar, é respeitada e nos EUA e na Europa.  Já o maestro James Last era para mim um ilustre desconhecido. E é nessas horas que a internet é a maior amiga do homem, depois do uísque, claro. Por ela descobri que James Last é alemão, mas construiu sua carreira como maestro e arranjador nos EUA. E foi uma carreira com grandes sucessos, já que ele foi quem inventou um treco chamado “non-stop-dance” que vendeu como abobrinha na feira.    

Mas o que importa, no caso, é que o elepê Plus é um achado. Misturando uma orquestra completa, com alguns músicos brasileiros como Paulo Jobim, Marcelo Gilberto, Duduka Fonseca e Café mais a voz de Astrud cantando um repertório que inclui até clássicos do jazz como Caravan de Duke Ellington e Juan Tizol na qual Irving Mills e a própria Astrud botaram uma letra, a coisa funciona muito bem. A isso somam-se três músicas de Paulo Jobim com Ronaldo Bastos (Samba do Soho, Moonrain e Saci), duas da própria Astrud Gilberto (Champagne and Caviar e Amor e Som), além de duas parcerias suas, uma com Antonio Carlos Jobim (I’m not without you) e outra com Duduka Fonseca (Forgive me). Claro que não poderia faltar pelo menos uma de James Last, que é a With Love, feita em parceria com Ron Last. O álbum se fecha tendo como última música do lado B (lembram?) um clássico de Jobim e Vinicius – Água de Beber.  

Agora é levar o elepê para o Osny de volta e encomendar um CD. Aliás, dois, pois quando peguei esse Plus na loja, ele me exibia todo orgulhoso, uma raridade de Adoniran Barbosa, que ele não vende de jeito nenhum, um disco-brinde, produzido pela Olivetti que não foi distribuído comercialmente e que tem até uma parceria de Adoniran com Hilda Hilst. É mole?  

Adendo atual: tanto o CD da primeira crônica quanto o LP da segunda são artigos raros por aí. Nem a Hully Gully ali na Doutor Quirino existe mais. Mas ficam as lembranças de um tempo, com certeza, mais generoso. 

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Zeza, Alfredinho e Celinha: o trio perfeito

Por Ronaldo Faria

Falei do canário Dércio Marques no meu último texto. Ele era, ou ainda é, parceiro de cantoria e saudades do Zeza Amaral. Logo, vou falar agora de um disco ao vivo do Zeza junto com Alfredo Soares e Celinha. É o Olho de Prata. Este eu tenho físico, original, em CD. Mas amo do Zeza o Clareia também (e como amo), só que este era em vinil e só obtive em MP3. Eu conheço o Zeza Amaral desde 1982, no Diário do Povo, o centenário e assassinado jornal onde comecei a minha vida jornalística em Campinas. Eu e ele fazíamos a revisão dos textos do Wanderley Doná, repórter policial que era referência na cidade naqueles idos, e eu acabava sendo o interino do Zeza quando ele não podia escrever sua coluna diária no jornal (para tristeza dos leitores). Já o Alfredo (Alfredinho) Soares, conheci da noite e das mesas de botecos, entre eles o Água Furtada, no Cambuí, que depois virou padaria e até hoje é um imóvel tombado e vazio. E, claro, no Alfredo’s, bar que era referência musical na noite/madrugada local. Com Celinha não tive contato íntimo, mas a reverencio pela voz que lembra Bethânia. E que é dela, Celinha. Incrível. 

O show Olho de Prata foi em 1979. Dele, Zeza fala na sua entrevista ao Cantares e Esquinas (https://ronaldofaria57.blogspot.com/2021/05/amaral-acreditem-internautas-do-planeta.html). “Foi dentro do Bate Papo (restaurante no Cambuí, na Rua Irmãos Bierrembach, defronte ao Largo Santa Cruz), que resolvemos (ele, Alfredinho Soares e Celinha) fazer o show chamado Olho de Prata. O nome do show quem deu foi o J. Toledo (https://pt.wikipedia.org/wiki/J._Toledo). Ele foi nosso diretor artístico e cenógrafo, junto com o Geraldo Jürgensen. Nós ensaiamos quase quatro meses direto e estreamos lá no Teatro do Centro de Convivência. Fizemos três apresentações com casa cheia. Depois, o diretor do teatro, que na época era o Carlos Braggio, nos deu mais uma semana e enchemos de novo. Mas eu não sei por que, se foi por preguiça, nós não demos continuidade ao show em outras cidades.” 

Deste “triângulo amoroso perfeito”, como Zeza diz no disco, surgiu um show incrível. Uma mistura de samba, MPB e chorinho. Pena que este espetáculo tenha durado apenas poucas apresentações. No CD, as apresentações são do J. Toledo (dele ninguém melhor do que Edmilson Siqueira, meu parceiro neste blog, para falar sobre), que conheci na noite, inclusive numa disputa por uísque com Hilda Hilst no Alfredo’s. Tive ainda o prazer de um dia conhecer, a convite, a sua casa em Sousas para tomar umas; e também de Antônio Contente, jornalista, poeta, cronista e ídolo que foi o dono da orelha de meu primeiro livro – o C(s)em Contos. Logo, deixarei para eles falarem deste disco. Perto deles, quem sou eu...

De minha parte, assino embaixo (na minha humilde pequenez) o que estes dois seres iluminados escrevinharam e curto poder ouvir esse show incrível que rolou nessas plagas das campinas musicais. Um ouvir, porém, que por erro de prensagem me toma de assalto três das 14 músicas. Elas não rodam em nenhum aparelho ou programa. Mas, a quem reclamar o CD problemático? Não há. E até pouco importa. Que assim o seja, pois a vida pune aqueles que não viveram o fato. E eu, na época do show, ainda vivia no Rio de Janeiro. E segundo o Edmilson Siqueira, nunca houve um CD ou um LP do show: "Rolou uma cópia de fita K7 que foi reproduzida por aí. A minha fita eu transformei em CD no Osny".

Ao menos ouvi e ouço parte quase integral de um espetáculo memorável. Infelizmente não é possível encontrar este disco nas viagens do mundo virtual. Como tudo de bom, se esvai ao tempo do mundo. Mas, creio plenamente, que os olhos de prata que dele surgiram nas cenas cultural e musical, continuam a brilhar entre o escuro da madrugada que cheira a vida, os versos que rompem as emoções e a entrega que irrompe entre três vozes que Campinas entregou para o mundo. Logo, Saravá. Na energia do tempo, Olho de Prata têm cor de ouro, de brisa, de história e vida que sublima tempo e espaço.

Ps.: Terminei este texto ouvindo Rosália de Souza no Amazon Music com o CD D’improviso. Sei que não tem muito a ver com o texto acima. Ou tem. Afinal, a escuridão, a noite e a madrugada trazem lembranças que vem e vão sabe-se lá para onde, em mililitros de um álcool libertário, das efemérides tão parcas e inesquecíveis no tempo do universo que cada um de nós tem em si. Uma dica: neste disco Bossa 50 é uma música incrível. Aliás, todas são. Na fila de reprodução dessa artista (seu álbum principal e que rola também no Amazon Music é Garota Moderna), tudo é incrível. Definitivamente, a MPB é um poço de maravilhas. Logo, que os deuses salvem este ano, em outubro, das trevas que habitam a cultura nacional. A luz da beleza há de voltar a brilhar.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

A falta que Dércio Marques faz...

Por Ronaldo Faria

Ele morreu em 26 de junho de 2012, aos 64 anos. Este ano, portanto, completaremos uma década sem Dércio Marques. Compositor, violeiro, cantor, intérprete e estudioso das raízes da música brasileira, esse mineiro de Uberlândia nos deixou 13 discos e uma vida entregue à cantar a natureza, a pureza dos sons e brincadeiras infantis e das almas que estão além do simples chão. Aqui eu vou tratar de um CD que amo de paixão: Anjos da Terra, dedicado à sua filha Mariana e verdadeira brincadeira de roda, de vida e pureza musical. Dércio era uma espécie de ícone da natureza e das coisas boas. Por isso não entendi a sua morte tão cedo. Alguém que vivia em alfa, além do nosso mundo terreno, era para ter chegado aos 100 anos ou mais. Enfim, que Dércio Marques, onde estiver, certamente numa floresta cheia de verde, animais e paz, olhe por nós. Hoje, nas trevas que o Brasil vive, mais do que nunca precisamos de vozes e almas iguais as suas para vencermos os algozes. 

O mais próximo que estive de Dércio Marques foi num dia de chuva forte, dessa que lava a alma e o passado, quando o compositor, jornalista, cronista e cantor Zeza Amaral me recebeu na sua casa para uma entrevista feita sob a supervisão de seu homônimo emplumado, um canário norte-americano que Zeza garantiu ter onze cânticos diferenciados. O nome do pássaro era uma homenagem ao amigo. “Ele é como o Dércio: quando o cara vinha aqui em casa e começava a cantar, não tinha quem fizesse ele parar. O canário tem horas que fica mais de 20 minutos a trinar”, disse Zeza à época (https://ronaldofaria57.blogspot.com/2021/05/amaral-acreditem-internautas-do-planeta.html). 

À exceção do canário, porém, sempre curti Dércio Marques. Tenho todos os 13 discos dele. Nos meus arquivos em MP3 ele está num HD externo em MPB na pasta Bicho Grilo, que reúne, entre outros, as obras de A Barca, A Barca do Sol, Alceu Valença, Armandinho, Arrigo Barnabé, Asdrubal Trouxe o Trombone, Baby Consuelo, Bubuska Valença, Doroty Marques, Geraldo Espíndola, Grupo Agreste, Grupo Alma, Grupo D’Alma, Grupo Engenho, Grupo Rumo, Grupo Therra, Gutemberg Guarabira, Jessier Quirino, Lanny Gordin, Manacá, Mozart Terra, Moraes Moreira, Parafusa, Paranga, Paulinho Pedra Azul, Renato Terra, Rubinho do Valle, Rui Maurity, Sá, Guarabira e Zé Rodrix, Teatro do Descobrimento, Torquato Neto, Ventania, Walter Franco, Xangai e outros mais.

Mas, afinal o que é uma pasta Bicho Grilo? É a essência de um momento em que viajar em sons na famosa “maionese”, longe da realidade triste e desconexa da vida. Que nos faz acreditar que há algo além da busca do vil metal, das contas e boletos que correm atrás de nós sem parar, das obrigações terrenas que nos abstraem daquilo que deveria ser a busca de um equilíbrio com a natureza. Que nos eleva de um mundo onde a essência da nossa rápida e efêmera passagem por esse planeta azul e redondo é esquecida. Dércio Marques e toda a sua obra estão nesse diapasão “bicho grilista”. Ainda bem que, ao menos, conheci o canário que deve ser a sua reencarnação num ser que ele soube mostrar em vida: o agregado de cantar e viver em sublimação naquilo que a Terra dá e ensina.

Anjos da Terra é uma mistura de pureza da infância e interação com o mundo que respira paz ao nosso redor. São 23 músicas em 49 minutos. Na verdade, uma entrega absoluta entre a brincadeira sonora e de qualidade e o que há de mais sublime para alguém criar e cantar. A letra da música que dá título ao disco é um poema universal. “Mas olha quanta gente que passa/ Sem controlar o sorriso/ São meninos da terra/ São meninos da lua/ Brincando de amor/ Ao redor do mundo/ Anjos da terra/ Beijos de maio/ Mães da alegria/ Que vem da lua/ Desce de um raio/ Cheio de estrela/ Brilho do sol/ Sol virou lua/ Brincar na rua/ Sou um sonhador.” 

Impossível não sonhar junto. Uma adaptação de Cuitelinho (com verso recuperado da composição em Santa Rosa do Viterbo) é linda. A Canção de Ninar, na voz de Titane e o som de Lucas ao fundo, nenê, é algo realmente para ninar o mundo. Tivéssemos tido esse acalanto, certamente seríamos moradores de um mundo melhor desde o berço. Como tudo que era belo e espontâneo em Dércio Marques, nenhuma música, à exceção de Cuitelinho, foi editada. Em Ser Criança, a verdade que cada um de nós deve ter guardada no fundo coração, ou deveria tê-lo feito. 

O disco, de 1991, tem um poema para o amor em Namoro: “Plantei um pé de avenca/ debaixo da tua janela/ E sonhei frutas em penca/ num galho de siriguela/ Plantei um pé de rosa/ lá detrás do murundu/ E sonhei-te mimosa/ com cheirinho de caju/ Plantei um chão de trevo/ no meio do teu caminho/ pra ver se ele se atreve/ a roçar o teu pezinho/ Que o trevo é talismã/ que é pr’eu fazer meu gosto/ de morder a maçã/ a covinha de teu rosto/ Plantei um pé de lírio/ na porta da tua escola/ Mas quero mais delírio/ com o gostim de carambola/ E já nem sei o que faço/ das tranças, da tua franja/ Quero ser teu bagaço/ teu docinho de laranja.”

Há até um blues para a rãzinha. Enfim, todas as composições, sejam na forma instrumental ou cantadas, são uma certeza única: se mais Dércios, fossem eles humanos ou pássaros, tivéssemos, mais viveríamos em outro estágio e realidade. Existiriam menos ganância, destruição da natureza, maldade, ódio e coisas que mostram que o homem às vezes não merece o lugar em que vive. Mas, loas a Dércio Marques e aquilo que ele nos deixou. Sua poesia e seu apelo por um mundo melhor e mais pleno resistem ao tempo. Triste é ver que ele foi bem antes daquilo que o planeta gostaria...

A última faixa do disco dedica os 13 segundos para a natureza e o SOS Amazônia: https://sosamazonia.org.br/

Você ouve essa obra-prima em https://www.letras.mus.br/dercio-marques/discografia/anjos-da-terra-1991/

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Ronaldo Bastos, um grande poeta da MPB

Por Edmilson Siqueira 

Se há um aspecto da MPB - da boa MPB, diga-se - em que o Brasil está bem servido, é a parte literária. Sim, desde sempre tivemos letristas que, muitas vezes, melhoraram o que compositor havia feito, tornando as melodias mais palatáveis por conta dos versos ali colocados.  

Uma das preocupações de Tom Jobim nos EUA, quando a bossa nova começou a tomar conta daquelas paragens - havia até cursos de dança especializados em bossa nova - era com as letras que iriam colocar em suas músicas, quase todas muito bem "letradas" aqui por gente como Vinicius de Moraes, Newton Mendonça (também compositor e que dividiu com Jobim música e letra de, por exemplo, Desafinado, e o próprio Jobim, um grande letrista, como provam as canções em que seu nome aparece sozinho. Wave, por exemplo, era só uma música instrumental com esse nome. Ele pediu a Chico Buarque para fazer a letra. Chico só fez o primeiro verso - "Vou te contar...".   Jobim completou a letra. Ou ainda, o sucesso mundial, como várias outras de Jobim, Águas de Março. 

Pois hoje a estrela desse meu artigo é um dos maiores letristas da MPB, cuja inspiração e versatilidade é admirada por todos que conhecem sua obra. Trata-se de Ronaldo Bastos, que estourou com o Clube da Esquina e, embora tenha uma afinidade muito grande com os mineiros todos, nasceu em Niterói. O que não quer dizer nada, já que Milton Nascimento é carioca de certidão... 

Pra se ter uma ideia da qualidade das letras de Ronaldo Bastos basta dar um olhadinha no Google e elencar seus parceiros: escreveu canções com Milton Nascimento, Celso Fonseca, Beto Guedes, Tom Jobim, Edu Lobo, Lô Borges, Caetano Veloso, Danilo Caymmi, Guilherme Arantes, Toninho Horta, Marina Lima, João Donato, Ed Motta, Flavio Venturini, Lulu Santos, Cleberson Horst, Tito Madi, Johnny Alf, Joyce Moreno, Luiza Brina, César Lacerda, Arthur Nogueira, dentre outros. E seus versos foram cantados por Elis Regina, Nana Caymmi, Milton Nascimento, Gal Costa, Jussara Silveira, Sarah Vaughan, Roupa Nova, Marina Lima, Tom Jobim, Chico Buarque, Simone, Ney Matogrosso dentre outros. 

Pois o disco em questão se chama Cais, nome de um dos seus primeiros sucessos em parceira com Milton, e é especial: dez músicas com os mais variados parceiros e cantadas por astros que não fizeram aquela parceria específica. Lançado como LP em 1989 e como CD em 1995, com produção de Milton Nascimento, Cais é um mini retrato da melhor qualidade desse poeta da MPB. 

Vou seguir a ordem das músicas do CD, mas ela é diferente da ordem do LP. O CD abre com Cais, numa emocionada interpretação de Caetano Veloso. Depois da gravação de Milton e de Elis dessa música, Caetano encarou o desafio com maestria e, detalhes, um arranjo perfeito, discreto e marcante. 

A parceria com Lô Borges, uma das mais frutíferas de Ronaldo, vem a seguir com Sonho Real. Gal se mostra suave em toda melodia de longa letra. Detalhe para o acompanhamento perfeito apenas dos teclados de Wagner Tiso.  

O grande sucesso de Milton Nascimento, Fé Cega, Faca Amolada, que Ronaldo escreveu com o próprio Milton, surge na terceira faixa na interpretação do grande Alceu Valença cujas qualidades todas o Ronaldo já enunciou no artigo anterior a esse. A música ganha um toque mais nordestino aqui na voz do pernambucano.  

A importância de Ronaldo Bastos se evidencia ainda mais na próxima música. Ninguém menos que Tom Jobim se incumbe de tocar piano cantar e fazer o arranjo de Trem Azul. E tem mais: a letra em inglês - que não está nesse disco e sim em Antonio Brasileiro - é do próprio Jobim. Para a gravação, nosso maestro soberano reuniu um timaço de músicos: Paulo Jobim, Danilo Caymmi, Jacques Morelembaum, Paulo Braga e Tião Neto. No vocal, as cinco cantoras que o acompanhavam sempre. Ficou tudo ótimo. 

Chico Buarque se juntou a Mestre Marçal e a quase uma bateria de escola de samba para gravar Circo Marimbondo, também de Milton e Ronaldo.  

O grande sucesso Nada Será Como Antes surge com uma interpretação surpreendente de Herbert Vianna e os Paralamas do Sucesso, com um arranjo funkeado, com metais, guitarra e forte bateria.  

A belíssima letra de Ronaldo Bastos na música de Beto Guedes, Amor de Índio, traz o próprio Milton como intérprete, acompanhado apenas pelo piano de Tulio Mourão. Mais um momento emocionante do disco na voz de Milton, que torna a canção mais lenta, pronunciando muito bem cada palavra na voz que o consagrou. Uma aula de canto por um mestre. 

A feliz união da afinadíssima Ângela Maria com o grupo Nouvelle Cuisine foi a feliz escolha para Bons Amigos, parceria de Ronaldo com Toninho Horta, um violonista de peso que costuma passear pelo mais puro jazz em suas composições. A voz da cantora e de Carlos Fernandes, o cantor do Nouvelle, se misturam no excelente resultado da gravação. 

Flavio Venturini é autor da música a seguir - Todo Azul do Mar. Mega sucesso na gravação do 14 Bis, aqui é Beto Guedes que se incumbe de apresentá-la, com a especial ajuda do Roupa Nova no coral. Um show.  

A última música do CD é A Página do Relâmpago Elétrico, parceria com Beto Guedes. Apresentada pelo RPM, com uma versão mais pro rock balada que ficou muito boa. 

O disco termina com uma vinheta de 50 segundos. Com o som de ondas quebrando na praia suavemente, Caetano canta, à capela, os primeiros versos de Cais. Um final que engrandece ainda mais essa ótima homenagem a um dos melhores poetas da nossa MPB. 

O CD Cais está inteiro disponível no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=qY7M6YFjYzw&list=OLAK5uy_k7RjoHJjsJNw6GR58QN7B9CUJzmtos_Bc

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Aquele que foi e depois acabou fondo...

Por Ronaldo Faria

Escrevo sobre este CD que você não encontrará em lugar nenhum onde ouvir ou comprar para relembrar um passado em que Campinas tinha vida cultural noturna. Na verdade, quanto ao disco, nem o astro dele tem um original. Ele ganhou uma cópia de mim. É o É a Lama Mess!, de Mário Lúcio & Los Lúcios – Pablo e Escobar, sua big banda principal. No endereço https://www.youtube.com/channel/UCiQGfpLJlRglM5ifm_gckHg você verá um pouco desse autodenominado “maior e melhor cantor pop-pornô-brega do universo”. Mas, se procurar pelo nome na internet terá acesso a outro artista, um homônimo cantor, compositor, escritor e pensador de Cabo Verde, na África. Mas o Rebelde Apaixonado tratado aqui ainda é um punhado de cacos na internet que você terá de juntar para ter noção exata daquilo que ele foi.

Mas, então, por que falar de um artista de um único CD que nem o próprio tem? Talvez porque ele faça parte do meu acervo particular e, mesmo perdido entre dezenas de milhares de discos, tenha um espaço no coração e no tempo. Senão, porque este blog seja dedicado à música e até aquilo que não pode ser registrado como música maior seja maior do que a razão de sê-lo. 

É a Lama Mess! é, como eu disse numa reportagem maior para o site Cantares e Esquinas (https://ronaldofaria57.blogspot.com/), um verdadeiro estupro sonoro, entre composições próprias de Los Lúcios e amigos e um hit da época. Todas inclusas no melhor brega musical que Campinas já viveu na década de 1980. Mas, como já escrevi, quem, em sã consciência da maior embriaguez ou do cigarro do capeta, não foi ao delírio a ouvir, por exemplo, Feiticeira, sucesso de Carlos Alexandre, com direitos comprados por trezentos reais para ser reproduzida em mil CDs e cantada de forma tão desafinada nos mesmos? Quem não sonhou em vestir terno de gosto duvidoso e malha cacharréu e subir no palco para pagar um mico que virou sucesso na terrinha?

Mário Lúcio é um fenômeno do acaso musical, que interrompeu há vários anos a carreira para a dor de suas fãs, mesmo que a maioria delas já esteja às portas da menopausa ou deixado essa há tempos. O nome no RG de Mário Lúcio é Marcelo José do Canto. Ele era um então estudante de Jornalismo e garçom no bairro boêmio de Campinas (Cambuí) no tempo em que lá existia música ao vivo para todos os bares e gostos. Foi num desses bares, o Ilustrada, na despedida da vida de garçom para assumir a vaga de repórter da editoria de Esportes no extinto e centenário Diário do Povo, que surgiu o mito das máriolucetes ou lucinetes.

“O show do Ilustrada eu acho que foi no dia 18 de dezembro de 87. Eu não lembro direito. Na época eu morava com Pablo e Escobar, também conhecidos como Márcio Denni Pontes, um baterista conceituado nacionalmente, e Ricardo Botter Maio, um tecladista também conceituado, até internacionalmente. Eu morava numa república com eles. E pensando essas baboseiras todas chego em casa e eles estavam ensaiando porque iam fazer um show com um grupo que o Ricardo tinha na época. Daí eu entrei e falei: ‘Gente, eu vou fazer um show de despedida no Ilustrada. Vocês topam fazer comigo?’ Mas eles disseram: ‘Pô, mas você nem canta’. Daí eu disse para eles ficarem frios que eu ia armar e inventar tudo direitinho. Só queria saber se eles estavam comigo. Eles aceitaram e daí matutei, matutei, matutei e decidi fazer um show brega. Não era ainda Mário Lúcio, não sabia nome e nem nada. Me remeteu também essa criação à minha irmã mais velha, Maria Vitória, que escutava coisas bregas como Ângelo Máximo e Rádio Tupi. Daí decidi: vou cantar Ângelo Máximo, Carlos Alexandre, Evaldo Braga e Wanderlei Cardoso.”

“De repente, começou a pintar tudo na cabeça e iria chamar o meu personagem de Adriano Roberto, que é o nome do Adriano Rosa, fotógrafo e amigo. Mas aí ele falou: ‘Vai por o meu nome como cantor brega?’ Daí teve a Vera Longuini, outra amiga, que estava com uma caderneta de chamada da faculdade que eu peguei e comecei a olhar. Olhei para antes do Marcelo, que era o meu nome, e vi que tinha alguém que se chamava Lúcio, mas não era da minha sala. E depois vi Mário. E ficou Mário Lúcio & Los Lúcios. Depois expliquei tudo para o Denni e o Ricardo. E eles gostaram da ideia. Arranjamos 20 músicas e já tinha tudo – repertório e nome. Só faltava eu aprender a cantar as músicas. Então fiz uma pastinha, copiei as letras e formatei o show.” 

“Depois do show, deu um prazo de 15 dias e começaram os convites de vários lugares para eu me apresentar. E olha que todos os bares do circuito campineiro tinham música ao vivo. Então eu decidi cobrar um cachê um pouquinho alto para a realidade da noite campineira, porque eu sabia quanto era cobrado na noite e os músicos ganhavam. E o mais incrível: o pessoal começou a pagar. A gente estranhava porque o Denni e o Ricardo faziam shows na noite. O Denni era do Soma, um dos melhores grupos que eu já ouvi em Campinas, junto com A Bandida. O Ricardo fazia shows. A família dele é de músicos, com gente até na Suíça e nos Estados Unidos. Mas aí começou a rolar a grana e cada vez mais nos apresentávamos. Nisso entra 1988 e a moçada que viu o show marioluciano aqui já indicava para festa brega na sua cidade. De repente, a gente estava fazendo show fora, dentro das possibilidades, porque eu já trabalhava no Diário, até sábado e domingo. A gente pegava essa Rodovia Anhanguera e fazia show para todo o lado. E eu na correria de conciliar a minha vida como jornalista esportivo e o personagem que começou a criar corpo.”

Se pararmos para pensar, porém, no inusitado e naquilo que é divertido, no que rompe as barreiras do normal e libera sonhos e grilhões, Mário Lúcio foi um torpedo a destruir a métrica e a rítmica. Num momento em que o Brasil mal acabara de sair da ditadura militar, onde os jovens ainda se embrenhavam numa estrada meio sem volta, talvez ele tenha sido o reflexo onde o anormal de monstros e monstrinhas, como ele chama os fãs, animais que viviam presos em cada um e soltos na noite, se libertavam junto ao cantor performático e carismático. “Em 2003 foi o último show que nós fizemos. Em 2004 íamos fazer um na Estação Cultura, mas no dia tive um problema de falecimento na família e não fiz. E nesse dia foi muita gente ver e até levaram faixa e tudo. Mas não teve.” 

Passado tanto tempo, restou, para quem se aventurou a comprar É a Lama Mess!, gravado e mixado em 1996, ter em mãos um exemplar da MPB esculachada, divertida e despretensiosa. Ao todo são 13 faixas. Cada uma com a certeza de ouvir algo entre o riso e a tosquice da boa. Tem desde Feiticeira até composições dos Los Lúcios. Do Mário mesmo, nada, além da voz desafinada e engraçada. Há desde o bolero El Tesón Del Cone Sul (um épico) a Douglas and Juraci, passando por Blackout no Rodízio, Discarada, Ébria Maria e Pastor Alemão. Junte Lover Man, O Penúltimo Rebelde, Hole of Lock (O Buraco na Fechadura), Foguete Indomável, Perfume Raro e Agora, o Último Rebelde. Ponha tudo num liquidificador sensorial e terá um misto de brega e besteirol. A "arte" de Mário Lúcio se encaixava entre Falcão (o Mário Lúcio que deu certo), Premeditando o Breque e Língua de Trapo. Mas, como diria o Chacrinha, tudo foi um programa que acaba quando termina. Quem viu, viu. Quem não viu, nunca mais verá. Pois, como cantava Cazuza, o tempo não para. Só que, para Mário Lúcio e tristeza dos fãs, ele parou...

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Alceu Valença e suas oito pérolas

Por Ronaldo Faria

O disco é curto. São apenas 27 minutos e 49 segundos. E tem somente oito músicas. Entretanto, ele marcou a carreira de Alceu Valença, que já tinha sete discos em estúdio gravados anteriormente. Bateu a marca de 1 milhão de cópias na época e consagrou em definitivo esse pernambucano no cenário da MPB. Este ano Cavalo de Pau completa quatro décadas do seu lançamento e continua épico. Afinal, as canções nele contidas são até hoje hits valencianos. E quem, em 1982, que estivesse na faixa dos seus 20 e poucos anos, não curtiu paixões, noitadas, bebedeiras, amores ou loucuras do bem com essa raridade sonora... Afinal, esse era um tempo em que o Brasil tentava respirar liberdades, nos estertores da ditadura militar. A sensação de descobrir e redescobrir coisas novas explodia na juventude e na sociedade. Alceu foi um desses marcos de brasilidade renovada vinda do Nordeste, com seu maracatu e forró, misto de reggae e xaxado.  

O disco é autoral. Das oito composições, quatro Alceu conta com parceiros. Morena Tropicana e Pelas Ruas que Andei divide com Vicente Barreto. Já Maracatu tem parceria com Ascenso Ferreira e o grande e eterno Dominguinhos assina junto Lava Mágoas. Rima com Rima, Cavalo de Pau, Martelo Alagoano e Como Dois Animais são de autoria própria.

Alceu Valença, que está com 75 anos, é de São Bento do Una, no agreste de Pernambuco. Aliás, Pernambuco é um caso a ser estudado a fundo na MPB. É um estado onde a música brota do chão com a força do novo, do renovado, com expressões múltiplas e coletivas que arrancam desde a sonoridade do seu interior à urbanidade de Recife. Com grupos que mostram a potencialidade em notas e versos, há a vida que vai do caos das palafitas à revolta transformadora que junta genialidade e teatralidade.

Tentarei, no futuro, mostrar um pouco desse tanto que é Pernambuco, unidade da Federação que mais lança coisas boas à MPB. Tudo com traço local e universal. A música que vem de lá não pode ser rotulada como um gênero apenas. Quinteto Violado, Banda de Pau e Corda, Banda de Pífanos de Caruaru, Nação Zumbi, Cordel do Fogo Encantado, Cascabulho, Mestre Ambrósio, Mombojó, Mundo Livre S/A, Ave Sangria, SpokFrevo Orquestra, Quinteto Armorial e Comadre Fulozinha são apenas alguns exemplos de grupos.

Já compositores, músicos, cantores e cantoras formam um número sem ter fim. Além de Alceu Valença, há Accioly Neto, Bezerra da Silva, Anastácia, Dominguinhos, Jorge de Altinho, Chiquinha Gonzaga, Lenine, Lia de Itamaracá, Luiz Gonzaga, Lula Côrtes, Lula Queiroga, Luiz Vieira, Antônio Nóbrega, Nando Cordel, Otto, Paulo Diniz, Rildo Hora, Selma do Coco, Siba e Velho Faceta, entre tantos mais.

Mas, voltemos a esse grande Alceu Valença. Ex-advogado e jornalista (se formou no primeiro e foi correspondente do extinto JB em Recife), em 1971 foi cair no Rio de Janeiro para se aventurar na vida musical. Com o seu parceiro de vida Geraldo Azevedo lança em 1972 seu primeiro disco – Quadrafônico. Depois, mais 29 discos de estúdio, onze ao vivo e 12 coletâneas surgiriam. O último, do ano passado, é Senhora Estrada.

Mas Cavalo de Pau é, sem dúvida, um marco definitivo na sua obra. Com Morena Tropicana galgou todas as listas de audição nas rádios da época. Tornou-se hit nacional, mostrou que a sua música tinha se consolidado como irreversível às emoções e ouvidos de todos nós. Era impossível frequentar um bar de música ao vivo sem escutar algo de Alceu (e creiam que em Campinas já existiu um tempo onde a música nos bares era livre para deleite de todos). Era impossível frequentar uma festa em república sem rolar o disco na vitrola. Todas as oito faixas podiam afundar no vinil se alguém não se lembrasse de mudar. E para quê mudar? Para a noite e madrugada serem boas era só deixar Alceu rolar.

Esse é um disco histórico, que merece estar nos alfarrábios sonoros de todos que gostam de MPB. Sigo Alceu desde então. Para mim, a sua obra transcende o tempo, desde os idos de 1982, ano que desembarquei aqui em definitivo na profissão e fui viver. Além de Cavalo de Pau, tenho diversos discos da sua lavra que foram pérolas desse período de quatro décadas. Vou falar rapidamente de outro que um dia discorrerei com maior atenção e respeito musical: Valencianas, de 2014. Gravado junto com a Orquestra Ouro Preto, é um CD/DVD imprescindível também vital para ouvidos e corações. Mas isso fica para depois. Curtam agora os 40 anos de Cavalo de Pau. E voltemos no tempo na esperança que, com esse voltar, a tal de esperança chegue de volta também.

Cavalo de Pau pode ser ouvido na íntegra no Amazon Music, no Spotify, no YouTube Music e no Deezer.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Piazzolla/Mulligan: uma reunião de cúpula

Por Edmilson Siqueira

Um disco gravado em 1974 - lá se vai quase meio século - ainda hoje faz a cabeça de muita gente. É o registro do encontro entre o gênio do "nuevo tango" argentino, Astor Piazzolla (1921-1992), e o saxofonista de jazz norte-americano Gerry Mulligan (1927-1996). O disco recebeu o nome de Summit em inglês e Reunión de Cumbre, em espanhol. Ou também Tango Nuevo, como foi chamado em alguns países. Pra nós, Reunião de Cúpula fica de bom tamanho, afinal, são dois expoentes, cada qual com seu particular talento, juntando suas qualidades e nos brindando com quase 40 minutos (os LPs tinham uma limitação de tempo bem inferior aos CDs) de uma música que nos leva por distantes fronteiras de um mundo dividido, mas que poderia se juntar e produzir coisas belas. Acho que essa é uma das mensagens possíveis do disco: a Argentina que estava, até o ano anterior ao da gravação, sob uma feroz ditadura militar (como quase toda América Latina e no Brasil prosseguiria até 1985), e um dos seus mais inquietos artistas, vivendo na Europa, se junta a um norte-americano e, do encontro, sai um disco que, quase 50 anos depois, é exemplo de como a boa música transcende ideologias e agrega muitos valores ao ser humano. 

O disco, eu diria que é mais de Piazzolla que de Mulligan e isso talvez se deva à forte personalidade do argentino e também ao fato de que ele compunha sua obra, enquanto Mulligan, que também compôs, mas não muito, preferia ser um instrumentista. E era dos grandes. 

Assim, das oito faixas do disco, apenas uma é de Mulligan. Nas outras sete, Piazzolla desfila seu repertório "tanguista", porém cheio de referências universais, numa mistura que, feita com capricho e talento, o colocou no centro do cenário da música instrumental da segunda metade do século 20.  

O disco foi gravado em três dias de setembro e quatro dias de outubro em Milão, Itália, onde Piazzolla vivia à época. No estúdio, uma banda moderna, eletrificada, com piano Fender Rhodes, órgão Hammond, duas guitarras elétricas, bateria e percussão, acrescida de um trio com violino, viola e cello acústicos, formou a base para que Piazzolla e Mulligan desfilassem melodias, arranjos e improvisos na viagem musical que se propuseram. 

Piazzolla se encarregou dos arranjos todos, mas percebe-se que sua preocupação com o sax tenor de Mulligan é grande: em momento algum o jazzista fica sem parte importante do solo ou dos improvisos. A camaradagem entre os dois fica evidente e só melhora tudo. 

O clima sombrio da primeira faixa - Twenty Years Ago - dá o mote para o disco, embora haja nele momentos de complexa estrutura musical. A divisão dos trabalhos - o bandoneon e o sax às vezes solando, às vezes casando-se perfeitamente, aponta para uma sequência de prazeres auditivos. 

Close Your Eyes and Listen, a segunda faixa, assume, logo de cara, ares de uma balada romântica ao estilo Chet Baker, com o sax comandando a sessão no início e, depois, dividindo com o bandoneon a tarefa de completar a música, improvisar e torná-la, inclusive, mais alegre. 

A próxima faixa - Years of Solitude - é a mais famosa de Piazzolla no disco. Feita para o espetáculo musical Libertango (também gravado em disco), é a faixa de maior impacto, com marcante percussão que delineia a bela melodia, onde se juntam, no solo, sax e bandoneon, deixando sua massa sonora mais forte.  

Deus Xangô foi feita especialmente para o encontro entre os dois. Nela, Piazzolla expõe um clima misterioso, numa forte presença rítmica que cresce e dá a base para todo o resto, tanto para o bandoneon quanto para o sax, que dividem os solos.  

Twenty Years After não se trata de uma continuação da primeira faixa. É outro clima, muito mais para tango que para jazz, uma música ligeira, que vai para todos os lados possíveis, como a buscar um canto onde possa se instalar, o que parece acontecer na parte final, quando o ritmo alucinante é contido por alguns momentos, para depois voltar àquela urgência. 

A única faixa composta por Mulligan parece ser uma homenagem a Piazzolla: Aires de Buenos Aires. Obviamente, o espírito jazzista se sobrepõe, mas é o bandoneon que comanda toda primeira parte. A segunda parte, mais lenta, traz linda melodia.  

Reminiscense, a sétima e mais longa faixa do disco (6m30s), tem a estrutura clássica de Piazzolla: um começo vibrante, com bateria marcante, até uma espécie de ápice, quando a melodia se desmancha e alguns elementos psicodélicos antecipam a segunda parte, composta por longas frase do bandoneon e do sax para, claro, tudo voltar ao princípio, num ritmo quase frenético a caminho do fim. 

A música que dá título ao disco, encerra os trabalhos: Summit, com pouco mais de três minutos e meio, é uma síntese mesmo do encontro: vibrante do começo ao fim, tem elementos latinos e jazzísticos. Piazzola e Mulligan se despedem em alto estilo, proporcionando um grand finale a um disco excepcional, fruto do talento e da criatividade de dois grandes artistas.  

Esse disco está disponível para ouvir na íntegra no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=OLiJwjc6F1A 

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Hendrix, o maior das cordas e do tempo

Por Ronaldo Faria

Hoje (terça-feira, dia 8), dia que voltei para casa pensando no quanto a vida é efêmera e que cada segundo nada mais é do que passado (o presente é abstrato e o futuro, incerto, não existe, já que sempre será um segundo presente que vira passado no próximo segundo), resolvi escrever sobre o disco Blues, de Jimi Hendrix. Para falar dessa obra, roubo um pedaço da Wikipédia: Blues, de 1994, contém onze canções anteriormente gravadas entre 1966 e 1970. São sete composições próprias junto com regravações de famosas canções de blues como Born Under a Bad Sign e Mannish Boy. E a ouvir a guitarra Fender desse gênio do rock, morto em 1970 prematuramente aos 27 anos, de overdose, me atenho àquilo que pode ser chamado de fama e de finitude. Ele teve a fama e “optou” pela finitude que o levou à eternidade como lenda do rock. 

Tenho toda a discografia oficial de Hendrix, em estúdio ou ao vivo, baixada e lançada entre 1964 e 2008, além de outros discos póstumos e de homenagem, como Blues. Assim como revejo muitas vezes a sua apresentação em Woodstock (também tenho o que foi gravado e reproduzido naquele que foi o ícone dos festivais, em três discos posteriores), além do DVD alusivo. Para mim, esse guitarrista representa muito do rock e da loucura dos Anos 60. Da liberdade que se lançou naquela década para o planeta: o romper de parâmetros e padrões, o movimento hippie, a luta contra a guerra do Vietnã, a ênfase na luta de libertação e igualdades das mulheres, a juventude em revolta nos continentes, a contracultura, o amor livre, as descobertas e fugas pelas drogas, o romper com a caretice vigente, o combate ao racismo explícito nos Estados Unidos, o rock se impondo, o embate declarado a tudo que era antiquado e opressor.

Nasci em 1957 e, portanto, dos Anos 60 guardo apenas um pouco da minha infância e pré-adolescência. Infelizmente, pouco. Na verdade, trago desse período mais as minhas raízes com o Nordeste, sua música e sua gente do que a febre que marcou a década. E, claro, trago um pouco de Tropicália, das canções que cantava. Nessas horas queria ter nascido no início dos Anos 50 para ter vivido a loucura transformadora que a década seguinte impôs ao planeta. Não quis o destino, porém, que assim fosse. E contra o destino e o encontro de espermas e óvulos não se tem como brigar.

Jimi Hendrix com certeza é um ícone dessa realidade nova, assim como Janis Joplin, Creedence Clearwater Revival, Joe Cocker, The Who, Jefferson Airplane, Santana, Joan Baez e tantos outros que estiveram em Woodstock em 1969. Após a sua morte não faltaram exclamações declaradas e textos sobre a sua genialidade como guitarrista, escritos e repetidos nos Estados Unidos, Inglaterra e no mundo. Votações e especialistas, publicações como a Rolling Stones, o colocaram como maior guitarrista que o planeta já viu. Da sua guitarra saíam sons estridentes e incríveis. Da sua voz, interpretações fantásticas. Em Blues, a certeza de que ele era realmente uma voz plural e envolvente, mágica e comovente, total, enlouquecida e sóbria em cada nota, em cada acorde, na sua plenitude. 

É difícil descrever cada música implícita no álbum pelo simples fato de escrever sob o seu som. E o som de Hendrix não é de se explicar e dizer algo técnico ou definitivo. É de se ouvir e sentir, se envolver. Algumas delas nem parecem blues. São verdadeiras orgias de rock declarado. Mas o rock não tem raízes no blues? Logo, tudo no liquidificador das emoções vira uma coisa só, embalada por Jimi Hendrix, bandas e o que vier. O que eu sei é que é um disco a se ouvir, assim como toda a discografia desse moço de Seattle encontrado morto em Londres. Assim como a execução do hino nacional dos Estados Unidos em Woodstock, em que a sua guitarra virou uma metralhadora, não pode ser desprezada pelos ouvidos de quem ama a música (https://www.facebook.com/watch/?v=1848692391934700). Sob a ação de LSD ou não, ali Hendrix mostrou que "loucura" e “sanidade emocional” convivem numa coisa só. E essa foi a essência de sua passagem rápida pela Terra: mostrar que ambos são objetos vivos dessa coisa incrível chamada música. Essa expressão que une musicoólatras por todo o planeta. A certeza de que amor e paixão haverão de prosperar na sua finitude planetária e sobreviver no inconsciente coletivo, mesmo que esse coletivo seja um grupo mirrado de ensandecidos, notívagos e sonhadores.  Sejamos, pois...

Esse álbum você encontra no Deezer e no Amazon Music.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Renato Braz, um senhor cantor da melhor MPB

Por Edmilson Siqueira

Renato Braz é um cantor. Toca bateria, percussão e violão, mas não compõe. Seu último disco, Canto Guerreiro, começa com uma faixa chamada Levantados do Chão, de Milton Nascimento e Chico Buarque. Da gravação participaram, além de Renato, os autores Chico e Milton. No disco, encontramos ainda as participações de Gilberto Gil, Dori Caymmi, Cristóvão Bastos, Alice Passos, Cezinha Oliveira, Eduardo Gudin, Guinga, Karine Telles, Miúcha, Proveta, Nelson Ayres, o saxofonista norte-americano Paul Winter, o português Roberto Leão e o baixista Rodolfo Stroeter. O que só prova que Renato Braz não é apenas mais um cantor afinado brasileiro e, sim, um dos maiores intérpretes da MBP que o Brasil tem atualmente. 

Eu tenho dois CDs do moço, que nasceu em São Paulo, há 53 anos. Sua biografia nas redes é singela. Diz que cresceu ouvindo música e aos quinze anos começou a se familiarizar com a percussão e logo assumiu o posto de baterista tocando nas noites. Como vocalista e baterista, Renato Braz cresceu cantando em festivais. O artista teve a chance de se apresentar ao lado de grandes nomes da música brasileira como Luiz Melodia, Antônio Nóbrega e Ney Matogrosso, ganhando reconhecimento e público. O resto é uma fieira de grandes discos e prêmios de melhor intérprete. E ele merece. 

Os dois CDs que tenho dele - o primeiro, chamado apenas Renato Braz, de 1997 e o terceiro, Quixote, de 2002 - foram suficientes para que eu percebesse que estava diante de um cantor diferenciado. Sua voz não se encaixa em padrões comuns, pois carrega um sentimento que se sobrepõe ao canto, afinadíssimo por sinal, e traz em seu bojo aquela calmaria que enleva e aquela força que permanece nos ouvidos muito tempo depois de terminada a audição. 

No primeiro disco, a surpresa - muito agradável - acontece logo na primeira faixa, Porto, de Dori Caymmi. Música sem letra, apenas com o vocal de Renato acompanhado de ninguém menos que Monica Salmaso, uma cantora que transforma em diamantes os minérios que garimpa e grava da nossa MPB.  

As surpresas - para um primeiro disco - continuam nas faixas seguintes, pois logo a seguir aparece um standard da música norte-americana, Smile (Charlie Chaplin, Geoffrey Parsons e John Turner), que virou Sorri, na famosa versão de João de Barro. A intepretação de Renato para a letra brasileira está entre as definitivas dessa música, acompanhado pelo seu violão, sempre muito bem tocado, mais o acordeom de Toninho Ferragutti e o contrabaixo de Sizão Machado.   

As faixas seguintes nos obrigam a parar de fazer o que estivermos fazendo para nos entregarmos ao prazer de ouvir um grande cantor. É assim com Anabela (Paulo Cesar Pinheiro e Mário Gil), como samba Meu Drama, também conhecida como Senhora Tentação (Silas de Oliveira e Joaquim Harindo) e com a perfeita Onde Está Você (de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini), eternizada na voz de Alaíde Costa.  

Passarinheiro (Jean Garfunkel e Pratinha), Cantiga do Sapo (Jackson do Pandeiro e Pratinha), Pagão (Chico César), Bambayuque (Zeca Baleiro), Assum Preto (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira), Retirantes (Dorival Caymmi), 7x7 (Guinga e Aldyr Blanc e Estrela da Terra (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro) completam  o disco e provam a excelência e variedade do repertório que Renato selecionou. Não há nenhuma música que não lhe traga aquele prazer de ouvir, tanto pelas interpretações quanto pelo refinado acompanhamento.  

O outro CD, Quixote, traz um Renato Braz melhor ainda. A presença constante de Dori Caymmi, tanto com suas canções como participando das gravações, mostra que Renato atrai sempre boa companhia. A faixa de abertura, de Dori e Paulo César Pinheiro é uma espécie de oração que se desenvolve por deliciosa melodia, tão prenhe de mineirices que muita gente pensa tratar-se de obra de Milton Nascimento. Ele assinaria, com certeza.  

Canteiro de Obra (Wilson Moreira e Sergio Fonseca) aproveita uma cantiga de roda para contar a realidade dos retirantes na cidade grande. O disco prossegue espalhando excelências musicais como Comunhão (Mario Gil), O Velho Francisco (Chico Buarque), Saudade Mata a Gente (João de Barro e Antonio de Almeida), Disparada (Theo de Barros e Geraldo Vandré), Tristeza do Jeca (Angelino de Oliveira) e Amiga (Edson Ribeiro e Cleonice). São músicas em que cada intepretação revela novas nuances de músicas já conhecidas que se tornam ainda mais atraentes ainda na voz de Renato.  

Uma espécie de segunda parte do CD se abre com Vida da Semana, uma autêntica moda de viola de Riachão que tem a participação vocal de Chico César. O samba-enredo de Mario Duarte e Paulo César Pinheiro - O Canto das Três Raças - que não ganhou o concurso da Portela, mas fez enorme sucesso na voz de Clara Nunes, ganha interpretação coerente de Renato Braz.  

E as ótimas interpretações prosseguem com Canção para Ninar um Neguim (Zeca Baleiro), Onde Está Você (Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini) que aqui ganha, quase como uma homenagem, a participação especialíssima de Alaíde Costa, num emocionante encontro, Todo Menino é um Rei, o gostoso samba de Nelson Rufino e Zé Luiz, encerrando com Não Vim para Ficar, de Wilson Dia e Paulo César Pinheiro.  

Toda a discografia desse grande cantor está disponível nas boas lojas virtuais do ramo e há muitas músicas dele disponíveis no Youtube, algumas inclusive mostrando trechos de shows ao vivo.  Tudo muito bom e que merece ser ouvido. 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Três mulheres incríveis do clã Adnet

Por Ronaldo Faria

Venho, através deste, homenagear três mulheres da família Adnet: Muiza, Maucha e Antonia. As duas primeiras, irmãs. Antonia, a sobrinha. As duas primeiras, irmãs de Mario e Chico Adnet. Antonia, filha de Mario, que foi tema do brilhante texto do último sábado escrito pelo Edmilson Siqueira. Logo, me senti na obrigação de falar das três, citadas no texto. E logo vem a pergunta: como uma família pode ser tão pródiga musicalmente? Certamente um gene fantástico caiu pelas bandas de lá. E frutificou de forma desbragada, para a alegria de nossos ouvidos e emoções sonoras. Acho que se fosse pai dessa prole e avô de Antonia (junte-se ainda Marcelo Adnet) levantaria todas as noites e dias as mãos para os céus e diria: “acertei na loteria da cultura e da arte”. E essa não há dinheiro que compre. Ou se tem ou não se tem. E os Adnet têm.

Da Muiza eu tenho uma obra-prima que homenageia um dos maiores compositores, arranjadores, músicos e maestros brasileiros - Moacir Santos (morto nos Estados Unidos em 2006). Um ícone que fez carreira reconhecida e reverenciada no Tio Sam e aqui foi quase esquecido. Como maestro, dominava “apenas”, com excelência, saxofone, o piano, a clarineta, o trompete, o banjo, o violão e a bateria. Alguém que foi mestre somente de Baden PowellPaulo MouraJoão DonatoNara LeãoRoberto MenescalSérgio Mendes, entre outros.  

Muiza conheceu o maestro graças a Mario que, junto com o saxofonista Zé Nogueira, preparava o CD Ouro Negro, para homenagear Moacir Santos (este é outro CD/DVD de que falarei um dia, por ser algo que nem o nome obra-prima define). Mas, enfim, a partir desse encontro inicial Muiza decidiu também fazer sua homenagem ao maestro. E surgiu As Canções de Moacir Santos. Ao todo são 12 composições que mostram um lado pequeno daquilo que o maestro criou. Sob direção musical e arranjos de Mario Adnet, o disco reúne, além do próprio Mario, o grande Moacir Santos, Milton Nascimento, Ivan Lins, Zé Nogueira e Ricardo Silveira, entre outros.

Há obras escritas no Tio Sam e cantadas em inglês e coisas do Brasil. Desde Nanã (uma de suas músicas mais conhecidas) às lúdicas A Santinha Lá da Serra e Ciranda, onde Muiza divide a voz com Moacir (em A Santinha, Milton se une aos dois). Mas todas as composições incluídas nessa produção merecem ser eternizadas. De 2007, o disco teve lançamento posterior à morte do maestro e perpetuou nele a sua voz e o seu talento. Com todo o carinho que lhe era peculiar, deixou uma frase marcada para a intérprete: “Se eu fosse o imperador, Muiza seria a minha cantora”.  Esse CD é, sem dúvida, algo que não pode passar despercebido pelos ouvidos de quem ama a música de excelência.

Já o CD da Maucha é o The Jobim Songbook. A conheci como cantora ainda no Rio de Janeiro, quando a via nos palcos como integrante de o Céu da Boca (tema de um texto anterior neste blog). Esse disco é de 2006. Consegui comprá-lo só via importação (ele não veio como lançamento para o Brasil). Gravado em julho de 2004 em Nova York, onde ela mora até hoje, traz 13 composições do Tom. E Maucha tem todo o direito de gravar as coisas do Antonio Carlos e fazer esta homenagem nos dez anos da morte do maestro soberano. Afinal ela fez parte da Banda Nova, que acompanhou Tom durante dez anos, entre 1984 e 1994, ou seja, até a morte daquele que marcou a MPB. 

Neste CD há a participação de Mario Adnet, do baterista Duduka da Fonseca (seu marido), Joe Lovano (sax), Romero Lubambo (guitarra acústica), Randy Brecker (flugelhorn), Claudio Roditi (flugelhorn), Jay Ashby (trombone), Nilson Matta (violão acústico) e Helio Alves (piano). Com esse elenco, vê-se o que Tom tinha de mais popular de volta; Garota de Ipanema, Águas de Março, Ela é Carioca, Insensatez, Samba do Avião, Chega de Saudade e Desafinado, entre outras. Na voz de Maucha, um leque de músicas de alguém com quem ela conviveu nos palcos e no dia-a-dia. Na contracapa do CD, um pouco daquilo que Tom pensava dela: “Maucha and i have travelled the world with the Banda Nova. She is a marvellous singer. Her voice is deep, rich and mysterious. It makes me long for the Brazilian Forest. She is a great artist (Maucha e eu viajamos pelo mundo com a Banda Nova. Ela é uma cantora maravilhosa. Sua voz é profunda, rica e misteriosa. Isso me faz ansiar pela Floresta Brasileira. Ela é uma grande artista).” E não precisa dizer mais nada.

Por fim, Antonia Adnet. Filha de Mario, ela é arranjadora, compositora, violonista e cantora. Dela eu tenho o CD Discreta, de 2010, produzido por ela e seu pai com a participação de Roberta Sá, Marcelo Adnet e João Cavalcanti. Ao todo são 12 composições. Dessas, sete são dela, sendo quatro próprias em letra e música, sem parcerias. Em várias músicas os arranjos são dela também. Ou seja, a garantia de que o clã Adnet não irá parar tão cedo. 

Na faixa que leva o nome do CD, divide a voz com Roberta Sá. Composta por ela em parceria com João Cavalcanti (ex-Casuarina e filho de Lenine), a música tem uma letra e melodia que valem nomear o disco. Mas Antonia mostra que não é só cantora no CD. Ela toca seu violão de sete cordas na faixa instrumental Vitrine, do eterno Moacir Santos. E volta ao violão em Primeiro Choro. Na verdade, todo o disco é um discorrer de novidade musical, com as incríveis Dois, Um Dia Quem Sabe e Vem e Vai. Em Pessoas Incríveis, divide a voz com o seu primo Marcelo. Afinal, como diz a letra, “fundamental é dividir um prazer”. Para Quero um Xamego, de Dominguinhos e Anastacia, a voz que a acompanha é de João Cavalcanti. E o ritmo nordestino vira um verdadeiro chamego para se ouvir. Por fim, vêm Bom Assim, Salineiras e Tema de Outono (outro instrumental com o violão de Antonia). E, para nossa tristeza auditiva, o disco acaba. Mas podia ficar rodando até gastar o laser.

Assim, há apenas uma verdade absoluta: que as Adnet se multipliquem para a eternidade. Nossa MPB só terá a agradecer.

Esses três álbuns você pode ouvir na Amazon Music, no Spotify e no Deezer.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Luiz Tatit, o intelectual da canção popular

 Por Edmilson Siqueira

Quem ouve Luiz Tatit cantar aquelas músicas singelas com letras cujas soluções nos surpreendem de tão óbvias e, ao mesmo tempo, tão criativas, e não sabe da carreira do artista, pode pensar que se trata de alguém que gosta de versejar, que sabe completar a rima difícil, uma espécie de repentista moderno com farto e preciso vocabulário. 

Pois Tatit é tudo isso e muito mais. Formado em Letras (Linguística) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo, em 1978, e em Música (Composição), pela Escola de Comunicações e Artes (1979) da mesma universidade, obteve seu doutorado em 1986 na FFLCH da USP, com a tese Elementos Semióticos para uma Tipologia da Canção Popular Brasileira. É professor titular do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras & Ciências Humanas da USP.  

É mole? A tal da MPB tem um legítimo intelectual a lhe cantar os versos e a lhe esmiuçar as entranhas semioticamente, o que, convenhamos, é motivo de orgulho para todos nós, musicoólatras que somos. 

Luiz Tati tem 70 anos e extensa bagagem que o coloca num panteão todo particular da MPB: não deve haver quem torça o nariz diante de sua produção musical. Sua música fala para todos e provoca repentina intimidade em que a ouve. 

Já seu lado intelectual, autor de inúmeros livros de semiótica, pode ser visto em ótima entrevista dada ao portal da Fapesp, a Marcio Ferrari, em 2016, onde ele fala também do início de sua carreira com o Grupo Rumo. Está nesse link: https://revistapesquisa.fapesp.br/luiz-tatit-a-forma-exata-da-cancao/

O começo com Grupo Rumo foi no início dos anos 80, fazendo o que, à época, considerou-se a vanguarda da música paulistana. Foram seis discos gravados, de 1981 a 1991. Em 2019 ainda participou de um disco - Universo - com o Rumo. 

Sua música, além de promover empatia imediata, traz, muitas vezes, uma deliciosa dose de humor, às vezes negro, às vezes meio inglês e outras, ainda, escrachado simplesmente.

Um dos melhores discos dele é Ouvidos Uni-vos, de 2005, sobre o qual vou falar um pouco mais aqui, mas toda sua discografia merece ser ouvida, pois é certo o prazer. 

Gravado pela Dabliú Discos, a obra começa com Baião do Tomás, parceria de Tatit com Chico Saraiva, uma surpreendente canção sobre o nascimento de um garoto que é orgulho da família toda (toda mesmo!) desde o berço.

Final Feliz, a segunda, apenas de Luiz Tatit, é mais introspectiva, na primeira pessoa, trata da fuga de casa, imaginária ou não, que todo e toda adolescente tenta realizar um dia. Quase um blue que termina onde começa e deixa no ar aquela enorme interrogação sobre o que faze no futuro que começa ali. E tudo isso numa linguagem simples e bonita.

A terceira faixa é um rock. Mas não um rock qualquer. É Rock de Breque, dedicada a seu amigo e parceiro Itamar Assunção (13/09/1949 - 12/06/2003), uma mistura deliciosa entre o ritmo norte-americano com o samba de breque estilizado, própria da difícil arte do “mestre Assunção, e cuja letra tem a frase que dá título ao disco”.

Depois da homenagem, Tatit mostra uma parceria com Assunção que retoma aquela linha do humor negro, onde todas suas dores são explicitadas e, de tão pungentes, acabam até por divertir quem ouve. Mas dói.

A grande cantora Ná Ozzetti tem sido uma constante na carreira de Tatit. E é ela que aparece na faixa seguinte, Minta, de Tatit e Ricardo Brein. Trata-se de uma canção de amor, acompanhada apenas pelo piano de Marcelo Jeneci, que Ná Ozzetti interpreta no tom certo, com aquele tom de amargura necessário. 

O tom irônico e divertido, constante obra de Tatit, volta em Perdido. A ajuda forçada que uma amiga quer dar ao personagem por considerá-lo necessitado, cria inusitada situação, numa longa letra que começa e termina do mesmo jeito, com a novidade de que a amiga se propõe a ficar com quem ela "curou". Hilária. 

Com Terceira Pessoa, Tati retoma uma espécie de realismo fantástico musical, misturando duas pessoas diferentes numa só, e preferindo sempre a outra ao invés daquela, embora ambas sejam a mesma. A letra é um achado, própria de quem domina a linguagem e suas entranhas.

Brincadeira, de Tom Ozzetti e Luiz Tati remete quase à bossa nova no início da letra, onde o otimismo do amor que começa parece caminhar para um final feliz, mas é confrontado com as agruras de um relacionamento que ama e odeia.

Um bom samba, Controlado, é o que vem a seguir. É a divertida (mais uma vez) confissão de um amor louco que tenta disfarçar a loucura, mas no fim não consegue, se entrega, mas diz que vai melhorar. Tudo num sambinha rasgado muito bem definido que tanto encanta quanto diverte. 

Tom de Quem Reclama descreve, numa canção singela, uma estranha relação entre o personagem e sua voz que, rebelde, fala muito mais do que seu dono pretende. Surrealista o resultado desse pequeno tratado de rebeldia de "uma voz que não controlo/e que sai da minha boca/eu só falo o necessário/ela é sempre tão barroca". 

A poluição e as enchentes do Tietê são tema da canção que leva o nome do rio. Tatit afirma, ironicamente, não entender por que um rio deixa o verde da serra (sua nascente) para vir pra capital, se sujar e causar enchentes no verão. A canção que dá suporte à reflexão é quase clássica, com acompanhamento de violinos, viola e celo. 

A Perigo, parceria com Edward Lopes, trata da desilusão amorosa que fere e faz sofrer, solucionada com uma letra confessional e muito bem resolvida.

O disco se encerra com um sucesso de Luiz Tatit e Zé Miguel Wisnik - Baião de Quatro Toques - música regravada por vários cantores e grupos, como Mônica Salmaso, Grupo Ordinarius, Grupo São Vicente a Cappela (que apresentou a música na Alemanha) e a dupla Luiz (Brasil) e Jussara (Silveira), entre outros. É uma ousada e criativa "versão" da Quinta Sinfonia de Beethoven "que decantou e ficou só a raiz", como diz a letra.  

O CD Ouvido Uni-vos se encontra à disposição no Youtube - https://www.youtube.com/watch?v=ckBiTyUL9hY&list=OLAK5uy_khffLwNP0GvfoHoE9TuQ7ocGZCiDOVfAA

Mas, como disse anteriormente, a obra de Luiz Tatit merece ser ouvida em sua plenitude. São nove CDs e três DVDs que se encontram à venda nas boas lojas virtuais do ramo.

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...