segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Ao Paulinho Pedra Azul

 Por Ronaldo Faria

Olhares vagos e fátuos, largados entre dois olhos que pouco se veem, duas bocas que já quase não se beijam, dois peitos que ainda batem e rebatem além de um tempo sem areia, sem praia, sem céu azul a cair no negror da noite que vem tardeira. Antes da madrugada, a tragada que se larga no tédio da tarde, as mulheres que se entregam aos braços dos amados, a incerteza do final desigual do amor.

Olhares unidos entre retinas e íris que se juntam por um segundo ao menos. Entre as mesas de bar, perfídias se sobressaem. Em entregas esparsas, fugas desiguais, filmes sem vagalumes e lumes. Alhures, um pedaço de mãos dadas à beira-mar, areia a queimar os pés, igrejas de mil fés. Antes do amanhecer que vem aquecer, brilhos de luzes que perpassam nuvens no fugaz além do sentimento atroz.

Olhares ambidestros, catatônicos e transversos, à espera dos próximos versos, cansados de olhar para o além, vivem de recordações e vintém. Ao desejo, dão seu amém. E sonham em fazer o tempo voltar, o calendário queimar na parede e na rede. O dia, num frigir de ovos, tempera de temperos mil as têmporas à lua cris. Quem sabe um talvez, a tez que se cola e acaricia, o corpo desnudo da vida.

Olhares e frases soltas ao vento, acalanto ou lamento. Uma chuva que dá de presente o beijo do ausente a brincar de fugir e chegar. Na cena final, um gargalhar. Dois corpos ocos a oscular o que a vida olvida deixar. Suor que respinga no vazio que há entre dois seres e os anseios em praguejos voláteis e táteis. No interregno de tudo, quem sabe um bêbado mudo, um homem sisudo, o tempo a desvanecer...

sábado, 27 de agosto de 2022

Renato Teixeira

 Por Ronaldo Faria

Violeiro que toca e dedilha o violão, dá à tua mão um tanto de viola e canção. Canta à voz que partiu o trinar do tiziu, se este houver no horizonte em anil Brinca de tempo parado, de gesto largado, de andar pela estrada entre curvas e estradas. Fosse no asfalto da cidade, esquina haveria e faróis forrariam passos e arrancadas do coração num piscar sem parar. O lugar? O que há de ser lugar ou largar? Por isso o violeiro rasga os dedos nas cordas de aço e traz sensações e canções. Alguém, num dado desandar, saberá tais caminhos traçar.

Moça que se entrega aos insondáveis desejos do amante dissonante da vida deixa que a inverdade se invada de histórias e histriônicas saudades. Não deixe que o sono vire sonoridade desperta e dispersa. Sororidade inversa. Durma com a certeza de que amor maior não há. E se Deus existir, feito igual, ele nada terá feito ou fará. Nem mesmo com as certezas de um terço que a beata reza sem olhar. Na luz do lampião, o candeeiro saberá se iluminar. Deitada na sua cama azul, arreganhada, Nina vê o tempo canino discorrer, voar e nunca chegar.

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

A bossa dos Stones

Por Edmilson Siqueira 

 O rock dos Stones, quem diria, virou bossa-nova e electro-lounge ou qualquer coisa parecida, entre as centenas de nomenclaturas que hoje permeiam a música em todo o mundo. Como sou do tempo do rock, do samba, do baião, do tango essas coisas meio antigas - o negócio agora é acid, heavy, hard, disco, rap, hip hop, o que não é bom nem ruim, vai depender sempre da qualidade musical da obra – estranhei um pouco ao ver música que curti adoidado como autêntico exemplar da mais pura rebeldia dos anos 60, cantadas num sussurro, acompanhadas de alguns sons elétricos, de uma bateria tímida e de um violão imitando João Gilberto.  


Essa introdução toda aconteceu em 2006, quando escrevi sobre os CDs "Bossa N' Stones - The Electro-Bossa Songbook Of The Rolling Stones Volumes 1 & 2". Era, são na verdade, a versão bossanovista dos maiores sucessos do grupo inglês, bem arranjados e bem cantados, se bem que suavemente, ao contrário do que costuma fazer Mick Jagger e sua turminha.  


E, claro, ficou bem. O pessoal que resolveu “domesticar” a música dos Stones - que era rebelde, sim, mas hoje soa como totalmente inserida no contexto, pra usar uma expressão consagrada pelo Pasquim, jornal famoso no Brasil nos anos 1960-70 - é competente.  

A única falha do CD é que não tem uma ficha técnica adequada. À época, pesquisei no Google, mas acabei encontrando pouca coisa. Hoje também é difícil achar referências, mas os dois CDs estão à disposição no YouTube (endereço abaixo).  


A melhor referência que encontrei estava em inglês, num site chamado Antartica: “Once again, a number of musicians from different latitudes have joined forces to bring a different perspective and have created a must-have album for all who enjoy really great music”. (De novo, músicos de diferentes latitudes juntaram forças para mostrar uma perspectiva diferente e criar um disco obrigatório para todos que realmente apreciam a boa música). No caso, o comentário é do segundo disco da série, por isso o "once again", mas vale também para o primeiro. 


 Os músicos de “latitudes diferentes” parecem comportar alguns brasileiros. Há, pelo menos, nomes como Banda do Sul, Astrud C., São Vicente, Corcovado Freqüency, Groove da Praia que soam como nossos.  

A escolha das músicas atravessa boa parte do que de melhor os Stones fizeram ao longa dessas intermináveis décadas de LPs e shows. Hoje só há três dos mais antigos (dois originais - Jagger e Richard) e um que chegou um pouco depois (Ron Wood).  

São 24 músicas, 12 em cada CD, desde "Fool To Cry" até "You Can't Always Get What You Want", passando por "Let's Spend The Night Together", "Ruby Tuesday", Jump Jack Flash", "Paint It Black", "It's Only Rock'N Roll" e muitas outras.  


Os CDs ainda estão à venda nos bons sites do ramo e podem ser ouvidos no YouTube nesse endereço: https://www.youtube.com/watch?v=Q6N9-2f1xYQ (volume 1) e nesse: https://www.youtube.com/watch?v=DBar49TCsCM&t=604s (volume 2). 

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Raul Seixas

 Por Ronaldo Faria

Três pontinhos para cravar que nada sei, sabia ou saberei... Porque quero crer que a ignorância de saber seja o maior aprender. Nem que tivesse nascido há dez mil anos atrás saberia algo por ser. Três pontos a crucificarem e vivificarem o que houver de haver... a ver. Afinal, cada um de nós tem vida própria e propriedades que ninguém terá, seja em DNA ou naquilo que foi, é ou será. Sejamos, portanto, uma metamorfose ambulante. Afinal, se a humanidade assim não o fosse, estaríamos ainda na Idade da Pedra. Uga, uga... agá, agá. Bom sono e madrugada, tragada ou letárgica, a todos nós. Do alto, São Raul Seixas há de nos reverenciar. Ou não. Vida longa, por tanto e portanto, na rapidez do tempo, ao que for ou vier. No viés de renascer e morrer.

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

O samba de Délcio Carvalho

Por Edmilson Siqueira 

Se ao ouvir o nome de Délcio Carvalho você perguntar "quem?", não tenha muita vergonha, não. Eu também perguntei, há uns 20 anos, ao dono do bar Tonico's, o Paulo, durante um almoço, a quem ele se referia, já que o moço ia fazer um show ali e ele praticamente exigia a minha presença. Ele disse que era um sambista carioca, autor de vários sucessos e gente finíssima.  


Pois alguns dias depois, um sábado, estávamos, Zezé e eu, frente a frente com Délcio Carvalho, um sambista da mais pura cepa carioca.  O show era pra comemorar seus 65 anos de vida. Sucessos? Bom, pra começo de conversa ele era parceiro de Dona Ivone Lara, o que, de cara, já o credenciava. Depois, antes do show começar, vi Chiquinho do Pandeiro e outros sambistas de Campinas chegando. Aí tive certeza de que iria assistir a um grande show.  


Délcio subiu ao placo com uma certa responsabilidade, pois o Quarteto de Cordas Vocais que o acompanharia – que nessa noite era sexteto, pois já é quinteto e estava acrescido de uma cuíca sensacional – tinha feito uma apresentação cheia de aplausos entusiasmados.  


Délcio foi logo dizendo que era um tipo de compositor que muita gente conhecia as músicas, mas não conhecia o autor. E ele estava ali para que todos o pudessem conhecê-lo. E começou a cantar músicas suas com outros parceiros, como, além de Dona Ivone, Ivor Lancelotti, Mário Lago Filho, Capiba, Elton Medeiros, Maurício Tapajós, Noca da Portela, etc., mostrando que compõe só com cobra criada, como diria o grande Adelzon Alves, o amigo da madrugada, na Rádio Globo dos anos 1970. 


Com sua voz suave, ele foi desfiando lindos sambas, alguns grandes sucessos como "Esperanças Perdidas" e "Sonho Meu", além de outros que caíam na hora no gosto da plateia que não se inibia de cantar junto o refrão, principalmente em alguns sambas de roda feitos com aquele toque que só o compositor carioca sabe dar.   


No fim do ótimo show, comprei o CD "A Lua e o Conhaque" que ele estava vendendo e fiz questão do autógrafo. E é esse CD, com 17 músicas da mais fina estirpe do samba carioca, que estou ouvindo agora. Tem samba, samba canção, samba de roda... Tem hora que parece Cartola, outra hora parece Paulinho da Viola, às vezes Nelson Cavaquinho, mas são todos Délcio Carvalho, um sambista que nos deixou em novembro de 2013 e que, sem aparecer como outros grandes sambistas, deixou uma obra que encanta a todos aqueles que não são ruins da cabeça nem doentes do pé.  

Não encontrei o CD na íntegra pra ser ouvido, mas ele está à venda nos bons sites do ramo. 

terça-feira, 23 de agosto de 2022

No Vento Viola

 Por Ronaldo Faria

Minas tem cheiro sei lá de coisa presta em festa? Tem. Com certeza tem. Tem cheiro de bosta de vaca, de mato a crescer livre, de riachinho que corre quieto na divisa indivisível entre suas terras e um São Paulo a pulular do lado de cá.

Minas tem cheiro de viola a correr e sangrar e brotar além nas cordas de aço que discorrem entre o leite e o café. Para deleite de São Gonçalo, se fará em qualquer um. Quem sabe num gole de pinga a respingar as horas e trovas, na fé.

Minas tem mais: tem junção de mundos entre o início e o fundo, a correr de lá e para cá num universo entre a cidade e a roça, no início e precípuo fim. Precipício às tristezas decerto há. Ácida, indelével, entre a missa e o refrão, fica a saudade e o que ainda resta de mundão.

Minas tem minério nenhum e tem todos. Tem um ilícito poema de madrugada em torpor, tem o imaginário e glacial louvor. Pedaço de mãos e vozes em imaginário torpor. No fim, nos sobra música mágica a voar feito ébrio perdido, inútil e grave ateu.

Minas, misturada em quilômetros afônicos e tônicos, sobrevoe, pois, feito os pássaros atônitos que te cobrem de poemas e penas. No permear de qualquer coisa, não seja nada. Se apequene gigante no seu sem mar, a seguir onda a onda no cerzir e sorrir.

Minas, tua grandeza, em si, te fará...

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

A alegria de Beatriz Azevedo

Por Edmilson Siqueira 

Em 2008 chegou em casa o primeiro CD de Beatriz Azevedo, "Alegria". Gostei muito do que ouvi, mas depois não acompanhei sua carreira. Hoje, fico sabendo que essa careira está bem consolidada, ela é citada por importantes nomes da MPB, já se apresentou ao lado de uma porção deles e, mais importante, já gravou mais 12 CDs, vários no exterior.  

Seu primeiro disco é coisa fina, sem trocadilho com a gravadora, a ótima Biscoito Fino. Ouvi muito, escrevi sobre ela na revista Metrópole do Correio Popular e, hoje, ao retornar a ele, percebo que devia ter ouvido mais.  


A descoberta, à época, se deu pela internet, animado que fiquei com algumas críticas que li e com os parceiros que fazem parte do disco – Tom Zé e Vinicius Cantuária –, além da direção musical de Cristóvão Bastos, o que é garantia de bom gosto.  


O futuro da moça já estava mais ou menos traçado, pois quando lançou o primeiro CD, já havia uma pequena biografia dela no Google: "Beatriz Azevedo é poeta, cantora e compositora, multiartista brasileira. Graduada em Artes Cênicas pela Unicamp, estudou no Mannes College of Music e no Jazz and Contemporary Music Program de Nova York. Em Barcelona, estudou na Sala Beckett com bolsa do Instituto de Cooperación Iberoamericana da Espanha. Ganhou a Bolsa Virtuose do Ministério da Cultura do Brasil em 2002. Em 2003, apresentou-se no Festival Première Brazil! do MoMA de Nova York e no Verizon Music Festival, cuja programação incluiu artistas como Erikah Badu, George Benson e Wynton Marsalis com a Lincoln Center Jazz Orchestra." 

O CD comprova todo esse "currículo", pois ela compõe bem pra caramba, canta muito bem, tem bons parceiros, a produção é excelente e o disco, se bem me lembro, entrou na lista dos melhores lançamentos de 2008. 


Tem samba, tem baião, tem maxixe, tem rock e tem jazz, tudo refinado, devidamente deglutido e reciclado de forma a dar prazer aos nossos ouvidos. Tem música em português, inglês e francês. Nessa última língua, a música se chama  "Savoir Par Coeur", a expressão francesa para “saber de cor” que explicita o coração como centro da lembrança. Tem homenagem a Pagu e a descoberta do “buraco” cantado com Tom Zé.  


Pra quem não sabe, Tom Zé tem uma relação com o "buraco". Em plena ditadura, ele lançou um LP cuja foto da capa era estranha. Cheia de riscos meio tortos cinza azulados com alguns traços de vermelho, convergentes a um centro escuro com uma bolinha de gude. Algo que poderia ser considerado uma tela contemporânea. Na verdade, era uma pra ser uma foto tirada bem de perto de um ânus de uma mulher. Mas no fim a coisa não rolou e, conforme contou o próprio Tom Zé, Décio Pignatari, que estava na produção do disco, desenhou algo parecido, ampliou bastante, botou a bolinha de gude no meio e virou a capa do disco "Todos os Olhos".  

O disco de Beatriz Azevedo pode ser ouvido na íntegra na Apple Music: https://music.apple.com/br/album/alegria/730090331 . 

Saudade ao som de baião

 Por Ronaldo Faria Saudade, essa maldade intrínseca e seca que devora a gente em cada pedaço de ser. Que não devolve a vida que nos faz fa...