Por Ronaldo Faria
“Cafajeste”. Essa foi a primeira
palavra que saiu da sua boca. Largada no canto da sala, entre um choro e outro,
gato a ronronar no sofá com manta de tafetá, Maria não teve outra reação. E lá
estava, a afundar pela porta do mundo, o seu marido José. A atravessar a rua rumo ao
bonde que passava lamurioso diante da catedral. No barulho dos trilhos, um
tanto de etecetera e tal. Era tarde. No céu a lua transbordava de luar o
dourado que caía logo ao longe. Quase à mesma distância, um piano dedilhava notas
líricas e sons à surdina do amor desfeito. E até hoje ninguém disse se houve
erros ou se o coração de alguém deu defeito. Foi tudo feito partituras sem cor. À dor. Talvez um tom em sustenido, uma nota acrescida em cifras sem nexo ou sentido
desigual.
Houve apenas o fim de poemas, a dor de
Maria, a euforia finda, a desdita inaudita. A querência de uma paixão que
deitou em lençóis para se despedir de saudades e sóis. A triste carência de
duas mãos sem poder tocar outras duas e a face de um incrédulo calor. Faltam as
coxas, os braços a correrem o ventre, o dente cravado entre pernas a morderem
um incrédulo torpor. A janela, agora aberta entre cortinas sujas e brancas, dá para o nada que se transforma em esquinas e sinas. Num canto da cena, no
coreto em prelúdio, um casal troca carinhos e promessas que, na pressa,
corações deixaram de acreditar. Na casa, é hora de se deitar. De esquecer
tragédias e histórias de contos que fadas não fazem ou sabem mais escrever.
Afinal, sabia Maria, nem sempre onde
há brisa faz-se o mar. No seu porto quieto, sem ondas a bater, marinheiros a
tragarem goles de cachaça e salivas de prostitutas brejeiras, partidas e
chegadas, apenas o querer imenso que não fecha a chaga. E anos se passaram, dias
amanheceram e derrearam, canções se cantaram e se calaram. Cabelos brancos,
pintados de dor e ranço, enfim chegaram. A pele tornou-se um grande antro de
rugas e réstias de beleza. Na fraqueza das pernas, o tempo parou. E Maria, a
tocar o ventre que nunca brotou, antes da morte teve ainda um suspiro de
rancor. “Cafajeste”, disse em presto e tosse ao mundo que a deixou. Longe de
lá, bem além-mar, José brindava ao infinito o finito gole de outro bar.
A ouvir João Bittencourt
Apresenta Júlio Reis
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