terça-feira, 24 de maio de 2022

O estilo de Júlio Caliman

 Por Edmilson Siqueira 

Em 2008, Júlio Caliman gravou um CD que ouço com muito prazer até hoje. Trata-se de "Tão Longe", um instrumental onde ele mostra suas qualidades na guitarra, na composição e até arrisca cantar duas músicas, uma de sua autoria e outra um clássico de Johnny Alf.  


Nesse mesmo ano, ele iniciou estudos na Northern Illinois University (NIU), em Dekalb, Illinois, tendo estudado com Fareed Haque, Ron Carter, Willie Pickens e Art Davis. Ali recebeu, em maio de 2010 o Performer's Certificate in Music após dois anos de estudo. Durante esses dois anos, ele teve um blog onde contava sus aventuras nos EUA. Como os textos eram muitos bons, aproveitei alguns deles num blog que mantinha à época. Depois ele voltou ao Brasil e não tive mais contato. Mas hoje ele é professor de música e, espero, continue compondo e preparando algum disco. 


Esse "Tão Longe", como ele próprio diz no encarte, "é o resumo de uma careira que já tem [tinha, na época] 15 anos. As seis músicas de minha autoria aqui incluídas foram compostas em momentos diversos da minha vida, como "Ressaca" (1995), feita no último ano da faculdade. Essas composições refletem, aqui e acolá, algumas das minhas influências, em especial Dori Caymmi, Toninho Horta, Djavan, Pat Metheney e Wes Montgomery".  

O estilo de todo disco é mais jazzístico, com pitadas de MPB e bossa nova e, em todos os estilos, se sobressai a guitarra ou violão, contido, porém exato e inspirado de Júlio Caliman. Trata-se de um desses músicos que têm a teoria e a prática a seu dispor. Estudioso, é Mestre em Música pela Unicamp desde 2006, tendo encerrado o curso com a dissertação "O Cantador: a música e o violão de Dori Caymmi". 


O grupo de músicos que o acompanha varia pouco em cada música. Sidney Ferraz e Erik Escobar nos teclados, Bruno Capini e Marcos Souza no baixo acústico ou elétrico, Fábio Bergamin e Pepe D'Elia na bateria, Fábio Bergamini na percussão e Vinicius Dorin no sax tenor em apenas uma música, se revezam, mantendo o ótimo nível em todas as dez faixas. 


Seis músicas são de autoria do próprio Júlio (Vila São João, Pititica, Ressaca, À La Dori, Happy Hour e Tão Longe). As outras quatro, Júlio explica que três delas foram cedidas por amigos, sendo uma delas feita exclusivamente para ele - "Song for My Friend", que ele considera "uma grata surpresa do genial músico Erik Escobar. "Débora" é uma composição de seu ex-professor, o pianista Rafael dos Santos e "Clemência" lhe foi dada pelo seu autor, o violonista Renato Luz. A quarta música que não é de autorial de Júlio Caliman é "Rapaz de Bem" de Johnny Alf que ele considera "um dos maiores compositores brasileiros". 

O disco pode ser ouvido na íntegra no YouTube Music - https://music.youtube.com/watch?v=5Lhp6jJlQ6E&list=RDAMVM5Lhp6jJlQ6E  e também pode ser comprado nos bons sites do ramo. 

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Ao Pequeno Tempo

 Por Ronaldo Faria

 

Mais um pequeno tempo e um tempo maior irão cumprir seu caminho circulatório no universo sem verso ou reverso, escuro e retórico, rotineiro num acordar e dormir sem ter fim.

Mais algumas horas e começa tudo de novo, como um ovo sem saber se a galinha estava lá para pari-lo ou se o deixou entregue ao asfalto quente para, impertinente, fazê-lo nascer.

Mais semanas, meses, minutos, esperas, comédias e tragédias. Beijos e abraços, tiros e litros devassos e mortais, cores de tevê a brincarem na íris de quem vê a vida como eterna solidão.

Tempo, quieto ao relento a esperar uma meia-noite chegar, faça-se passar mais devagar neste planeta. Deixe o amante a divagar, a morte a voar, a Terra a pensar que és igual e diferente.

Passe um pente nos cabelos da natureza e escreva missivas de saudade inaudita às músicas que entoam em cada ventania sobre o mar, em cada cantiga sobeja sob o corpo a arfar.

Tempo pequeno, pequeno tempo, que no próximo ciclo lunar possas ter gosto de gengibre e cheirar a jasmim. E por favor: me chame de amigo quando eu descobrir que mentiu sobre ser sem fim...

“O sol então nos encontrará
Pela madrugada
Numa festa como num conto de fadas
Cor de jade e de marfim, nos invade
Amor sem fim, felicidade é uma coisa assim.”
(Jorge Mautner)

sábado, 21 de maio de 2022

Ao Paulo Vanzolini

 Por Ronaldo Faria


Ouvindo Ronda, pós algo depois da primeira edição, vem a parcimônia da chegada insensata da madrugada próxima, aquela que maldiz o tempo perdido num lugar fechado sob a fachada de uma empresa presa na pressa da rotina ínfima e final. E chegam as notícias trôpegas do estar em férias vivo no antes da morte. O desejo benfazejo de deixar tudo e tramitar entre transes e trovas venais. Ao ouvir a Valsa das Três da Manhã, na voz de Paulinho Nogueira, verter letras e palavras sobre um teclado múltiplo e braçal. Coisas de malabarismos de sons e sonhos, brilhos e cores que nem mesmo mesas cheias de brioches conseguem retratar. E medir a glicemia tardia, na trova fatal de brandir um descaso ao acaso em torpor.

Queria tê-la, Maria de um lugar qualquer. Seios enjaulados em sutiãs imantados de dedos e desvelos, desbragados pela voz de um trovador qualquer, criados à pincelada de um poeta que escreve mágicas palavras transversas para somente dizer que não sabe como te amar.

Queria tê-la, Maria de um lugar qualquer. Boca em riso que se expõe ao limítrofe desejo de acariciar teu rosto e aninhar teus pesadelos. E viajar e brandir o férreo passado que sabe que disse na voz a frase errada. Coisa de místicas passagens vis e lineais na margem que divide a felicidade da dor.

Por fim, queria tê-la, Maria de um lugar qualquer, para descobrir novos lençóis em músicas de mi e bemóis. Coisa tangida de verves e frágeis brincadeiras de quintais e fundo de casa e pinturas de muros próprios. Tudo feito o trejeito que busca o corpo primeiro e secular, como um passado que teima em voltar.

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Albano Sales e seu ótimo Retrato Brasileiro

Por Edmilson Siqueira 

Há um bom tempo escrevi sobre esse disco na Revista Metrópole. Fui ouvi-lo ontem e ele me causou a mesma e ótima impressão. Então resolvi sugeri-lo aos parcos leitores deste Musicoólatras, mesmo sem saber se ainda dá para encontrá-lo por aí.  


Trata-se do CD "Retrato Brasileiro" do pianista Albano Sales, lançado em 2008 e que se mantém atual até hoje e vai continuar sendo ouvido por aí para sempre. 



Albano tem uma trajetória expressiva como músico. São-carlense de nascimento, mas radicado em Campinas (SP), estudou com nomes como Almeida Prado e Koellreutter, formou-se na UNICAMP, lecionou no CLAM, a escola de música do Zimbo Trio, tocou com Airto Moreira e Rosa Passos, trabalhou em Los Angeles e já lançou um segundo trabalho - "Experimental"- que um dia também será assunto desse blog.  


 "Retrato Brasileiro" começa a agradar a quem se dispõe a ouvi-lo pela capa do CD. Ao invés da tradicional foto do artista, posado ou tocando, uma aquarela de Manlio Moretto que se sobressai pela rara beleza e simplicidade com que retrata a cidade de Penedo. Albano aparece ao piano em uma pequena foto e, bem maior, numa caricatura de Egas Francisco, ao lado de Jorge Oscar.  


E quando se começa a ouvir, ao prazer visual da capa se junto o auditivo. Logo de cara, num arranjo cuidadoso, entra "Viola Violar" (Milton e Fernando Brandt), cuja melodia, feita num táxi segundo o próprio Milton, é enriquecida pelo vocalise de Leo Loebenberg. A música inicial, tocada com perfeição, é o prenúncio de que o que vem depois seguirá na mesma toada. "Rio Paraná" (Olmir Stocker), "Todo Azul do Mar" (Flavio Venturini e Ronaldo Bastos) e "Receita de Samba" (Jacob do Bandolim) nos são apresentadas com maestria, com ótimos arranjos e algum improviso que, claro, não poderia faltar a um pianista que envereda pelos caminhos do jazz tranquilamente. 


A partir da quinta música e até a última nos deparamos com o Albano compositor.  

 "Chorando na Esquina" envereda pela modinha moderna e enternece com seu lirismo; "Freeway" mistura uma abatida mais acentuada com um sopro jazzístico, dando margem a malabarismos da guitarra e da bateria como um bom conjunto de jazz faria.


A música seguinte, "Moon Shadows" já tem uma concepção diferente: é lenta, meio soturna, sabe a fim de noite com seus pensamentos e mistérios. "Tempos Melhores" segue o mesmo caminho introspectivo ao sabor da harmônica de Rodrigo Eisinger. 


As três últimas faixas do CD são os três movimentos da "Sonata para Violino, Violoncelo e Piano Jazz Trio – Allegro (Riso), Adagio (Perdas) e Allegro (Porvir)". É, acho eu, o ponto alto do CD: nele Albano aparece como um compositor maduro, enveredando pelo clássico sem perder a referência urbana, a influência da MPB e do jazz, enfim, criando uma peça que acaricia os ouvidos pela qualidade sonora e melódica. 

O CD está disponível para se ouvir em várias plataformas musicais da rede e ainda pode ser comprado nos bons sites do ramo. 

quinta-feira, 19 de maio de 2022

Ao Mário Adnet

Por Ronaldo Faria


Ouvindo Mário Adnet, bateu (para variar) saudades do Rio de Janeiro (e tantos e outros tantos meses). Bebendo Smirnoff Caipiroska (é horrível, mas vicia - juro nunca mais comprar), lembro-me das dores do ciático, para lá de dolorosas hoje pela manhã, que eu troquei por umas doses nesta noite/madrugada ao invés de um Voltaren. Preciso transformar as minhas hérnias de disco em um CD de Bossa-Nova. Com luzes trocadas por lâmpadas fluorescentes (no tom azul), tudo parece mais incerto e perverso (na finitude blasfêmica da interinidade metafísica da vida).

Mas seja o que “Deus” quiser, principalmente depois de editar 40 mil mortos sob tremores e dores paquistanesas, onde para os mortos nem há mesas. E fica uma pergunta: como terá sido a morte de cada um? Que terão pensado no último suspiro? Terão tido, aos milhares, o último suspiro?

Inspiração é a ação transfixa ao quadrado da imaginação e da inanição. Vem e volta, vem e vai, desvirgina e vaticina. É o que é. E se basta. Vasta, lembra que o homem rimou no ônibus o que um atônito passageiro não poderia repetir. Aliás, em casa, nem sabe direito o que ele disse ou diz. Nem lembra da prosa airosa ou da poesia para uma meretriz. A letargia das letras o faz simplesmente um eterno aprendiz. Pena que deixe fugir, tal qual um peixe em verniz, letras e sonhos, num esmeril que não solta limalhas (vida aos canalhas). No máximo, uma e também outras falhas. Lá fora, o azul do dia virou um incandescente negror, refletido em néons e tons de asfalto. Quem sabe, numa esquina, um assalto. No costado, o vaso de planta que não dá flor. Vai meu último cigarro. Amanhã, quem sabe, pigarro. Na música, a pergunta: “Cadê Mimi?”

Transpiração é a vazão performática e asmática da insensível solidão. Fica e sai, vomita e cai, faz-se graça e gracejos, bocejos talvez. No CD, tempo do Tom vivo. Tempo bom, em Jobim. Praguejo e ciúmes em segredo. Do corpo, o degredo. Da graça, a desgraça do ensejo. Da saudade, a vermífuga palidez de quem caiu sobre a mesmice inexistente de uma segunda sem feira. Pura asneira. Sordidez e verso transverso e maléfico. Quisera todos os malefícios do mundo fossem o toque de um teclado louco e rouco. Quisera as almas subissem feito fumaça cinza e cheirosa, com cheiro de Índia lutando contra uma fronteira cheia de tremores tectônicos e afônicos, pedindo para ficar um pouco mais sobre a terra miserável de um país fugaz. Mas qual, a Terra não dá lar ou paz. No máximo vários ais...

Reação é como canção simbiôntica na busca ínfima da sua própria ótica, no afã que apraz. Sobe e desce, geme e desvanece, cria impropérios na ilusão solerte e solta um jorro de gozo e esperma entre mãos, bocas e vãos por onde possa escorrer. E quanto universo, e tantas mulheres morenas e tântricas, e porventura, na aventura da vida, lembranças brandas de uma infinidade de barcos parados no mesmo cais. E assim continuamos: contínuos de nós mesmos, calejados de prósperos impropérios e prosopopeias, certos de que apenas vale o prazer.

No final, não haverá muito que fazer ou ater. No máximo, em plena madrugada, aquiescer. Talvez um pedaço do universo. Talvez a certeza de ser um ser pequenino e perplexo, olhando para o próprio plexo. Meio perdido, um tanto esquecido e outro tanto, feito a mais cândida criança, apenas querendo ser querido no espaço partido. Ficam aqui o sinhô e o próprio umbigo. Alguém aí tem um fogo ou um figo?

quarta-feira, 18 de maio de 2022

A insustentável leveza do sax de Paul Desmond

Por Edmilson Siqueira 

"Acho que, no fundo, eu queria soar como um martini seco". 

"Sou o saxofonista do quarteto de Dave Brubeck. Você pode me distinguir porque, quando não estou tocando - o que acontece com surpreendente frequência - fico encostado no piano." 


Assim Paul Desmond, o compositor de "Take Five" e, claro, saxofonista do quarteto de Dave Brubeck por 17 anos, se definiu em duas ocasiões, com um humor típico de Woody Allen. A citação de "Take Five" se faz necessária porque o disco onde ela foi gravada foi o primeiro álbum instrumental a ultrapassar o milhão de cópias vendidas. 


Paul Desmond nasceu em San Francisco, em novembro de 1924. Seu pai era organista e arranjador e tocou em cinemas na época dos filmes mudos. Seu sobrenome era outro. Desmond, disse ele, encontrou numa prosaica lista telefônica. 


O disco que estou sugerindo desse grande saxofonista é "Late Lament", gravado entre setembro e outubro de 1961, sendo que uma faixa extra colocada apenas no CD ("Imagination") foi gravada em março de 1962. 

O texto do encarte, escrito por Roberto Muggiati, aborda um pouco mais o sucesso "Take Five", embora essa música não esteja no disco. Serve, claro, para definir o gênio de Paul Desmond e também seu ótimo senso de humor, próprio de sua privilegiada inteligência. Diz Muggiati: "Na verdade, a composição em 5/4 (o tempo rítmico de 'Take Five'), é uma demonstração da impressionante capacidade que Desmond tinha de suingar nos ritmos mais estranhos ao jazz, como o da valsa, o da bossa nova e os da tradição oriental. Às vezes Paul oferecia outra explicação para 'Take Five'. Fumante compulsivo, ele dizia que concebeu o tema para que, durante o solo de bateria, tivesse um tempinho para umas tragadas." Paul morreu de câncer do pulmão, em 1977).  


Gravado com uma orquestra de cordas, o disco percorre um caminho aberto por Charlie Parker que, à época, andou entortando o nariz dos mais puristas do jazz. Só que Charlie transformou o chamado "white strings" num espaço novo e criativo do jazz. Coisa de gênio, claro. 


Trata-se, aqui, de um disco romântico, com um repertório bem a gosto de Paul Desmond. Há clássicos como "My Funny Valentine" e "Body and Soul" e outros menos conhecidos como "I Should Care", I'll Wind" e "Like Someone in Love". 


Muggiati, no texto do encarte, define bem o disco: "Aqui e ali, nos solos e nos arranjos, uns toques elisabetanos ou barrocos - tudo soma para enriquecer a sofisticada atmosfera que cerca Paul Desmond neste álbum cheio de amor e serenidade." 

Em outro trecho que merecer ser lido, Muggiati conta que "certa vez, perguntado onde se encaixava entre a abordagem vertical, ou harmônica, e a abordagem horizontal, ou melódica, Paul Desmond respondeu: 'Acho que vocês poderiam me chamar de diagonal'.  


Assim, diagonalmente, diz Muggiati, "vamos sorver os 43 minutos e 3 segundos de Paul Desmond com todo o sabor cool de um martini seco. E sentir a insustentável leveza do sax". 

Presságio natalino

 Por Ronaldo Faria O Natal corre brejeiro e cheio de cheiros, madrigal. Se esconde nas cercanias de casarios perdidos no tempo ao vento qu...