segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

Sob o som de Renato Teixeira

 Por Ronaldo Faria

Aliança de madeira quieta na porteira. Chuva batendo trêmula feito goteira. Um pássaro, miúdo, amiúde, gorjeia do lado de fora. A vida está perto da aurora final. No sonho, a brejeirice de Janaína a tecer saudade e poesia como fosse uma colcha de retalhos. Encostada na varanda, ela brinca de soltar sorrisos e rir e falar com os olhos. Menina e mulher da cidade de um rio que verte em corredeiras na rua do porto tardio, onde aportam bebedeiras, paixões e ilusões sem fio, vive seu mundo tardio. Onde correm mãos pelo corpo, lábios pelo copo, suores da pele a se esvair em desejo infindo. Tudo feito pintura de rosto, com tintura de índio e crença na infinita chegada de nada chegar.

Vinho sobre a mesa, taça vazia a correr o sangue exangue e dar a cada corpo um mínimo de liberdade e loucura. Imbróglio de solidão e gastura. E um frio que entra gélido e triste sob a janela, querendo fugir da querência dos ventos. Mais uma taça de vinho, da Casa do Diabo. Nos bares, no arrabalde, vozes se arremetem difusas e perdidas. Param aqui e acolá, passeiam dissolutas e entregues como fossem atrizes da perfídia qualquer. E juntam sílabas mínimas para formarem palavras únicas e úmidas que se esmeram em morrer dentro dos lábios. Que se vitrificam diante de olhares nunca vistos ou guardados, no aguardo do amor.

No frio que se aquieta agora, cálido e inconsequente, o som que impregna a sala parece ser o fim e o meio, a partida e a chegada, o meio da meada. Sem mesclas, sem medo, sem nada. Como um caminhão sem boleia, estradão sem lugar para chegar, infinito que não há. Apenas a finitude nos braços da amante, entregue no seu colo, a invadir o umbigo com a língua, carente, descrente, rente à penugem que se joga aos lábios de carne e gozo. Senão, e porque não, o único momento onde não há que se ter tristeza ou lamento, feito corpos em cópula, língua feita de hóstia, emoções em monções sobre o quadrado do quarto. No meio da multidão, acorda um mundo atado de lençol e devassidão.

sábado, 17 de dezembro de 2022

Sob o som inicial de Celso Fonseca

 Por Ronaldo Faria


Primeira dose

Cansaço. Pedaço de corpo arqueado e delimitado, atado em letras e parágrafos parafraseados pelo desejo de ser. Sensível e risível sob o risco de ver o tempo passar sem ver. O olhar vazio, no corpo hiperglicêmico, descobre-se no copo de álcool transgênico de laranja. Remeto ao som do computador a dor de querer viver. O viés não dá lugar à solidão. O dogma é saber que sem limite não há visão do querer. E as frases vão se formando no brilho da tela com palavras desconexas, letras que faltam, erros cobertos de vermelho e vozes. No Natal, haverá nozes. As odes, nestes dias de chuva de inverno e inferno lunar, são o passado remeter. E como dói ser e não saber ter.

 
A segunda dose

Explode o copo na mão. Em centilitros graduados, sua e molha a mesa onde se antevê a retilínea curva da formosa sereia. E vê-se os cabelos negros que lhe cobrem os ombros, os olhos negros que sorriem no todo e os lábios desnudos entre dentes brancos e graves, com gosto saber-se-á de quê. Vê-se que o artista a criou num livro quase igual. Há brilho no desatino da busca sem fim. Mas, diga-se a verdade, não há ela, apesar dos lamentos sem rima e fim.
 
A terceira dose

A música da musa, qual será? Tocará aqui ou se ouvirá só no Ceará? O poema da amada, qual será? Não terá sido ainda escrito ou estará guardado e proscrito, cravado na cruz? O beijo daquela que inspira o poeta, como será? Terá um toque de língua persuadido pelo desejo molhado e venal ou marcará somente o ensejo de querer virar texto em praguejo de não a ter? Na cama da mulher, quem deitará? Quem será o(a) eleito(a) a tocar-lhe os seios, despir-lhe entre toques e mãos sob a luz da madrugada para amá-la na tarde que se esvai? Para onde eu fui ou para onde ela vai? Nem em slow motion bossa nova dream consigo responder...
 
Na quarta dose

Toques de violão do Celso Fonseca preparam a chegada do piano de João Donato. São 23h32. Opostos. Cópulas. Copos. Cones “vodculares” e inconclusos. Obtusa margem de erro e devaneio. Verão em anseio. Calor e furta-cor. Olho que coça. Finitude que caçoa. Beber ou beber, eis a questão? Acima de mim, nada. Abaixo de mim, o chão...
 
Na quinta, osmose

A quinta dose desce como fogo. Dela só saberei amanhã. Tudo sintomático, no afã. Vida, finita e vã. Parece que perdi de novo o que pensei encontrar. Festa de dedos que doem e limite de pensamentos que corroem. Daqui a pouco gostaria que nascesse, ao invés de um, muitos sóis. Nas caixas de som, mis, sis e bemóis. A voz denota o Donato. Só a musa não faz parte do ato. Ficam o abraço sem corpo, o beijo sem rosto, o ato largado no esgoto. Em desgosto, abomino o oposto. Entre vidros, vê-se o teto solar. A abrir e fechar, entrar e voltar nos volteios do dorso desnudo e fugaz. A madrugada se põe a raiar.

Saudades da Guanabara. Que barra. Quando ou onde hei de parar?

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Sob a batuta do mestre maior - Aldir Blanc

 Por Ronaldo Faria

Todos os dias agora eu fico como se estivesse numa ágora, a contar pedra sobre pedra das ruas paralelas, todas com vista para ela: a mulher desnuda e embriagada de vida, com a voz embargada ao insólito e o herege. Por isso, sento diante do espelho de letras que piscam em luminosos caracteres e me jogo ao acaso do ocaso. De cúmplice, a planta me olha do seu vaso. Desfaço-me de atos e travestidos fatos. Sou. E isso, por pouco que seja, para quem não muito enseja, basta. As Tordesilhas me chegam como cafuzas mulheres, confusas e tardias, tensas e tísicas, teatrais e místicas. Chegam como se nada fossem. Um pouco de conhaque, um gole de pinga, uma ou outra dose na eterna tosse.

Todos os dias, tardios em trejeitos e feitos onde um mínimo herói é mais que satisfeito, me jogo às esquinas que desabrocham vertigens e curvas desconhecidas. Talvez um pouco de glicemia e outro tanto acima, talvez apenas a névoa que encobre os poetas nas manhãs claras de um sol descabido. Sol que queima os olhos de quem vive na penumbra, à busca da inexistente tez. Coisa de pesadelo e desmazelo, ensimesmados, ambos, de inebriantes desejos. Coisa de gestos parados no espaço, segurando copos às cópulas que se vestem de coxas e pernas diante da mesa de um bar que caminham para longe, sem nunca chegar.

Todos os dias, como se bêbado acordasse numa fossa que nem mestre-sala faz em porta-estandarte, me livro de cada frase apostata de um livro que jamais escreverei. E leio e releio, como tesouro perdido no único veio, as misérias caóticas e cáusticas de um samba sem verso e sem terço, perplexo na brancura e agrura da tarde. Tenciono músculos e faces, máculas e crases, e vou me soltando, atando nós prolixos e senis. Mas, ainda como quem tem onde segurar e orar, me agarro à batuta do mestre maior, o poeta que respirou além-mar. Antevejo o tempo ao benfazejo desamor. E o sigo em frases e fases ao porto que deságua do lado de uma cama, detrás de um sofá, na emoção que ainda há de sangrar.
 
Ao som do Vida Noturna, do Aldir Blanc

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

Rod Stewart canta 68 clássicos americanos

 Por Edmilson Siqueira 


São cinco CDs gravados entre 2002 e 2010, sendo que os quatro primeiros foram na sequência (2002 a 2005) e o último só cinco anos depois. Eu estou me referindo ao "The Great American Songbook", do cantor Rod Stewart. Trata-se sem dúvida, de uma ótima ideia, pois junta, em cinco volumes, nada menos que 68 clássicos da música norte-americana. 


E tudo foi escolhido com muito bom gosto. A voz diferente de Rod, que muitos não acreditavam que pudesse ficar bem fora do pop ou do rock, se mostra aqui muito bem casada com ótimos arranjos de grandes orquestras. Todos os CDS tiveram ótima produção visual, com belas capas e encartes com alguns textos e as letras de todas as músicas. Além, é claro, de detalhadas fichas técnicas.  


O primeiro CD da série - cada um deles leva na capa o nome de uma das músicas - se chama "It Had Be You" e a seleção é composta por, entre outras, "You Got To My Head" (Haven Gillespie e Fred Coots); "They Can't Take That Way From Me (George e Ira Gershwin), "The Way You Look Tonight" (Jerome Kern e Dorothy Fields), "It Had To Be You (Gus Kahn e Ishan Jones), "That Old Feeling" (Sammy Fain e Lew Brown), "These Foollish Things" (Sammy Fain e Lew Brown) e outras do mesmo nível.   


O segundo disco é "As Time Goes By" e nele Rod Stewart interpreta mais canções inesquecíveis como "Time After Time" (Sammy Cahn, Jule Styne), "I'm in the Mood for Love" (Dorothy Fields, Jimmy McHugh), "Don't Get Around Much Anymore" (Duke Ellington, Bob Russell), "Bewitched, Bothered & Bewildered" (Richard Rodgers, Lorenz Hart), "Where or When" (Rodgers, Hart), "Smile" (Charlie Chaplin, Geoffrey Claremont Parsons, John Phillips) e, claro, "As Time Goes By" (Herman Hupfeld). 


O terceiro se chama Stardust e a seleção tem coisas como "Embraceable You" (George e  Ira Gershwin), "For Sentimental Reasons" (William Best e Deek Watson), "Blue Moon" (Richard Rodgers, Lorenz Hart), "What a Wonderful World" (Bob Thiele, George David), "Stardust" (Hoagy Carmichael, Mitchell Parish, "Manhattan" (Rodgers e Hart), "'S Wonderful" (George e Ira Gershwin) etc. 

Thanks For The Memory" é o título do quarto disco da coleção do grande repertório norte-americano. As músicas nada devem aos anteriores em termos de qualidade. Alguns exemplos: "I've Got a Crush on You" (George e Ira Gershwin), "I Wish You Love" (Léo Chauliac, Charles Trenet), "You Send Me" (Sam Cooke), "Long Ago and Far Away" (Jerome Kern, Ira Gershwin), "Makin' Whoopee" (Walter Donaldson, Gus Kahn), "My One and Only Love" (Guy Wood e Robert Mellin), "Taking a Chance on Love" (Vernon Duke, John Latouche, Ted Fetter), "My Funny Valentine" (Richard Rodgers, Lorenz Hart) e outras tão boas quanto. 


Por fim, o quinto disco, gravado só cinco anos depois do quarto, é "Fly Me To The Moon" cujas joias escolhidas têm entre outras "That Old Black Magic" (Harold Arlen, Johnny Mercer), "Beyond the Sea" (Jack Lawrence, Charles Trenet), "I've Got You Under My Skin" (Cole Porter), "What a Difference a Day Makes" (Stanley Adams, María Grever), "I Get a Kick Out of You" (Porter), "I've Got the World on a String" (Arlen, Ted Koehler), "Love Me or Leave Me" (Walter Donaldson, Gus Kahn) e por aí vai... 


Em várias músicas, Rod Stewart convidou outros artistas para um dueto com ele, como Diana Ross, Chris Botti, Chaka Khan, Elton John, George Benson e muitos outros, aumentando mais ainda a qualidade, que já é grande apenas com Rod, das canções.  


Os CDs estão à venda nos bons sites do ramo, todos juntos ou separados, bem como todos os cinco volumes estão à disposição no YouTube. 

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Século que se foi no piano de João Bittencourt

 Por Ronaldo Faria

“Cafajeste”. Essa foi a primeira palavra que saiu da sua boca. Largada no canto da sala, entre um choro e outro, gato a ronronar no sofá com manta de tafetá, Maria não teve outra reação. E lá estava, a afundar pela porta do mundo, o seu marido José. A atravessar a rua rumo ao bonde que passava lamurioso diante da catedral. No barulho dos trilhos, um tanto de etecetera e tal. Era tarde. No céu a lua transbordava de luar o dourado que caía logo ao longe. Quase à mesma distância, um piano dedilhava notas líricas e sons à surdina do amor desfeito. E até hoje ninguém disse se houve erros ou se o coração de alguém deu defeito. Foi tudo feito partituras sem cor. À dor. Talvez um tom em sustenido, uma nota acrescida em cifras sem nexo ou sentido desigual.

Houve apenas o fim de poemas, a dor de Maria, a euforia finda, a desdita inaudita. A querência de uma paixão que deitou em lençóis para se despedir de saudades e sóis. A triste carência de duas mãos sem poder tocar outras duas e a face de um incrédulo calor. Faltam as coxas, os braços a correrem o ventre, o dente cravado entre pernas a morderem um incrédulo torpor. A janela, agora aberta entre cortinas sujas e brancas, dá para o nada que se transforma em esquinas e sinas. Num canto da cena, no coreto em prelúdio, um casal troca carinhos e promessas que, na pressa, corações deixaram de acreditar. Na casa, é hora de se deitar. De esquecer tragédias e histórias de contos que fadas não fazem ou sabem mais escrever.

Afinal, sabia Maria, nem sempre onde há brisa faz-se o mar. No seu porto quieto, sem ondas a bater, marinheiros a tragarem goles de cachaça e salivas de prostitutas brejeiras, partidas e chegadas, apenas o querer imenso que não fecha a chaga. E anos se passaram, dias amanheceram e derrearam, canções se cantaram e se calaram. Cabelos brancos, pintados de dor e ranço, enfim chegaram. A pele tornou-se um grande antro de rugas e réstias de beleza. Na fraqueza das pernas, o tempo parou. E Maria, a tocar o ventre que nunca brotou, antes da morte teve ainda um suspiro de rancor. “Cafajeste”, disse em presto e tosse ao mundo que a deixou. Longe de lá, bem além-mar, José brindava ao infinito o finito gole de outro bar.
 
A ouvir João Bittencourt Apresenta Júlio Reis

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Nat King Cole em dobro

Por Edmilson Siqueira 

Uma das vantagens do CD que as gravadoras aproveitaram foi o fato de nele caberem dois LPs. Muitos sucessos antigos e que não tinham mais chance no antigo formato, acabaram virando, se não campeões de venda, pelo menos um bom negócio, inclusive para os artistas ou seus herdeiros.  


O grande Nat King Cole, por exemplo, morreu em 1965, com muitos LPs gravados, alguns considerados verdadeiras da música norte-americana. Pois em 1992, a gravadora Movie Play se aproveitou do acervo de Cole e lançou em CD não um, mas dois de seus LPs, ambos ótimos, por sinal. E ambos os LPS foram lançados em 1967, dois anos depois da morte de Nat, como coletâneas de alguns de sus sucessos.  


O CD faz parte da coleção "Two In One", uma boa ideia (mais uma, por sinal) de aproveitamento da novidade que ficou pronta para ser comercializada nos anos 1990.  

O primeiro disco colocado no CD foi "Sincerely, Nat King Cole", um título que revela toda o cavalheirismo desse pianista de jazz e ótimo cantor. Aliás, ele começou com trios de jazz, virando cantor só mais tarde, por insistência de amigos que ouviam-no cantar. Ainda bem que topou, pois o mundo ganhou uma voz ímpar, um tom grave que encantou a todos.  


Esse primeiro disco é dedicado mais à tradicional canção americana, lenta, acompanhada de grande orquestra. É um Nat King Cole em plena forma, cercado de grandes arranjadores e tendo um bom repertório à disposição. Canções como "Sweethearts On Parade" (Lombardo e Newman), "Let Tell You, Baby" (Goodwin), Let True Love Begin" (Barkan, Baron e Eddy) e "Silver Bird" (Tobias e Libby), fazem parte das onze canções que preencheram o vinil "Sincerely, Nat King Cole". Quem é fa do cantor - e basta gostar de boa música para sê-lo - vai identificar nessas faixas grandes canções muito bem interpretadas. 

O outro LP que juntaram para fazer o CD é "The Beautiful Ballads". O estilo é o mesmo do primeiro, repleto de ótimas canções e com intepretações impecáveis de Nat King Cole, aqui também acompanhado de grande orquestra e, em algumas músicas, coral. Já era uma época em que Nat havia se desvencilhado dos preconceitos que enfrentara, principalmente em seu programa televisão que durou apenas um ano por falta de patrocínio nacional, embora ele tivesse audiência suficiente para prosseguir.  

"Felicia" (Gilbert e Minucci), "Miss Me" (Ash e Marcus), "A Fool Was I" (Alfred e Adams) e "If I Knew" (Meredith Wilson) são algumas das joias que Nat King Cole gravou e que são aqui reproduzidas. 


Encontrei os CDs separados à venda por aí, mas o que tenho, da coleção Two In One é importado. De qualquer forma, há muita coisa boa de Nat no YouTube para quem quiser ouvir, inclusive as canções desses dois LPs. 

Saudade ao som de baião

 Por Ronaldo Faria Saudade, essa maldade intrínseca e seca que devora a gente em cada pedaço de ser. Que não devolve a vida que nos faz fa...