quinta-feira, 30 de maio de 2024

No blues

 Por Ronaldo Faria


Apagar, desapegar, agregar, acender, recriar, desfrutar da loucura etérea e efêmera. Nos sonhos, cada dia uma fêmea. No som, o blues desenrola a rolar. No alto da árvore, a pomba-rola para no galho que ao vento a penumbra plúmbea abate sobre a cena. No semblante do maltrapilho andarilho que sobe a ladeira com um passo à frente e mil e tantos atrás, a visão de dentes que faltam, o hálito que o bagaço criou, a flor que nunca viu uma gota de água para nascer. Quando a chuva jorrou, a enxurrada levou a semente junto com a dor.
Catar, pegar, transcender, envolver o volátil e o descrer da rotina que chega com os raios da manhã. Nos pesadelos, em enlevos dissolutos e bastardos, fantasmas revivem e convivem entre si, encarcerados de uma eternidade que parece não ter fim. Em roteiros que sucumbem em morteiros que destroem catedrais nunca erguidas, o som de pretos e pretas, de vozes e harmônicas, pianos e planos mil, na certeza de que plantações serão colhidas e florirão. E os céus erguerão raios e luzes luzidias a receber a poesia de se perde na nova canção.

terça-feira, 28 de maio de 2024

Com Vander Lee

Por Ronaldo Faria


 
Vaticínio que o anacronismo margeia e pragueja no limite entre a alma e celeuma que habitam cada um de nós, entre nós atados e lampejos de lucidez. Suicídio sabido e procrastinado em cada dia que nasce, segue e morre decapitado de sonoras auroras nunca vividas. Todas ávidas de estagnadas lembranças anchas e vespertinas, vívidas. Como meninas que se vestem de mulheres e, sem saber, logo terão anginas. Nas síncopes da sina, a vagina.
No caleidoscópio que o unicórnio traz entre suas cornucópias, o ópio de sobreviver sem ver o inverídico viver. Um tanto de barco que naufraga a cada frágil rebentação que a inexatidão das horas dá. No frigir de óvulos, as vidas de quem navegará o mar de placenta e crença. Atônito, afônico, Antônio tenta lembrar os segundos que postergam o mesmo caleidoscópio que se vê em cada esmero. Brinquedo complexo, cego, insipiente e estratosférico.

segunda-feira, 27 de maio de 2024

Jobim com sotaque português

Por Edmilson Siqueira


Dizer que Tom Jobim é o nosso maior compositor, que sua música atravessou fronteiras e que continua sendo tocada no mundo inteiro, já se falou muito por aí e é bom que se continue falando, pois nosso Maestro Soberano merece tudo isso e muito mais.
Pois agora, já há algum tempo, mais precisamente em 2016, o Brasil e o mundo foram brindados com um trabalho de uma cantora portuguesa no auge de sua maturidade e sucesso, com um CD só de músicas do mestre. 
A cantora se chama Carminho, está com 39 anos e nasceu em Lisboa. Tem nome de embaixadora: Maria do Carmo de Carvalho Rebelo de Andrade, mas adotou a alcunha no masculino (o normal seria Carminha, né?, como minha mãe que também era Maria do Carmo) e já gravou seis álbuns de estúdio, sendo o de Jobim o quarto.  
Carminho tem uma relação bem forte com a música brasileira. Já teve participações em discos de Alceu Valença, Elba Ramalho, Marisa Monte e Os Tribalistas. Mas descobriu nossa música ainda criança, ao ouvir as trilhas sonoras das novelas brasileiras, principalmente da Globo, que passavam em Portugal e, em cujas trilhas sonoras, desfilaram  canções de Chico Buarque, Elis Regina, Milton Nascimento, Tom Jobim e Vinícius de Morais e outros. 
Quando tinha 12 anos, sua mãe assumiu uma casa de fados em Lisboa, a Taverna do Embuçado, e ali Carminho conheceu grande nomes da típica música portuguesa. Pois, na Festa do Embuçado, que ocorria todo ano, Carminho pediu para cantar. O trecho a seguir é uma narração da própria cantora: 
"Eu disse que queria e o meu pai disse que não, porque não queria passar vergonhas. Mas insisti e ele disse que eu podia ir se o Paquito, que tocava no Embuçado na altura, aprovasse. O Paquito [guitarrista da casa] disse que eu tinha tempo e era afinada: 'Por que é que não hás-de deixar a miúda ir?'. Eu cantava o 'Fado do Embuçado' e mais nada. Adoraram, porque era como uma mascote, ter uma menina de folhos a cantar o 'Fado do Embuçado'. A partir daí, sempre que havia algum dia especial, a minha mãe levava-me ao Embuçado." 
E quando ela fez 15 anos, passou a cantar regularmente na Taverna do Embuçado, iniciando uma carreira que só lhe trouxe sucesso. Dos seis discos gravados, quatro foram certificados com Disco de Platina e um de Ouro. 
"Carminho Canta Tom Jobim", esse é o nome do disco, é uma delícia de ouvir. A começar pelas letras tão nossas conhecidas sendo cantadas com sotaque de Portugal. Ganham até uma certa nobreza. Só que o disco foi gravado no Brasil, com músicos brasileiros, o que faz do conjunto, uma mistura mais que fina. 
Paulo Jobim (violão), Daniel Jobim (piano), Jacques Morelenbaum (violoncelo) e Paulo Brana (bateria) é o time que ela esclou para acompanhá-la. Só cobra criada. 
E pra completar, Carminho chamou alguns cantores brasileiros para participar. Assim, Marisa Monte está em "Estrada do Sol"; Chico Buarque está em "Falando de Amor"; Maria Bethania em "Modinha" e um trecho do poema "Canção do Exílio" de Gonçalvez Dias, é declamado por Fernanda Montenegro, abrindo a interpretação de "Sabiá". 
Além das música citadas, fazem parte do disco: "O que Tinha de Ser" (com Vinicius de Moraes); "Inútil Paisagem" (com Aloysio de Oliveira); "Retrato em Branco e Preto" (com Chico Buarque); "Triste"; "Meditação" (com Newton Mendonça); "O Grande Amor (com Vinicius de Moraes); "Wave"; "Luiza"; "A Felicidade" (com Vinicius de Moraes) e "Por Causa de Você" (com Dolores Duran), essa cantada em inglês, na versão de Ray Gilbert que ganhou o título de "Don't Ever Go Away".
O CD é da Biscoito Fino e está à venda tanto no site da gravadora quanto em outros sites. E você também pode ouvi-lo totalmente na internet. Basta clicar neste endereço: https://www.youtube.com/watch?v=JURXfggmsEE&list=PL5_udDbi4ygyht-aSdubs7D3Bxz84g9xM 


sexta-feira, 24 de maio de 2024

Alma, calminha. Ainda não é hora de partir

Por Ronaldo Faria


Em pé, Múcio parece um beócio, desses que acha que a felicidade está logo ali do lado, num cabide que se pega e se muda de roupa. Pediu, cheio de crer, “me avisa”. “Diga-me”. Afinal, ele queria era apenas saber. Do outro lado, certamente a ouvir fado, a alma gêmea não está nem aí. Em seu mundo próprio, onde o impróprio está cheio de impropérios etéreos, à merencória cor da lua, como diria o poeta, a essência da ciência não se fez. Mas quem precisa de ciência quando tem a vivência fatídica da vida a costurar?
Sentado no bar besuntado de gorduras que flutuam no ar vindas da cozinha, Múcio levanta o dedo e pede outra gelada. Arcada em seus pesos e pesadelos, pródigos reveses da vida, a moça da mesa defronte ergue a fronte e lhe sorri. Ela está só. Seus dentes brancos, seu ventre ancho, suas ancas desprovidas de falta de vida, libertas ao amor, estão abertas em frestas que afrontam o torpor final. Certamente a mente do homem irá fazê-lo na madrugada acordar a beijar orelhas inexistentes com seu membro a brincar de inchar.

(Ao Zeca Baleiro)
 
II
 
Valêncio, um vivente desses que em cada esquina se esbarra e se evita, segue andrajo de alma e desejo de vida. Resistente na insólita mente, desmente a poesia que a tragédia faz comédia comedida de ditames e sinas. Amores mil no passado, hoje ser quase castrado de falácias, em falésias que nunca andou, corre a discorrer seus desejos e versos torpes. Espera apenas que a solidão da noite que as estrelas trazem seja o seu lençol. Para a música que virá, tanto faz ser em mi ou si bemol. O mundo está sob formol.
Valêncio, ser onde valer na vida já é o bastante que o tanto se proseia, segue a se desvencilhar dos faróis dos carros, das amarras da vida, das feridas que conseguiu em cada canto do labirinto que construiu pra si. É um famélico amante, arfante, dissonante, benfazejo de um destino inconformado consigo mesmo. Sabe que daqui à frente não será muito, no nada que será. Mas, sobrevivente da incerta finitude, tem só uma derradeira atitude: nos passos em descompasso se fará cair calado na voz da paixão.
 
III
 
Fulgêncio, que não foge de si, sabe que apesar do cavalo que sua e relincha na sede que está quase a lhe matar, tem uma estrada ainda a trilhar. Não há nesse mundaréu nenhum rio ou riacho para suprir a sede dos dois. No alforje, um tanto e meio de corte de seda para cobrir o corpo de Marilda, seu amor. Mesmo sabendo que melhor seria vê-lo nu, a deitar quieto sobre o seu na esteira que beira a certeza de um gozo, a cavalgar colada e calada na ilusão de ser um só. A lamber de lambidas de língua a outra língua que lambe de músculos vermelhos os ósculos que adentram entre dentes e ventres. Tudo como a harmonia entre a voz do cantor e a dor que nunca irá cicatrizar. Na essência do destino, o desatino do inócuo luar. Decerto, no mais certo amor dos loucos, haverá à espera um ridículo lugar. Desses que a gente se larga ao largo para achar que a vida tem ainda seu chegar. No absurdo barulho que só o surdo sabe ouvir, Fulgêncio se cobre de blasfêmias e espera que as fêmeas que viveram nele sejam uma só. Assim terá menos dó de si. A viver de efêmeros sermões em que já sabe quantas aves e Marias rezar, troca letras e prosas que os iletrados que passam a noite em claro, bêbados e fugitivos da vida, saberão decifrar. A imensidão que sombreia de clarão a lucidez simplória da inglória certeza de amar e remar nos líquidos que o amor joga em corpos desnaturados, é a dona de tudo. No profundo queixume das ondas que já não aguentam mais bater na areia das praias e beijá-las sem poder parar, o rotundo findar da poesia.

 (Ao Fagner)

quarta-feira, 22 de maio de 2024

No baleiro do Zeca o sol derrete a vida

 Por Ronaldo Faria


O sol escaldante, que parece que nem com prece braba vai embora, e torra a mais grossa tora e queima mesmo o que há muito queimado está, decidiu que ficará junto com a carcaça do boi e o homem que sua até a última gota na derradeira trilha de terra esturricada. O sol, este brilha lá no teto de um céu cheio de raios e nuvens raras, parcas, prostradas na primeira sombra que conseguem ter. E sorri do degelo que o gelo mostra nos copos de uísque, martiriza as cinzas da queimada de um fogo mais frio que ele, volatiliza diante das almas que pedem para sair dos corpos e ir tomarem banho na cachoeira mais fria do Himalaia.
Maria anda de sombrinha na rua de paralelepípedos que fervem sem modéstia à parte e esquenta as partes que se escondem na saia bordada de flores que pedem água. Ela, na soberba de ser um ser relutante e frágil, fugidio, quer apenas que a noite chegue logo. E, quiçá, traga uma chuva, mesmo dessas que só molha e nada umedece. Para ela, a padecer feito a virgem senhora e mãe de Jesus, o reflexo nos olhos que de verdes trazem mais dor ao olhar são o fim que ninguém merece. Constrita, pede que o mar vire o sertão e o sertão vire um mar, como previu o louco conselheiro Antonio. Pede, mas não crê no milagre.
O calor é tanto que o vinho já é servido como vinagre. E as hordas de larazentos seguem o caminho a deixar seus pedaços nas pedras que brincam de ferir os pés já feridos pela incerta e precisa morte de logo mais. Trazem bandeiras coloridas, seus sinos a mostrarem a chegada antecipada para as boas almas deixarem pratos de comida, suas realidades que nunca serão devolvidas nas chagas e feridas. Nalgum lugar, entre neves brancas e nervos retesados de frio, certamente o afago da mão de uma mãe. Mas, daqui, o pé que há muito não dá um caqui conta suas últimas flores a cair. No universo, Fênix despenca, no clímax, a rir de si.

terça-feira, 21 de maio de 2024

Fakes na MPB

 Por Edmilson Siqueira


"Djavan escreveu 'Flor de Liz' porque sua filha morreu". Essa era, em suma, a mensagem que um e-mail (as redes sociais ainda nem haviam proliferado como hoje) propagava. E dava detalhes, justificados com trechos da letra de que a inspiração viera de um acontecimento trágico. 
Tudo mentira. Ou fake news, como se passou a dizer. E eu ouvi essa história de outras pessoas também, que acreditaram piamente nela. Eu duvidava porque, como jornalista, tenho o hábito de ler muita coisa que sai na imprensa e um fato como esse, a perda da filha de um artista que viria a ser famoso, é fato que viraria notícia. Como nunca tinha lido na imprensa séria, duvidei sempre. Aliás, esse é um comportamento que mantenho até hoje, quando o império das fake news domina as redes sociais, mantido por falsificadores de fatos com interesses escusos. Se não saiu na imprensa séria, duvide.
Até que um dia, visitando a página do artista, estava lá um desmentido completo, assinado pelo próprio Djavan. A música Flor de Liz era inspiração pura, própria de um artista talentoso, como muitas outras que fizeram tanto sucesso na voz do cantor. 



Muito antes até da existência do computador, mentiras desse tipo, já corriam o cenário musical brasileiro. E havia artistas que, malandramente, se aproveitavam delas. Carlos Imperial, uma mistura de empresário artístico e malandro, que jamais foi compositor, tem seu nome em alguns sucessos da MPB, como "A Praça" e até um samba com Ataulfo Alves - "Você Passa e Eu Acho Graça". Claro que ele não compôs nenhum dos dois. No caso de "A Praça", grande sucesso na voz de Ronnie Von, ele deve ter comprado de alguém, mas, como conhecia os expedientes para fazer mais sucesso, ele mesmo disse que contratou dois rapazes para sair por aí dizendo que a música era deles. Só que, além dos dois, apareceram outros também, talvez os verdadeiros autores entre eles... Enfim, Imperial era sinônimo de trambicagem, ou de pilantragem, palavra da moda nos anos 70 do século passado, consagrada pelo grande Wilson Simonal em suas músicas.
Já o samba com Ataulfo era um notório caso de compra de parceria para abrir caminho no mundo fonográfico e radiofônico da época. Era, não sei se ainda é, um fato corriqueiro. O próprio Ataulfo admitiu que fez o samba sozinho e colocou Imperial como parceiro.
Outra fake news que a direita raivosa (existe a esquerda raivosa também e ambas são desonestas iguais) andou espalhando por aí, foi sobre Chico Buarque. Claro que o ódio da direita contra Chico é motivado pelas posições políticas do moço. Eu, que não concordo com elas e jamais odiaria o Chico por isso, separei o joio do trigo: desde que Chico subiu no palanque para apoiar Orestes Quércia para governador de São Paulo, não quis mais saber de suas opiniões políticas. Mas, claro, sua fantástica obra musical não pode ser misturada com seus esquerdismo. Continuei fã do artista e sempre considerá-lo-ei um dos grandes da MPB, ao lado de Jobim, Pixinguinha, Noel, Ari e outros.



Só que Chico, num trabalho para a televisão sobre sua vida - que virou uma coletânea de 12 DVDs - fez uma brincadeira no estúdio durante uma gravação e ela foi inserida em um dos DVDs. Nela, Chico brinca com os músicos que estavam com ele no estúdio, dizendo que tinha poucas músicas no momento porque seu fornecedor estava cobrando muito caro e ele estava sem dinheiro. E até deu um nome árabe para o "compositor" de quem ele comprava as músicas.  
O trecho foi destacado do vídeo e começou a percorrer as redes sociais como se verdade fosse, com um título do tipo "Chico é desmascarado...". E, pior, teve gente que acreditou que um árabe era o autor de todas as músicas do Chico. O vídeo deve estar por aí ainda, usando o que é uma brincadeira para propagá-la, desonestamente, como verdade.

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Cassiano Ricardo, nem sei lá porque lembrei, mas é musical

 Por Ronaldo Faria

 


Cassiano, que nada tem a ver com o poeta Ricardo, serpenteia em si mesmo. Corre de barriga no chão pelo asfalto infausto chapiscado e ignorado, brinca de volatizar brejeiro e ser concreto no feto que nunca desabrochou do ventre da mulher amada, cálida e calada, porque não era hora de nascer.
Cassiano, que sequer sabia que a palavra cápside existia, não tinha métrica ou nada que fosse forma tétrica ou esotérica para se fazer. Nem destinatário tinha. Mas quem, em vida, o tem? Diante do cemitério próximo, o óxido que se fará coisa solúvel se calor e umidade forem a melhor maneira.
O que sobrou? Saudade das terras corridas, carcomidas pelo tempo, fugidas entre dias corridos, chegadas e partidas. Para Cassiano, dramático e atávico ser, o agora não era ágora ou nada a dizer. Somente saudade, dessas que a vida não dá cria. Que o coração sentencia para a prelazia do coração.
Cassiano, mero ser a ser em si, é um transgressor do destino, desses malucos que acreditam que o sonho irá se sobrepor aos pesadelos sem zelo que chegam nas noites, sejam elas de inverno ou verão. Na besta certeza de crer que o desejo um dia será dia e noite, o açoite que bate sem dó no corpo.
Na rede que se arma na vida para o mundo parar, a paralisia que o amor, desse que nunca se deixa de amar, traz os pés para o chão, de antemão. Na extrema vazante que a seca deixa o rio seco de areia branca, o desejo que se sabe entre a poesia e a realidade. Uma coisa a querer na infância desmedida de crer.
E Cassiano ouve do boiadeiro um vamos voltar ao passado, rever memórias e histórias, passos inexistentes, mesmo que se tenha plantado à espera de décadas atrás. Quem sabe carros de boi com sabugos de milho vermelho, redes no alpendre que alguém morrerá, inertes rimas a saborear a falsa imensidão.

sábado, 18 de maio de 2024

No Tom do Zé mais uma vez

 Por Ronaldo Faria


No abstrato do trato que a solidão dá, o subterfúgio fugidio que a dor dormente deixa a cada dia separado, a cada dia não vivido junto, a cada semântica abstrata que tricoteia na teia da rainha tresloucada para devorar o inseto absorto de ter deixado de voar, a incerta certeza de um vociferar quem ninguém ouvirá. Para logo mais, no afã que se enchafurda até a bunda abundar na voracidade de si mesma, a falta de dentes transborda na borda do sorriso que deixa de se mostrar. Cármino, que nada tem de estrangeiro (seu pai achou que era caminho em alguma língua e registrou ligeiro na esperança de uma espera de doido), estava mais uma vez largado no afável espaço trafegável que a avenida cheia de escapamentos deixava. Seu pensamento, que surgia como sândalo num cão sarnento e largado, antevia o derradeiro dia em orgia de mulheres desnudas e nuas de sentimentos. Qualquer alento já lhe servia.
Cármino, que uma Carmen deveria ser a ópera grandiloquente de uma operação tardia a deixar o órgão maior gangrenar, estava a inventar sua própria história, a reinventar o destino. Mas não há como ir muito longe ao alforje que o cavalo manco carrega no inferno de um inverno inexistente. Premente, a incerteza bastarda da partida se faz ouvida ao longe pelo aboiar calado que o galopante infante desperdiça de estar ao lado da amante, aquela que, nem ele, é uma reticencia que a ciência da vida já fez cavalgar na areia fina de um mar e amar nas madrugadas tragadas de alegrias que as alergias vazias nem sabem existir. No premir do futuro, o furo que há entre o mundo e a espera. Quem sabe a vida não se fará numa maternidade distante, na verdade parteiros casuais que nem sabem o que são amores feitos numa quinzena de cidades e dias em fervor. Assim esperemos entre ensimesmada saudade e a querência que só amor sabe escrever e descrever em linhas desalinhadas no seu torpor.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Tom Zé na furdência

 Por Ronaldo Faria

 


-- Amanhã é dia de birita. Segura a onda, Furdêncio...
Ninguém, na verdade, sabe como um pai e uma mãe põem o nome do filho de Furdêncio. Algo deve ter sido pra foder com a vida do rapaz. E o homem do cartório deveria estar nos dias de ligar um foda-se. “Querem essa merda, bosta seja feita”, pensou. Ele, o homenageado, sabe-se lá com o que, era operário de uma retífica. Mexia com motores, apesar de o seu estar na meia boca, quase parando. Seu amigo era Lupércio, da Silva. Apelido, Silva. Coisa sui generis, com certeza.
-- Furdêncio, você sabe que o dia seguinte é um maremoto quando a espuma da cerveja sobra além do explicável para a realidade... Haja ressaca.
Mas o operário cheio de questões e senões não está nem aí. O dia de agora foi de trampo além da conta diante das contas que estão sobre a mesa do barraco para pagar. “A tal de Serasa me salva desta vez?”– se questionava imperfeito e imprevisível. O importante não era o amanhã. Era o agora. A hora. A razão de viver os poucos segundos da tarde tardia. Acordara às quatro da manhã nas maltrapilhas horas da angústia e da sina. Pegou o trem da CPTM lotado como sempre, gente na frente, do lado e atrás de mais gente. Alguns já suados por antecedência. Outros a ressonarem como ninguém. “Pra puta que pariu nascer pobre”, pensou.
-- Furdêncio, você ouviu o que eu falei?
Silva era um chato bem aprumado. Crente da igreja de algum salvador da vida do pastor e da família e sua amante, ele acreditava que o importante era o instante da morte, quando encontraria o senhor a quem ele dedicou dízimos e crenças. Arrumadinho, indissolúvel na volatilidade da realidade, urgia de um porre redentor. “Senhor Manoel, traz uma água sem gás e natural” – pedia aos perdões para o dono do bar. A falta de uma exclamação na sentença já dá conta de quem ele era.
-- Silva, vai tomar no cu! Me deixa curtir minha vida medíocre e real!
No derredor de uma dor sem ninguém dar jeito, um fundo de bebida no copo reflete a cor que o sol brilha quente no logo depois. Não há como não amarelar sentimentos e se prostrar diante de si mesmo na busca volátil da felicidade que urge a pedir nova idade. Furdêncio, em sua imaginação que vaticina a sina dramática da apatia, projeta um futuro com salário melhor, uma mulher que fale igual a ele, um enredo de novela que o novelo da vida já diz degredado do destino.
-- Furdêncio, vou ter de ir. Tenho culto logo mais.
-- Vá com seu deus. Eu ficarei por aqui com meus demônios.
Na rua poeirenta sem a chuva que o céu faz questão de não dar, as pessoas se achegam ou se recolhem a depender de cada dor. Uma ou outra mulher cheirando a perfume performa com o corpo para garantir o almoço de depois e a janta acompanhada de um qualquer, a ser a si mesma, dona de seu corpo, seu desejo e querer. Furdêncio, sem saber que ele é que o coadjuvante da ação, acredita que o concreto de São Paulo deu um pulo na sua vida ávida de ser fina e bonita. Ledo engano. Cigano da felicidade, ele continuará a ouvir Tom Zé a dizer que “vendeu fiado pra Deus, vai receber depois da morte”.
No dia seguinte, um blogueiro barato e sem seguidores posta que um baiano morreu atropelado na esquina da Ipiranga com São João: “Ele parecia bêbado e a gritar que Furdêncio era o caralho. Que ele era um operário de motor a matar como uma motosserra as matas que escondiam sua quimera”. Na parada de sucesso, o DJ devaneia no verbo encarnado do sétimo dia.

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Parceiros e parcerias

Por Edmilson Siqueira




Há muitas histórias de parcerias na MPB. As famosas, como Tom e Vinícius, João Bosco e Aldir Blanc, Toquinho e Vinícius, Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito e muitas outras, estão cheias de histórias, pois nem sempre as parcerias foram aquela coisa precisa, de um fazer a letra e outro a música, como é mais comum, ou um músico botar uma melodia num poema já feito. 
Há parcerias, por exemplo, que o autor da letra nem conhece o autor da música. Foi o que ocorreu com Vinícius de Moraes, quando recebeu uma visita no camarim de um show com muitos artistas. Era Gerson Conrad, de um grupo novo, que nem gravação tinha ainda. Gerson, nervoso diante do poeta, pediu licença para mostrar uma melodia que ele havia feito para um poema do mestre e, claro, "se ele não aprovasse...". Vinicius quis saber qual era o poema. "Rosa de Hiroshima", disse Gerson. Os olhos do poeta brilharam: "Senta aí, mostra como ficou". Ao ouvir a pungente melodia, os olhos de Vinicius se encheram de lágrimas, ele abraçou Gerson e disse: "Meu filho, essa música será um grande sucesso". E foi mesmo, no primeiro disco do grupo Secos & Molhados, que Gerson ajudara a criar, e na magnífica interpretação do "crooner" Ney Matogrosso.  
Chico e Jobim têm duas histórias boas. A primeira ocorreu com "Zíngaro", que Jobim havia feito e gravado com uma grande orquestra, numa igreja em Nova York. Ao fim da gravação, todos os músicos da orquestra, americanos, aplaudiram de pé o maestro pela beleza da melodia. Mas isso é outra história. 
Acontece que ele deu a música pro Chico botar uma letra e, alguns meses depois (Chico era devagar às vezes), ele apareceu com Retrato em Branco e Preto. A bela poesia convenceu Jobim ao ouvi-la cantada pelo próprio Chico. No fim, o nosso maestro soberano só teve um senão com a letra: "Chico, o correto não é retrato em preto e branco?" Chico respondeu: "É, Tom, mas aí eu vou ter de mudar a letra e vai ficar assim: 'Vou colecionar mais um tamanco, outro retrato em preto e branco, a maltratar meu coração...'". Jobim achou melhor não mudar.
Outra música que Jobim deu a Chico foi Wave, hoje um sucesso mundial. Chico ouviu a música na casa de Tom e, antes de levar a fita embora, cantarolou pro Tom: "Vou te contar..." A primeira frase estava feita. Só que o resto demorou. Demorou tanto que Jobim, precisando gravar, fez o resto da letra, gravou e jamais deu parceria pro Chico. Numa boa, claro, pois o próprio Chico contou a história rindo e, com certeza, com saudade do parceiro e amigo.  
Com o mesmo Chico, só que desta vez na companhia de Toquinho e Vinícius, ocorreu outra parceria curiosa. Estavam os três na casa do Chico e, ele e Toquinho estavam terminando uma composição. Assim que acabaram, mostraram pro poeta. Era Samba de Orly. Vinícius gostou da música, mas disse que a letra estava precisando de um "retoquinho". Os dois lhe deram a folha de papel com a letra que foi para um canto da casa. Voltou logo depois: "Só botei uma frase, no lugar de "pede perdão pela duração dessa temporada", mudei para "pede perdão pela omissão um tanto forçada". Os dois gostaram, pois era uma crítica mais explícita à ditadura militar que o Brasil vivia e da qual todos eles eram adversários.
Algum tempo depois, estão Toquinho e Chico no estúdio pra gravar o Samba de Orly. Estavam ainda ensaiando com o conjunto, quando o diretor da gravadora abre a porta e diz: "Para tudo. A censura cortou a letra, proibiu uma frase". "Que frase?", quiseram saber. "Omissão um tanto forçada não pode. Vocês têm de substituir". Chico e Toquinho se entreolharam e disseram que já tinham a frase reserva. Voltaria a letra original. Mas os dois resolveram avisar o poeta que a frase dele havia dançado. Toquinho ligou ali do estúdio mesmo: "Poetinha, a sua frase no Samba de Orly, a censura cortou". Vinícius ficou chateado: "Ah quer dizer que eu perdi a frase que botei?" Pois é, poeta, perdeu". Vinicius manteve a fleuma: "Bom, eu perdi a frase, mas não perdi a parceria, né?" Claro que não", respondeu Toquinho e ele e Chico mantiveram o nome do poeta como um dos autores da música. E fizeram o certo. A ditadura caiu, a censura acabou e a música foi regravada e é cantada por aí com a frase que Vinícius mudou.

terça-feira, 14 de maio de 2024

Gil a brilhar

 Por Ronaldo Faria

Gil, me perdoa por te reencontrar (sacanagem porque nunca te deixei) desse jeito. É que os tempos estão parecendo novos a cada segundo. E o estão. Na verdade, o tempo está cada vez mais efêmero do que a um minuto atrás. “Ainda bem que dá pra cagar em casa sabendo da dificuldade de defecar num banheiro de bar”, diz Sinfrônio, anacrônico ser dos novos tempos. A ouvir Gil, no Gilberto aberto à imaginação, apenas podemos pedir boa noite para a noite que se aninha no céu que logo vai mudar. No copo vazio só resta um mísero restolho de ar.

sexta-feira, 10 de maio de 2024

Atabalhoado e sonoramente retardado

 Por Ronaldo Faria


O menino treme de medo quando ela, no carro que percorre a Fortaleza de quase 50 anos atrás, diz que não o levará a um motel. Menino, ele tem medo de tremer na hora final. Na história, Lampião, com certeza, está a ele olhar (o olha até hoje, duplamente). "E se falhar com a sobrinha-neta? Ainda bem que Corisco e Labareda já se foram. Meu pescoço não foi ou seria cortado e meu lugar no ônibus que matou minha cadeira no Rio Itapicuru não estava ocupado desse corpo infausto (me perdoem o casal que foi pular um carnaval de Salvador que nunca houve para eles)". 
Celidônio, tristonho e bisonho ser apócrifo e insano, performático e atávico, catatônico e afônico palhaço, sabe que a ilusão de um teatro sem cortinas ou coxia nunca seria igual ou desigual. A felicidade, que foge a cada ano que a idade chega e se aconchega em nós, sobrevoa e voa feito avião carmim. O incesto presto e certo ignora a nora ou cunhada, sob a alcunha de doideira amalucada, que foi o desejo do louco que sobrevive ao próprio medo. No enredo ensandecido da trama carcomida, o inseticida que só mata as loucuras e mundos díspares que a bebedeira abre de xacras mil. No céu anil que já não há, o anel que o bedel de cortes antigas fez questão de apagar. Para Celidônio, o indômito bagaço de sonho num engenho.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Belchior de novo

 Por Ronaldo Faria

 


O cinema de Salvador esconde dois corpos púberes a ver que um filme qualquer será (saberemos lá ou saber-se-á). De repente, as mãos se unem. Mãos de ainda jovens, sonhadores de que a vida é só um lumiar contínuo a beirar a certeza de que felicidade há. Bobos em si, na tragédia familiar. Crianças e jovens numa descoberta que nunca existirá. Para essa peça, na peçonha da existência, vozes de mulheres velhas a destruir o que pudesse vir. Romeu e Julieta ensanguentados nas ladeiras que a prosopopeia (seja isso o que for) diz ser o destino desnorteado de qualquer tempo.
Constantino, que tem nome parecido com quem sobreviveu ao apogeu de Constantinopla, relembra seu passado que houve (ou terá realmente havido?). Na foto 3x4, um fotograma que hoje já não há, o rosto que rompe têmporas e temporalidade. Tântricos desejos e benfazejos cortejos de nunca mais voltarão. No vão da saudade, a realidade que só a lucidez da embriaguez dá. E revolve tempos, resolve átimos da mente, mistifica o que o corpo físico não consegue recriar com a clareza da tela que está defronte dos dois amores mortos taciturnos e condenados a nunca retornar.

II
 
Parar ou não? Paralisia do porvir. Crença do ineficaz porvir e surgir. Incandescência no meio do nada. Um nadar contra a correnteza que a certeza prova ser finita. Apagar e ressurgir, no frigir de ovos e óvulos que não temos como crer que a terra que os cobrirá seja leve. Não será. Sejamos, pois, entregues às chamas que matarão o que nos fizeram morrer. E assim possamos dormir em lençóis requentados de corpos que já não se encontram, bocas que não se enlaçam, pernas que não transpassam. Afinal, isso são os anos de qualquer ser, tenha duas ou quatro pernas, rasteje ou não no chão, flutue ou nade na eternidade desse globo em glóbulo ocular. “Foda-se”, grita o homem diante do seu amor maior. No sortilégio do egrégio pulsar, a pusilânime sentença que a saudade traz.

terça-feira, 7 de maio de 2024

Sergio Mendes, um perene sucesso

 Por Edmilson Siqueira


Sergio Mendes é, sem dúvida, o mais bem sucedido artista brasileiro no exterior. E não só nos Estados Unidos. Seus discos são vendidos também na Europa e no Japão. Se não atingem números estratosféricos de vendas hoje, a perenidade das vendas é marca de um sucesso longevo.
Essa lembrança me veio à mente com a chegada do CD Four Sider, que eu comprei no Mercado Livre. Lançado em 1988, ele traz, em 21 faixas, um resumo da fase mais bem sucedida em termos de vendas de discos do pianista brasileiro. Depois dessa época, em que as vendas diminuíram, seu prestígio só aumentou e hoje ele é venerado tanto por antigos fãs, como pela nova geração de músicos dos EUA.
Comprei o CD pois, embora conheça muita coisa dele e já tenha captado algumas faixas na Internet, não tinha um disco com seus grandes lançamentos do século passado. Four Sider preenche essa lacuna.
Sergio Mendes saiu do Brasil ainda na década de 1960. Quem pensa que ele foi buscar o sucesso no exterior, se engana: saiu praticamente forçado pela ditadura que, a partir de um divertido bilhete seu para um amigo, acabou caindo das garras de um governo ignorante e sua repressão. Não entenderam a mensagem e pensaram tratar-se de um grande subversivo. O amigo para o qual endereçou o bilhete, foi vítima também da mesma ignorância. Era um escultor e, em seu ateliê, a polícia descobriu o que pensou ser uma escultura de Lenin, comunista que tomou o poder na Rússia em 1917. O busto retratava o pai do escultor, que era apenas parecido com Lenin.
Diante dessa brutalidade e com um filho recém-nascido (o motivo do bilhete ao amigo) Sergio Mendes não teve dúvida: se mandou para os EUA, onde já tinha amigos e poderia levar uma vida mais tranquila, preocupado apenas com sua arte e podendo cuidar bem de sua família.
O sucesso não demorou a chegar. Craque na bossa nova e ciente do gosto norte-americano pelo som brasileiro, juntou as ideias e criou um som próprio, transformando sucessos daqui e de lá num espécie de pós-bossa nova jazzística que os americanos adoraram.
Mas que Nada, de Jorge Benjor, foi a primeira mostra de que ele estava lá para ficar. O disco chegou entre os dez primeiros das paradas da época (paradas americanas, da Bill Board e outras, sérias) e o LP que essa música puxou vendeu muito também. Em seguida, gravou uma música do Beatles que, embora de grande qualidade, tinha ficado meio perdida entre os megassucessos dos Fab Four. Sergio Mendes com seu grupo (o Brazil '66) deu um tratamento de sambinha bossa nova a The Fool on the Hill que simplesmente alcançou o topo das paradas e transformou o brasileiro em ídolo por lá.
Depois de passar por duas gravadoras, acabou se firmando na A&M Records, dos amigos Herbet Alpert e Jerry Moss, onde continuou criando sucessos, às vezes nas fórmulas bossa-nova-jazz e outras, mais fieis aos originais.
O disco Four Sider é um retrato perfeito da obra do século passado, mas isso não significa que Sérgio Mendes parou por lá. Poderia ter parado se fosse apenas o dinheiro a lhe interessar, pois ficou rico. Construiu uma enorme casa em Los Angeles e nela um estúdio de gravação completo. O marceneiro que estava fazendo a parte de madeira do estúdio, lhe disse que estava estudando para ser artista de cinema. Sergio Mendes apreciou o fato e desejou boa sorte ao rapaz. Alguns anos depois o viu estrelando um filme. Era Harrison Ford.
No século 21, já gravou cinco discos. Desses eu tenho Timeless, onde ele revisita alguns sucessos em companhia de artistas de Rap, de Stevie Wonder e outros. Ou seja, com mais de 80 anos, continua ligado no som atual e emprestando a ele seu talento. 
As vinte e uma músicas que compõem Four Sider são as seguintes:  Mais Que Nada (Jorge Ben), One Note Samba/Spanish Flea (Jon Hendricks / Antônio Carlos Jobim / Newton Mendonça), Bim Bom (João Gilberto), Look Around (Alan Bergman / Marilyn Bergman / Sergio Mendes), (Sittin' On) The Dock of the Bay (Steve Cropper / Otis Redding), Watch What Happens (Norman Gimbel / Michel Legrand), With a Little Help from My Friends (John Lennon / Paul McCartney), The Look of Love (Burt Bacharach / Hal David), Norwegian Wood (John Lennon / Paul McCartney), Wave  (Antônio Carlos Jobim), After Midnight (J.J. Cale), Chelsea Morning (Joni Mitchell), The Fool on the Hill (John Lennon / Paul McCartney), For What It's Worth (Stephen Stills), Day Tripper (John Lennon / Paul McCartney), Crystal Illusions - Memórias de Marta Saré - (Guarnieri / Lani Hall / Edu Lobo), País Tropical (Jorge Benjor), Ye-Me-Le (Chico Feitosa / Luís Carlos Vinhas), Reza (Rui Guerra / Edu Lobo), Promise of a Fisherman (Dorival Caymmi), After Sunrise (Oscar Castro-Neves / Tião Neto).
Várias plataformas na internet vendem o disco, bem como disponibilizam as faixas para uma audiência. Divirtam-se.


segunda-feira, 6 de maio de 2024

Belchior forever

 Por Ronaldo Faria

 

A rua está escura e obscura, como um abismo que só o absinto poderá determinar o fim entre a próxima esquina e a quina do prédio que está logo ali defronte. O escuro absorto e solto neste lado da Terra que, creiam, é redonda, está rotundo e senhor de si. Ensimesmado, porém, feito o amante que se acha amado (mero boçal), Cândido Homero, como o nome diz ser bom e herói de literatura grega, é um maltrapilho idoso que se cortou e se queimou pelos dias e tempos trêmulos e efêmeros que foram seus dias travestidos de vida.
Mas, para ele, pouco ou tanto faz. Facínoras invadirão seus sonhos e pesadelos sem mazelas ou fábulas de aprendiz de sonhador que só quer um dia dormir em paz. Para Cândido Homero, o frescor de uma infância que nunca teve, a juventude partida entre a busca da sanidade e a idade que viria depois. A fuga constante da inconstância prematura, a sentença natimorta de saber que felicidade não há. A gargalhar nos frangalhos da emoção, ele caminha enquanto houver caminhar.
Nos dias de Cândido Homero, minutos nostálgicos e nevrálgicos, palavreados atávicos, metonímias que nem a rimas sabem o que são. Feito sermão de padre pedófilo, a oração que atabaques ecoam num espaço quente e enlouquecido de uma mulher de cabelos negros e longos, peitos grandes, ancas de dar bons filhos. E nunca mais. E o amor que se foi se evadiu e fugiu nos trilhos de trens que somem em ruídos ensurdecedores, fugas de amores e odores, lábios e crenças mil.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

No concreto, de volta àquilo que crê-se seja concreto (a ouvir Tom Zé)

 Por Ronaldo Faria



Píncaros.
Quais?
Fatais?
Hoje ou nunca mais?
Nos amemos?
Ou Amemo-nos?
Na esquadria do concreto, tanto faz.
Prosopopeias?
O que será isso?
O autor despirocou.
Há São João ou Augusta?
Súplica que haja.
Senão, não há razão de escrever.
Tesão?
O que é isso?
Ter o senão?
Viver o quão for?
Se este for ou não.
Cidade de concreto.
Dejetos a sorver.
Descobertas a viver.
Deus, se houver, salve São Paulo.
Onde vivem Severino e Saulo.
Suavemente, salvem-se todos.
Na Cracolândia, a Disneylândia do pó.
Armagedom do preto e do judeu.
Do pobre e do plebeu.
Do rico além da riqueza do judeu.
Réplica da tréplica que não há.
Varejo e venda sem cifrões.
Da mulher e do travesti da esquina.
Da sina que vem do Sinai.
Dos parques e parquímetros.
Botecos e meros afetos.
Artistas de rua e moradores que nem.
Viadutos e seres putos.
Milagres surgidos na sarjeta.
Mutreta de repassar o pó.
Mureta entre a riqueza e a pobreza.
À fome, cães e humanos mil.
Fodam-se os artistas da vida...
Jardins e vilas segregados.
Todos vilões em si.
Nuns os abastados.
Noutros os eternos chinfrins.
Chamuscados de poluição, beijam-se.
Parcimônias da amônia geral.
Filhos de uma mesma vida no fim.
Vilipêndios no sol a frigir.
Como meros fugitivos de si.
Na mesmice do bagulho carmim.
Crendice da chegança sem mimimi.
São Paulo será um por fim.
A comer milhares de reais.
A sorver o que há de mim.
Embriagado, tragado até o fim, faço-me sim.
E foda-se o restante que há.
No subterfúgio da vida, o que haverá?
Talvez uma esquina ou uma sina.
Mas quantas milhões existirão?
Na insônia da isonomia, o silêncio.
Num bar, o cliente chama o garçom Inocêncio.
Na sentença da demência, a clemência...
E ponto final, afinal..

Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...