quarta-feira, 30 de março de 2022

À Dona Ivone Lara

Às vezes o meu Rio de Janeiro volta incerto e brejeiro. Com rodas de umbanda, corridas na praia, porres sem saber. Um tanto de amanhecer e até ver o poeta maior, outro pouco de entardecer por detrás do morro que se enche de vidas e vozes.

Às vezes o meu Rio de Janeiro se entrega em cheiros de creolina, odores de bares, fragrâncias da amada. Com rodopios e pios do santo que baixa e sobe a cada cantar. E uma maresia que sobe e fica, se larga e passa, entre o fim e a alegoria.

Às vezes o meu Rio de Janeiro se desvanece e se entorpece de relíquias mil sob um céu de anil. E pede a contradança à mais bonita mulher que pode ser par. E roda, rodopia, ginga e se joga para cada esquina infinita e finda que não sabe acabar. 

Às vezes o meu Rio de Janeiro nem sabe quem é. Talvez seja uma cidade ou, senão, apenas o corpo de uma mulher. De Deodoro a Marechal há muito a seguir. Do Leblon até o Jacaré tem quem dá adeus e quem nunca aceita dar sequer uma ré.

Às vezes o meu Rio de Janeiro me deixa entregue ao léu. Meio Maracanã em dia de Flamengo, meio saudoso do dengo da índia que vivia depois do Irajá. Afinal, a Cidade Maravilhosa não tem muito lugar. É em cima do morro, no asfalto e ou só acolá.

Às vezes o meu Rio de Janeiro surge em novembro, fevereiro ou dezembro. Pouco importa, desde que haja entrada e, na saída, uma porta. Daqui exilado, não troco o samba pelo tango, mesmo a ter todo o respeito pelo som imortal de um frevo.

terça-feira, 29 de março de 2022

Um intérprete chamado Paulinho da Viola

Por Edmilson Siqueira 

Paulinho da Viola, como todo mundo que gosta de boa música sabe, é um desses gênios do samba, cujas músicas já se eternizaram na memória brasileira e, daqui a cem anos, continuarão sendo ouvidas e gravadas. Seus maiores sucessos são de músicas que ele compôs sozinho como Foi um Rio que Passou em Minha Vida, Pecado Capital, Rumo dos Ventos, Meu Violão, Jurar com Lágrimas, Sinal Fechado ou Bêbado Samba, entre muitos outros. 


Mas Paulinho é, além de um grande cavaquinhista, também um grande intérprete. Em todos os seus discos, ele canta músicas que fez em parcerias ou músicas de outros autores, como Sei Lá Mangueira (música que ele colocou em versos da Hermínio Belo de Carvalho) Mas Quem Disse que Eu te Esqueço (Ivone Lara e Hermínio Belo de Carvalho), A Maldade Não Tem Fim (Armando Santos), Ame (com Elton Medeiros), Alento (Paulo Cesar Pinheiro), O Ideal É Competir (Candeia e Cascatinha) e dezenas de outros.  


Pois é esse lado de intérprete que vou comentar aqui, já que Paulinho juntou num só disco composições de outros autores que ele gravou e que recebeu o nome justamente de "Paulinho da Viola - Intérprete".  


O CD que tenho é de ótima produção com uma bela foto na capa. E, na contracapa, Paulinho está sendo numa cadeira de balanço, imitando uma famosa foto do grande Pixinguinha. Um encarte com todas as letras e a ficha técnica, também bem cuidado, completam o trabalho. 


As gravações abrangem um período que vai de 1968 a 1973. Paulinho, como se sabe, sempre foi ligado a grandes sambistas, conhecidos ou não do grande público e sua generosidade levou a gravar alguns grandes sucessos desses amigos, fossem eles de que escola de samba fossem, mesmo que seja ele um portelense raiz.  


E essa amizade até lhe causou problemas. O lindo samba Sei Lá Mangueira, que Elizeth Cardoso eternizou, é uma parceria sua com Hermínio Belo de Carvalho. Pois seus amigos da Portela entortaram o nariz ao ver um dileto portelense louvar as belezas da escola rival. Pois Paulinho, para mostrar que seu amor pela azul e branco continuava incólume, escreveu Foi Um Rio que Passou na Minha Vida, voltando aos braços e abraços de sua escola. O samba é, talvez, seu maior sucesso. 


O disco com Paulinho só de intérprete é uma dessas joias que devem ser ouvidas sempre. Algumas das músicas se transformaram em sucessos do rádio na época em que foram lançadas, outras têm ótimas melodias e letras. Todas com arranjos bem-feitos e a sempre correta e agradável interpretação de Paulinho. 

As gravações são as originais e é muito bom ter em mãos essa coleção de bons e ótimos sambas que Paulinho eternizou.  


A seleção é das mais primorosas e, assim mesmo ouso dizer que muitas que mereciam estar na seleção ficaram de fora. Simplesmente as que foram gravadas depois de 73, de outros autores, já dariam pra fazer outro disco. 


Logo de cara, somos brindados com Nervos de Aço, a música que Lupicínio Rodrigues escreveu em 1947, quando encontrou seu grande amor - Iná, de quem fora noivo - casada com outro.  


Acontece, de Cartola, a segunda faixa do disco, teve em Paulinho a primeira gravação, em 1972. É um daqueles sambas emblemáticos de Cartola: linda melodia, letra perfeita. E, claro, grande interpretação de Paulinho. 


Mente ao Meu Coração (Francisco Malfitano e Pandia Pires) vem a seguir, seguida de Nega Luiz (Wilson Batista e Jorge de Castro), Mal de Amor (Raul Sampaio e Benil Santos), Duas Horas da Manhã (Nelson Cavaquinho e Ary Monteiro), Nova Ilusão (Paulo Caetano e Claudionor Cruz), Não Quero Mais Amara a Ninguém (Zé da Zilda, Cartola e Carlos Cachaça), Pra que Mentir (Noel Rosa e Vadico), Lenço (Monarco e Francisco Santana), Sentimentos (Miginha) e Doce Veneno (Valzinho, Carlos Lentine e M. Goulart). 

Como se vê trata-se de um repertório da mais alta qualidade, com boa parte da nata do samba brasileiro misturada a compositores que, se não tiveram sucessos perenes, escreveram pelo menos algumas grandes obras que Paulinho teve a sensibilidade de gravar. 

O disco inteiro pode ser ouvido neste endereço: https://www.ouvirmusica.com.br/paulinho-da-viola/710291/#album:interprete-2005 . E, claro, ainda está à venda nos bons sites do ramo. 

segunda-feira, 28 de março de 2022

A ouvir Macalé

Panificadora partida entre pães e bolachas, ou biscoitos. Há um forno crepitando maluco e um padeiro meio tarado e meio eunuco a correr entre fumaças e odores, flores despejadas na rua e um cais a borbulhar de ondas os brocados das saias das mulheres a comprarem bolos e sonhos. O tintilar de moedas e voo de notas denota que a tarde chega tardia para a noite que a envolve de luzes e cores. No asfalto, de fato, a fotografia delimita a orgia futura. No caixa, o português dono de tudo, grita entre cifras e cifrões. “Tenho aluguel para pagar, seus sem colhões!” No verbete que vira verbo na porta da padaria, o lembrete de que o tempo não para e quente é melhor de comê-lo. Defronte do prédio, dois moleques que têm na rua o seu lugar vêm para sentir no nariz que a fornada chegou. 

Jards Macalé é um dos caras, talvez o cara. Ps.: Antes de flamenguista, tijucano, sou americano, como Macalé.

sábado, 26 de março de 2022

À Roberta Sá

Pandeiro a tocar seu ritmo arrítmico diante da madrugada malfadada que me apraz. Um pedaço de arremedo. Um incansável e inefável sofrer. A dor que bate no pinho o dedilhar que o punho segue os dedos e se refaz. Uma voz a soar a sina. O sonho de um lábio molhado onde o arcanjo voraz sorve sua sede de pecado. Quem sabe a imensidão dos impropérios etéreos que se desdenham nas notas de um mascarado poeta na quarta-feira de cinzas a se desdobrar entre ser ou não ser. Um embriagado viver de memórias inenarráveis e o futuro que não existe por não ter. Há muito a se ver. Brincadeiras de asneiras e as ladeiras de uma Olinda finda no subir e descer. O inglório desdenhar de pesadelos em desmazelo, o zelo de cuidar do que resta de você. Cancioneiro de notas deletérias e etéreas. Um desgrenhado mistério que se joga em sobras devagar. A vagar me faço sem ser.

sexta-feira, 25 de março de 2022

O internacional Sergio Mendes

Por Edmilson Siqueira

Sergio Mendes é um desses artistas brasileiros que, a partir de sua ida definitiva para os EUA, se tornou universal. Fez sucesso em várias partes do mundo e, principalmente, nos EUA, mais do que outros ícones da MPB. Isso porque ele soube fazer mixagem perfeita entre a música brasileira e o pop e jazz norte-americano. Pianista dos bons, já tinha passado pelos EUA, mas de volta ao Brasil, no início dos anos 1960 produziu ótimos discos. Um deles, comandando o Bossa Rio, é antológico: Você ainda não ouviu nada! é o ousado título (ousado para 1964). Nele, Sérgio Mendes juntou Tião Neto, Edison Machado, Raul de Souza, Edson Maciel, Hector Costita e Aurino Ferreira. E nos arranjos, além do próprio Sergio Mendes, estão nada mesmo que Moacir Santos e Antonio Carlos Jobim. 


Aliás, é Jobim o autor de um dos textos que acompanha o LP original. No trecho final, escreveu nosso maestro soberano, sobre Sergio e sobre o disco que ele ajudou a fazer: “Além de ser um intuitivo é um estudioso. Coisa rara, pois, geralmente, os intuitivos ficam só intuitivos e os estudiosos seguem estudiosos. Agora tive oi prazer (e o sofrimento) de colaborar com ele neste disco. E foram mil noites sem dormir e café e cigarros. Depois eu ia levar Serginho até a Praça XV. Comprávamos os jornais do dia enquanto vinha chegando a barca que o levaria de volta à sua Niterói. Não sou profeta, mas creio que este disco, produto de muito trabalho e amor, abra novos caminhos no panorama da nossa música”. E abriu mesmo.  


Mas esse disco fica para um próximo artigo. Hoje, vou falar sobre outro, mais recente, de 2006, quando Sergio Mendes tinha 65 anos (tem 81 hoje), onde ele junta a bossa nova, a boa MPB com o pop-rock, o hip rock e o jazz, num caldeirão que só o bom gosto e o talento de Sergio Mendes poderiam transformar num som agradável e num excelente disco. 


O título é Timeless. E nomes como The Black Eyed Peas, Eryka Badu, Q-Tip, will.i.an, Jill Scott, Mr. Vegas, John Legend, Pharoahe Monch, Justin Timberlake, Chai 2na, Debi Nova e Black Thought estão todos lá, mostrando versões próprias de antigos sambas e bossa novas, dando uma nova (e boa!) roupagem a sucessos que conhecemos e amamos. 


Mas, além desses nomes todos, que podem soar estranhos ao amante da MPB, temos também Gracinha Leoporace (mulher de Sergio) cantando maravilhosamente Berimbau e Consolação, com a participação ainda de ninguém menos que Steve Wonder. E na faixa Fo'Hop (se você leu Forró, é isso mesmo...), a presença do autor, nosso grande Guinga. E a música é um forró mesmo, delicioso por sinal.  


Depois desse disco, Sergio Mendes gravou mais cinco e, aos 81 anos, continua fazendo planos de novas apresentações e gravações, pois continua sendo um artista requisitado em várias partes do mundo. 

Timeless é um disco que, de certa forma, marca uma fase importante na música de Sergio Mendes, através dessa aliança com a música norte-americana dos guetos que estourou no mundo inteiro. Mas é, principalmente, um excelente disco pra se ouvir a qualquer hora. Afinal, Sergio Mendes tem provado, ao longo de mais de 50 anos, que tudo que faz tem qualidade, bom gosto e muito talento.  

O álbum completo pode ser ouvido no YouTube, inclusive com um clip da primeira música, nesse endereço: https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_nTcu86Mttj2FbnyvtT8VZR0NLvS7IkqkI 

quinta-feira, 24 de março de 2022

Pro Zeca Pagodinho em 2003

Fundo de tela de mesa de bar. Do Zeca. O bicho! E-mail para os amigos de mesa. Saudades e cheiros da noite. Cerveja, pinga e vodca. Vida. Enquanto esta durar... Obrigado enquanto este agrado em engradados tiver! Obrigado à vida enquanto esta durar, ou viver! Nas mesas, nas fragrâncias, odores e gostos notívagos. No computador, mistura de lembranças e mansidão. Rompimento da eternidade, da dor e da solidão. 

quarta-feira, 23 de março de 2022

Nat, um verdadeiro rei

Por Edmilson Siqueira 

Em 5 de novembro de 1956 estreava na televisão americana, mais precisamente na NBC, um programa musical, semanal, em horário nobre. Até aí, nada demais, pois todas as emissoras tinham programas musicais, alguns até em horários nobres.  


Só que este tinha algo diferente, além do enorme talento do seu astro principal e apresentador: ele era negro. Seu nome: Nat King Cole. 


A ousadia da rede teve um preço: o programa jamais conseguiu um patrocinador exclusivo e durou pouco mais de um ano. Foi encerrado por iniciativa do próprio Nat que não quis continuar sem o tal patrocinador nacional. 

Só que o sucesso do programa, se não conseguiu tanta audiência, foi exatamente de abrir as portas para muitos outros artistas que, embora tivessem talento de sobra, eram deixados de lado pela televisão por serem negros.  


E alguns desses talentos todos podem ser conferidos num DVD de pouco mais de uma hora, com o filé desses programas. O DVD se chama ""When I Fall in Love / The One And Only NAT KING COLE" e está à venda nos sites por um preço camarada.  


Só que o DVD não é apenas um desfilar de ótimos números musicais, com Nat dando o show de sempre na companhia de grandes nomes da música norte-americana. Ele traz também depoimentos exclusivos dos familiares de Nat - a esposa Maria, seu irmão mais novo e também músico Freddy Cole e suas três filhas, Natalie, Casey e Timolin - além de interessantes comentários de Bob Henry, diretor e produtor da série original.

 

Com isso, além do prazer de ouvir grandes músicas com excelentes interpretações, também vamos nos emocionar com a família falando do pai, do marido, do irmão que, além das qualidades artísticas (ele não era só um dos maiores cantores dos EUA, mas também grande pianista de jazz, que, aliás, foi como começou sua carreira artística) era um ser humano fantástico, alegre, honesto e sempre bem-humorado. 


Pelos artistas que estão no DVD fazendo grandes números ao lado de Nat, percebe-se que seu programa atraiu a nata musical norte-americana. Muitos viam nele a oportunidade de aparecer a um público bem maior e combater o racismo do qual eram vítimas.  


Na parte musical do DVD, depois de três números só com Nat, ele aparece cantando seu grande sucesso Sweet Lorraine ao lado de ninguém menos que Oscar Peterson Trio. Em seguida, para cantar Somewhere Along the Way, Nat tem a companhia do genial Sammy Davis Jr. The Mills Brothers, um conjunto vocal com quatro negros, canta, com Nat, Opus One.  

Um dos pontos altos do show é a presença de Ella Fitzgerald para cantar Too Close for Confort, num dueto sensacional. Mas a melhor surpresa fica por conta de num número no teclado a quatro mãos, com a música Blueberry Hill. Cantando junto com Nat, um garoto prodígio nos seus 12/13 anos: Billy Preston, que viria a ser um dos maiores pianistas do pop e do rock americano, participando, inclusive, da gravação dos últimos discos dos Beatles, em Londres, em 1969. A cópia colorizada dessa apresentação tem rodado as redes sociais por aí, com grande aceitação. 


Ao todo, são vinte números musicais completos, além dos depoimentos e várias fotos extras. Trata-se, sem dúvida, de um documento histórico, que não só homenageia um dos maiores cantores de todos os tempos, como mostra que Nat King Cole era uma pessoa extraordinária, que soube enfrentar o preconceito e o venceu com seu talento, seu carisma e sua bondade. 


Nat morreu cedo, aos 45 anos, em 1965. Os três maços de cigarros que fumava por dia causaram-lhe um câncer fatal.  

Presságio natalino

 Por Ronaldo Faria O Natal corre brejeiro e cheio de cheiros, madrigal. Se esconde nas cercanias de casarios perdidos no tempo ao vento qu...