sexta-feira, 27 de maio de 2022

Ao Som da Antonia Adnet

 Por Ronaldo Faria

“Fundamental é dividir o prazer”

(Mário Adnet e Bernardo Vilhena)


Cáspite! Quem nunca pensou em começar a escrever um texto assim? Com admiração e ironia. Com devassidão e sintonia. Coisa antiga, palavra plural que deixou de existir mesmo existindo. Que faz parte do dicionário, mas está lá, quietinha, quentinha entre as páginas nunca abertas no seu verbete. Que, parece, usa torniquete para vociferar contra as gírias novas e modernas que a fazem sangrar da dor de não se ouvir nos lábios de um qualquer.

Cáspite poderia ser o nome de uma donzela perdida num castelo medieval a bailar em qualquer sala oval. A girar e revirar feito melodia que não fica, não foca e não volta, que se espraia no vento forte da praia e nos cantos mornos do coração. Uma menina qualquer, de ancas fartas e pernas plásticas e brancas. Que sente a falta do sol a rebrilhar amarelo e longe, onde esquentam o monge e o luar.

Senão, quem sabe, cáspite poderia ser um evangelho tosco e perdido num umbral qualquer, desses que a menina de olhos negros e sorriso profundo não viveu. E não o fez porque olhava para o nada e nadava nos seus sonhos de musa e amada. Engalfinhava-se com as rosas jogadas ao chão e a visão do poeta, disperso e insone, que atirava letras escritas como sonetos e prosa para o alto, na esperança que uma delas caísse na janela aberta em forma de versos.

Cáspite seria, enfim, para ter um fim digno que quem já andou na boca de dentes de marfim, um mistério final. Sem ter explicação, sem denominação, sem significado, sílaba letal. Talvez, um pedaço de frase de um fado. Desses que se deixa tocar em bandoneón numa esquina que não tem escuridão e nem sequer luz de néon. Apenas esquina, com toda a sua vastidão e sina, aprendizados, perdas e chegadas. Lugar onde cáspite ou solitário podem virar somente interjeição, coisa levada de volta para o além-mar. E, clarividentes, dormirão quietos e rotos, cabeças apoiada na sarjeta, a verem a vida passar e repassar.

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Bituca, 80

Por Edmilson Siqueira 


Milton Nascimento está fazendo 80 anos e realizando o que ele chama de sua última turnê pelos palcos do mundo. Numa das chamadas para o show publicada no YouTube, ele diz, humildemente, que todo mundo o conhece por Bituca.  


Conheci música pela primeira vez, num festival da Globo, o FIC, em 1967. Ele nem queria inscrevê-la, avesso que era à competição dos festivais. Quem o fez foi seu amigo Agostinho dos Santos. E não só Travessia, que ganhou letra de Fernando Brant. Inscreveu mais duas de Milton - Maria, Minha Fé e Morro Velho - e as três foram classificadas para a apresentação. Travessia ficou em segundo lugar no festival, perdendo para Margarida, de Guarabira.  


Mas o nome Milton Nascimento já era conhecido no mundo musical, pois um ano antes Elis Regina gravara Canção do Sal. Essas três músicas, mais Travessia, obviamente, estariam no primeiro LP de Milton, lançado naquele mesmo ano. Travessia, o nome do LP, hoje é cultuado e foi vendido no mundo inteiro. Mas era apenas o começo de uma das mais brilhantes trajetórias de um artista brasileiro. 



Milton nasceu no Rio, mas foi adotado por um casal mineiro bem cedo e foi em Minas que ele cresceu e foi exemplarmente educado por seus pais adotivos que Milton, claro, jamais os chamou de adotivos. Diz ele sempre que é o mais mineiro dos cariocas.  


Hoje, 47 discos depois, uma penca de sucessos mundiais - Travessia ganhou letra em inglês e tem dezenas de gravações no exterior, gravou com grandes nomes da música nacional e internacional, ganhou cinco Grammys e, com sua turma do Clube da Esquina, colocou a música produzida em Minas no centro de tudo - Milton anuncia o fim dos shows. Não vai mais cantar em público, pois a voz não é mais a mesma e a saúde anda debilitada. Pudera: são mais de 60 anos na estrada, como ele mesmo gosta de falar.  



Em 2001 estive pela primeira e única vez até hoje, em Londres. Visitei a lendária Tower Records, quatro andares só de discos (já eram CDs) no centro da capital inglesa. Claro que fiquei meio abobalhado lá dentro, nem sabia aonde ir, mas subi para o terceiro andar atraído por uma palavrinha mágica: jazz. Centenas de prateleiras com todo o jazz do mundo. Mas, numa prateleira de três sessões, um título me deixou orgulhoso: "Brazilian Music – Bossa Nova". 

E, se esse título me deixou orgulhoso, outro que vi ali perto, encimando uma prateleira solitária, quase me levou às lágrimas: Milton Nascimento Songs. Sim, havia centenas de estantes de jazz, três da MPB e Bossa Nova e uma, que não se classificava em nada deste mundo, dedicada apenas e tão somente à música de Milton. Jazz, MPB, Bossa Nova? Não! Milton Nascimento! Uma espécie de música universal que saía daquelas cabeças mineiras que ele tão bem representava e ganhava o mundo, enchendo-o de prazer e assombro.  


Depois de Travessia, Elis, nossa maior cantora, virou fã da música de Milton e acabou por popularizar de vez sua obra, que também ganhava interpretações de outros cantores e cantoras, num reconhecimento da qualidade que poucos artistas tiveram no Brasil. 

Em 1972, já consagrado, Milton se junta ao seu amigo Lô Borges e outros com quem se reunia em Minas e lança o LP Clube da Esquina. A produção era tamanha que foram precisos dois LPs na mesma capa para conter as 21 músicas gravada. Do disco participaram nomes que também teriam carreiras consagradas no Brasil e até no exterior: Ronaldo Bastos, Fernando Brandt, Márcio Borges, Beto Guedes, Tavito, Wagner Tiso, Toninho Horta, Robertinho Silva, Paulo Moura, Eumir Deodato, Luiz Alves, Nelson Angelo, Rubinho e Gonzaguinha (fazendo back vocal numa faixa). 


Não me lembro se foi ainda em 72 ou no ano seguinte, que assisti no extinto Cine Carlos Gomes, em Campinas, a um show de Milton, promovendo exatamente o Clube da Esquina.  O que ficou na lembrança - e sempre ficava quando se ouvia suas músicas - foi, além da beleza melódica, aquela voz límpida, metálica e suave ao mesmo tempo, sem paralelo na MPB e que tanto encantava a quem ouvia, fosse em disco ou pessoalmente. 


O Clube da Esquina fez tanto sucesso e a turma era tão produtiva que, em 1978, se reuniram novamente e gravaram mais um, também duplo como o primeiro, com mais 23 músicas e com uma participação maior ainda de artistas já consagrados, como Elis Regina, o grupo Boca Livre, Chico Buarque, o grupo Azimuth e outros.   

 


O fim das apresentações de Milton nos palcos não é o fim de sua carreira artística. Ele ainda compõe e talvez esteja até escrevendo mais alguma coisa. Talvez possa até gravar um disco para nos encantar novamente. 

Seja lá como for, esse artigo, que foge aos parâmetros que me propus nesse blog, é para saudar um dos nossos mais geniais compositores de música. Não vou recomendar qualquer disco de Milton. Compre qualquer um, de olhos fechados. Bote pra rodar seja lá qual for a mídia escolhida. E ouça. Pode fechar os olhos e sonhar. Foi isso que Milton fez a vida toda: nos transmitiu um sonho em forma de música que nos deixou mais felizes.  


Obrigado, Bituca! 

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Ao pisco, no pico. E ao Alceu Valença, na moral

 Por Ronaldo Faria

 


Pisco Capel a dentro (à capela), adelante, arriba, abajo.

Noite que se conquista, benquista e calada. Eu calado.

Comédia Cinédia e prelúdio do infausto desmedido.

Casuístico e enveredado de passado, no afinco. Eu fico.

Trinca na janela no escritório peremptório.

Coisa de oratório. Coifa no futuro purgatório.

Vida transitória e notória. Eu, fora do Rio, notório.

Para mudar de rima, o ensimesmado copo suado.

Copo casado com as gotas externas, prostitutas dos lábios.

Crentes e descendentes do único pecado que não manda recado.

Veneranda pujança de uma cena de alfarrábios.

Caligrafia perdida e inaudita, dita por não dita.

Como a bela Inês do Alceu Valença a clarear a luz do Sol.

Toada travada e trivial, clarividente e cheia de dentes doentes.

Resto de dias na Terra aterrada ao resto de mar que quebra lá e acolá.

Coisa de lua cheia que permeia e premia os amantes.

Que sobe e desce ladeiras de Olinda, lindas só por serem sós.

Brincadeira sem eira e nem beira, à beirar do mar e no ar.

Maresia que chega e se junta no mais profundo pulmão.

Daqui, de antemão, choro de saudades do irmão.

Brinco de praça perdida entre cães e manhãs enluaradas.

Cartas manuais e preenchidas de fitas fátuas a brilharem no ar.

Tudo como um eterno, terno e doidivanas Carnaval.

Tudo letal e marejado de lágrimas vazias, no metal.

Aqui, a dedilhar um teclado Microsoft, viro sofisma etecetera e tal.

terça-feira, 24 de maio de 2022

O estilo de Júlio Caliman

 Por Edmilson Siqueira 

Em 2008, Júlio Caliman gravou um CD que ouço com muito prazer até hoje. Trata-se de "Tão Longe", um instrumental onde ele mostra suas qualidades na guitarra, na composição e até arrisca cantar duas músicas, uma de sua autoria e outra um clássico de Johnny Alf.  


Nesse mesmo ano, ele iniciou estudos na Northern Illinois University (NIU), em Dekalb, Illinois, tendo estudado com Fareed Haque, Ron Carter, Willie Pickens e Art Davis. Ali recebeu, em maio de 2010 o Performer's Certificate in Music após dois anos de estudo. Durante esses dois anos, ele teve um blog onde contava sus aventuras nos EUA. Como os textos eram muitos bons, aproveitei alguns deles num blog que mantinha à época. Depois ele voltou ao Brasil e não tive mais contato. Mas hoje ele é professor de música e, espero, continue compondo e preparando algum disco. 


Esse "Tão Longe", como ele próprio diz no encarte, "é o resumo de uma careira que já tem [tinha, na época] 15 anos. As seis músicas de minha autoria aqui incluídas foram compostas em momentos diversos da minha vida, como "Ressaca" (1995), feita no último ano da faculdade. Essas composições refletem, aqui e acolá, algumas das minhas influências, em especial Dori Caymmi, Toninho Horta, Djavan, Pat Metheney e Wes Montgomery".  

O estilo de todo disco é mais jazzístico, com pitadas de MPB e bossa nova e, em todos os estilos, se sobressai a guitarra ou violão, contido, porém exato e inspirado de Júlio Caliman. Trata-se de um desses músicos que têm a teoria e a prática a seu dispor. Estudioso, é Mestre em Música pela Unicamp desde 2006, tendo encerrado o curso com a dissertação "O Cantador: a música e o violão de Dori Caymmi". 


O grupo de músicos que o acompanha varia pouco em cada música. Sidney Ferraz e Erik Escobar nos teclados, Bruno Capini e Marcos Souza no baixo acústico ou elétrico, Fábio Bergamin e Pepe D'Elia na bateria, Fábio Bergamini na percussão e Vinicius Dorin no sax tenor em apenas uma música, se revezam, mantendo o ótimo nível em todas as dez faixas. 


Seis músicas são de autoria do próprio Júlio (Vila São João, Pititica, Ressaca, À La Dori, Happy Hour e Tão Longe). As outras quatro, Júlio explica que três delas foram cedidas por amigos, sendo uma delas feita exclusivamente para ele - "Song for My Friend", que ele considera "uma grata surpresa do genial músico Erik Escobar. "Débora" é uma composição de seu ex-professor, o pianista Rafael dos Santos e "Clemência" lhe foi dada pelo seu autor, o violonista Renato Luz. A quarta música que não é de autorial de Júlio Caliman é "Rapaz de Bem" de Johnny Alf que ele considera "um dos maiores compositores brasileiros". 

O disco pode ser ouvido na íntegra no YouTube Music - https://music.youtube.com/watch?v=5Lhp6jJlQ6E&list=RDAMVM5Lhp6jJlQ6E  e também pode ser comprado nos bons sites do ramo. 

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Ao Pequeno Tempo

 Por Ronaldo Faria

 

Mais um pequeno tempo e um tempo maior irão cumprir seu caminho circulatório no universo sem verso ou reverso, escuro e retórico, rotineiro num acordar e dormir sem ter fim.

Mais algumas horas e começa tudo de novo, como um ovo sem saber se a galinha estava lá para pari-lo ou se o deixou entregue ao asfalto quente para, impertinente, fazê-lo nascer.

Mais semanas, meses, minutos, esperas, comédias e tragédias. Beijos e abraços, tiros e litros devassos e mortais, cores de tevê a brincarem na íris de quem vê a vida como eterna solidão.

Tempo, quieto ao relento a esperar uma meia-noite chegar, faça-se passar mais devagar neste planeta. Deixe o amante a divagar, a morte a voar, a Terra a pensar que és igual e diferente.

Passe um pente nos cabelos da natureza e escreva missivas de saudade inaudita às músicas que entoam em cada ventania sobre o mar, em cada cantiga sobeja sob o corpo a arfar.

Tempo pequeno, pequeno tempo, que no próximo ciclo lunar possas ter gosto de gengibre e cheirar a jasmim. E por favor: me chame de amigo quando eu descobrir que mentiu sobre ser sem fim...

“O sol então nos encontrará
Pela madrugada
Numa festa como num conto de fadas
Cor de jade e de marfim, nos invade
Amor sem fim, felicidade é uma coisa assim.”
(Jorge Mautner)

sábado, 21 de maio de 2022

Ao Paulo Vanzolini

 Por Ronaldo Faria


Ouvindo Ronda, pós algo depois da primeira edição, vem a parcimônia da chegada insensata da madrugada próxima, aquela que maldiz o tempo perdido num lugar fechado sob a fachada de uma empresa presa na pressa da rotina ínfima e final. E chegam as notícias trôpegas do estar em férias vivo no antes da morte. O desejo benfazejo de deixar tudo e tramitar entre transes e trovas venais. Ao ouvir a Valsa das Três da Manhã, na voz de Paulinho Nogueira, verter letras e palavras sobre um teclado múltiplo e braçal. Coisas de malabarismos de sons e sonhos, brilhos e cores que nem mesmo mesas cheias de brioches conseguem retratar. E medir a glicemia tardia, na trova fatal de brandir um descaso ao acaso em torpor.

Queria tê-la, Maria de um lugar qualquer. Seios enjaulados em sutiãs imantados de dedos e desvelos, desbragados pela voz de um trovador qualquer, criados à pincelada de um poeta que escreve mágicas palavras transversas para somente dizer que não sabe como te amar.

Queria tê-la, Maria de um lugar qualquer. Boca em riso que se expõe ao limítrofe desejo de acariciar teu rosto e aninhar teus pesadelos. E viajar e brandir o férreo passado que sabe que disse na voz a frase errada. Coisa de místicas passagens vis e lineais na margem que divide a felicidade da dor.

Por fim, queria tê-la, Maria de um lugar qualquer, para descobrir novos lençóis em músicas de mi e bemóis. Coisa tangida de verves e frágeis brincadeiras de quintais e fundo de casa e pinturas de muros próprios. Tudo feito o trejeito que busca o corpo primeiro e secular, como um passado que teima em voltar.

Presságio natalino

 Por Ronaldo Faria O Natal corre brejeiro e cheio de cheiros, madrigal. Se esconde nas cercanias de casarios perdidos no tempo ao vento qu...