terça-feira, 8 de novembro de 2022

Um gênio do samba

Por Edmilson Siqueira 

"Germano Mathias não é só cantor. É intérprete, é homem 'show', é engraçado, é vivo e inteligente. Lá fora - ele que não tem inibições- começaria a bater cadência de samba em caixa de fósforos que ele teria de levar daqui do Brasil; depois tocaria ritmo de samba em latas de graxa que foi como ele começou; em seguida, numa boite, ele desceria do palco ou apenas se aproximaria dos fregueses e começaria a marcar ritmo em cima da mesa, nos copos, nos pratos, com talheres, de todas as formas e maneiras." 


Esse trecho acima faz parte da contracapa do LP "Ginga no Asfalto", da gravadora Odeon, e é assinado por Henrique Lobo.  


Germano Mathias é, talvez, o mais improvável dos sambistas brasileiros. Nascido no bairro do Pari, em São Paulo, filho de descendentes de portugueses, sua vocação para o ritmo e para o samba foi descoberta aos 14 anos, quando foi convidado para tocar frigideira na bateria da escola de samba Rosas de Ouro. 


Mas não era só o ritmo nas mãos que ele tinha como dom. Sabia cantar e, quando foi revelado num programa de caça-talentos da Rádio Tupi de São Paulo, em 1955 (ficou em primeiro lugar entre 300 candidatos, cantando um samba seu feito em parceria com Firmo Jordão, já encantava com seu cantar sincopado, com divisões próprias de grandes intérpretes. 

E continua fazendo shows por aí, aos 88 anos, ele que é de junho de 1934. Ele gravou 14 LPs, mais alguns "singles" em 78 rpm ou mesmo em "compacto simples". Fez alguns sucessos e também foi relegada ao ostracismo quando o samba foi meio esquecido no Brasil. Mas voltou. 


O disco dele que tenho é uma cópia fiel do LP lançado em 1962. E é uma delícia. Sua interpretação parece até ser didática, mas é envolvente pela alegria, pela firmeza e pelas próprias letras dos sambas, que nada ficam a dever aos melhores sambas cariocas. Mas é na divisão sincopada, na qual Miltinho era mestre, que Germano Mathias deita e rola. Ele sai da melodia com a mesma facilidade que entra, sem perder o ritmo. Coisa de gênio. 


Das 12 músicas que compõem o disco, destaque para "Maria Espingardina" (Jorge Costa e José da Glória), "O presidente jurou" (Sereno e Germano Mathias) - não se trata de crítica política, o presidente no caso é da escola de samba, que recebe um esculacho porque não cumpriu as juras e a escola vai sair mal na avenida - "Desigualdade" (Germano Mathias) e "Baile do Risca Faca (Jorge Costa e Durum-Dum-Dum) outro sucesso, um samba de gafieira ao qual Germano enriqueceu com sua ótima interpretação. 


O LP e o CD ainda estão à venda por aí, nos bons sites do ramo e o disco inteiro pode ser ouvido no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=uJRJ5K0QbI4 . 

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Ao Arrigo Barnabé

 Por Ronaldo Faria

Loucura no invólucro de que pouca coisa falta. Mais uma lata só. Que dó...

Metrópole que pode ser a acrópole do fim de tudo. Paulistana sanha assanhada do drama. No meio de tudo, no todo, a briga entre o desejo e o ensejo do passado de muito atrás. Rojões ao léu, aos ouvidos do menestrel. Um quarto de hotel desnudo a granel. O amor entre o louco e Jezebel. O mistério se faz misterioso no fel. No mundo paulistano, melhor cruzar os meandros da metrópole e da acrópole do que ser Gardel.

Sejamos parcimoniosos com os corpos em ossos. Possamos possuir o que a noite nos dá: loucuras, clamídias, canduras. Um tanto de futuro e outro tanto de volátil urro. Brincadeiras e asneiras ao nada. Como diria o poeta, orgasmo total. Como a bola certa de um qualquer sobre o Nadal. Uma rena a fugir quando Papai Noel grita que está na hora do mais próximo Natal.

Nos façamos madrugadores de dores e odores. Deixem-nos pagar a conta ao garçom que sorri sem dentes como se não tivesse antecedentes de quem antes jogou a bandeja na cara de quem não a deseja ou veja. Ao prato, sabor de veneno. Cantilenas jogadas ao vento e ao ventre. Como o poeta embriagado e largado no imbróglio entre a cena de Sampa e o passado de samba, fez-se o derradeiro drama.

sábado, 5 de novembro de 2022

Bossanoveando

 Por Ronaldo Faria

Bossa Nova a tocar no piano virtual. Entre a realidade e o desejo, um sinal. Uma praia distante, sangrada de mares imaginários e verdes matas madrigais e infinitas, fatais. Morros diversos que perfazem o sol que cai detrás deles em poemas e versos, todos solares e prestos. E tem a morena a andar pela areia quente cheia de pedaços de suores e cheiros dos amantes do fim do dia. Lá longe, defronte entre o nada e a mentira, tem uma tira de tragédia antecipada, nuvem dissipada, carreira cheirada pelo louco que dorme solitário e derradeiro.

No mais, um entardecer obscuro e soturno, um cálido desaguar de olhares às coxas das moças, um esquálido propor de amor e dor. Casais a se acasalarem nos corpos frágeis e ágeis que correm pela calçada da zona que virou o sul. E se azucrinou de porres voláteis e perdidos entre dedos e medos que percorrem lugares escondidos entre biquínis mínimos e mimos que o bronze do sol derrete em dias que dão no que der. No beijo entre línguas, o cabelo negro do rosto branco da mulher. A cena, pano final do ato derradeiro qualquer.

No alto do morro, de dois irmãos, uma bananeira se joga ao céu de pedra e perdão. Uma luz aqui e outra lá se acende à chegada do escuro que esconde as ondas abaixo para o fim do mar. No tudo, em turbilhão e canção, fica o barulho do que quebra quieto e se deita entre as rochas e o oceano cadente e profano. Ao fim do horizonte, o desmonte. No quadro que se enquadra aos olhos, a volta de barcos e navegantes cheios de marejar e vagas espumas que esbranquiçam a pintura que se emoldura à gasta rotunda que volteia brilhos e trilhos nunca alcançados.

No mar, no fundo mais fundo e profundo que se faz ou fará, o desejo do amor se desfaz fugaz. Meras palavras ao vento mormo que bate a noroeste. O começo de uma epidemia que vem sem peste. Que se veste de peles entrecortas de desejos e recortadas de delírios que febre nenhuma faz secar. Como féretro regado a berimbau e segredos, degredos, ensejos e seixos. Ladeiras serpenteadas de paralelepípedos, subidas e descidas. Canções acrescidas de formicidas e sinais que nem o maior dos arqueólogos saberá decifrar à desmedida sina...
 
(Ao som da Cia. Estadual de Jazz)


sexta-feira, 4 de novembro de 2022

A guitarra jazzística de Wes Montgomery

Por Edmilson Siqueira 

Ele começou a tocar aos 20 anos e morreu aos 45. Mas sua obra foi tão importante que ele é comparado, em termos de influência do seu estilo de tocar guitarra, a Pat Metheny e George Benson, dois gigantes do jazz. Trata-se de Wes Montgomery, nascido em 1926 em Indianápolis.  


Wes tocava guitarra de uma maneira pouco ortodoxa, já que usava o polegar em vez da palheta, bem como um modo único de tocar em oitavas ou em block chords, o que tornava a sua guitarra mais expressiva e melodiosa. Sua extrema liberdade e fluidez no instrumento chamaram, desde o início, a atenção de músicos como Cannonball Adderley, e em 1960 lhe valeriam o prêmio New Star da revista DownBeat. 


Tenho apenas um disco dele e, por sorte é uma coletânea da série Jazz Master, da EMI, lançado em 1997. Logo de cara, "Billie's Bounce (Parker), gravada em 1957, anuncia um jazz pegado e esperto, com um conjunto completo, de piano, bateria, contrabaixo, sax e, claro, a guitarra de Wes com sua agilidade natural. Infelizmente o disco não tem créditos dos músicos, todos ótimos, que fazem parte do conjunto.  


A segunda faixa traz "Leila", do próprio Montgomery, também de 1957, uma balada bem romântica onde a guitarra de Wes prefere o improviso, deixando o solo da melodia para os metais.  

"Stomping' At The Savoy, (Sampson, Webb, Goodmann e Razaf) serve também para Wes e seu grupo mostrarem toda agilidade e talento na decantação de um tema de jazz. Uma aula, com destaque para o piano e o vibrafone.

"Stranger in Paradise" (Robert Wright e George Forrest) de 1958, do musical "Kisnet", tem uma versão rápida do conjunto. A seguir vem outra de Montgomery, "Renie", também de 1958, onde piano e contrabaixo conversam na introdução, anunciando a guitarra suave de Wes. 


"Wes's Tune", também de Montgomery é a sexta faixa, com uma melodia que ficou famosa e foi regravada por muitos grupos de jazz.  


Já a sétima faixa traz um clássico, "Summertime", de dos irmãos Gershwin e Heyward. Sem mais delongas, Wes entra na melodia com sua guitarra, com piano, contrabaixo e bateria de acompanhamento, deixando todo o improviso inicial que a música sugere aos jazzistas para o piano. Mas volta depois par solar e encerrar em grande estilo. Um show a interpretação de todos, desse clássico que extrapolou o teatro - foi escrita para a ópera "Porgy And Bess" - e ganhou o mundo como uma das músicas mais gravadas de todos os tempos. 


"Montgomeryland Funk" é o nome da oitava faixa. A faixa mais alegre do disco, com introdução de metais para a guitarra de Wes ganhar corpo e passear num longo improviso.  


Outro clássico, "Bauble, Bangles & Beads", também de Robert Wright e George Forrest, aparece na nona e penúltima faixa. A lenta melodia parece ter sido feita à perfeição para a guitarra de Wes. Depois de seu solo, quem assume os trabalhos é o vibrafone num bonito arranjo, preparando a reentrada da guitarra em grande estilo. 


A última faixa é "Hymn For Carl" (H. Land), que segue esquemas anteriores, onde os metais e o piano se incumbem de apresentar a melodia inicialmente, para bem à frente, deixar a guitarra assumir o comando. Outro show do grupo. 

Trata-se de um disco muito bom para os amantes do jazz, pois, além do grande talento de Wes, ele se cercou de músicos extraordinários, realizando impecáveis gravações. O disco que tenho é importado, mas você pode encontrá-lo à venda em alguns sites da internet. E pode ser ouvido inteiro no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=ZiVSH_KmgfM&list=OLAK5uy_m2K5ofRbRWkBD8ZwQuSPuiEzKl5QY90v0 . 

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

À vila de lobos

 Por Ronaldo Faria

O trenzinho do caipira vem devagar, entre trilhos e trilhas sobre ferros e madeira queimada até o maior negror da fumaça que foge furtiva pela chaminé, margeando morros e miragens. Num pedaço do despedaçado cedro, misturado ao credo do maquinista de que um dia irá chegar, sobe o cheiro de vida e morte.

No campo o Saci Pererê pula e se esperneia, serpenteia difuso e confuso sem saber o que dizer. Do seu cachimbo sai um lamento que o vento destrói em brisas que chegam das terras molhadas do além-mar. No lugar, um ritmo transversal entre o que pode ser o bem e o mal. Um lumiar de incertezas certas e presenciais.

Aos acordes do violão tocado em sofreguidão, o lamurio do poeta que se vê profeta da própria morte, à sorte. Um desbragado trago, um exaurido afago, uma ignóbil desfaçatez ao tocar a tez da amada, calada. De Amsterdam, o sabor em prelúdio que os acordes acordam como fossem um galo a cantar seu estertor.

Na viola, o mundo vira mundão no tanto de distância que arrodeia. Não distante, o luar se engrandece de passarinhada a buscar seu pé de árvore dormida. O gado geme de desejo de ruminar e a pajelança morre à chegança do calar. Entre os lábios grudados, os mistérios cansados e os corpos largados.

No seu canto pequeno e sem lampião, o poeta dedilha a parelha que existe entre a pipa que voa e a saudade que avoa. Aos poucos, o pouco que ficou ressoa no silêncio pênsil entre a solidão e a canoa. No rio, o barquinho desce ao sabor do seu mundo, das correntes e do que for à toa. Em meio a tudo, o peixe até destoa.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Um cantinho, um violão e um violino

Por Edmilson Siqueira 

Um violinista e um violonista se juntaram para gravar um disco lá nos longínquos anos de 1974 e de 1977. Como ambos eram geniais, o disco se chamou "A Grande Reunião". Em 1974, tocaram os dois juntos, com bateria e contrabaixo e, em 1977, foram acompanhados, em uma das músicas, por uma grande orquestra.  


O violinista era ninguém menos que o francês Stèphane Grappelli e o violonista era o nosso internacional Baden Powell, o que, claramente justifica o nome do disco. E ambos foram sobejamente famosos no mundo do jazz e da bossa nova nos anos em que viveram de suas artes. Grappelli morreu em 1997 e Baden em 2000. A obra de ambos é eterna e, tenho certeza, continuará sendo apreciada e ouvida no mundo inteiro enquanto houver ouvido sensíveis à boa música. 


Foram acompanhados no contrabaixo por Guio Pedersen, na bateria por Pierre-Alain Dahan e na percussão por Clément De Waleyne e Jorge Rezende.


Não sei quando foi lançado o CD que tenho há muitos anos, mas, pesquisando informações sobre o disco, descobri que há um segundo volume, sinal que a gravadora francesa que produziu o trabalho, gostou do resultado.  

A primeira faixa traz música do baiano Gilberto Gil, "Eu Vim da Bahia", um dos seus primeiros sambas. Aliás, sobre ele, tenho uma historinha interessante: Gil trabalhou na Gessy Lever em Valinhos, nos anos 1960, pouco antes de se destacar no Fino da Bossa e desistir da carreira de administrador de empresas para se dedicar (ainda bem!) totalmente à música.  Minha irmã mais velha trabalhava lá, acho que na mesma seção, tanto que ela contava que ele sempre cantava umas músicas no intervalo do almoço para a moçada. Um dia ela apareceu com uma letra de música em casa e disse: "É do Gilberto Gil, um colega lá da Gessy".  Pois era justamente "Eu Vim da Bahia", datilografada pelo próprio. Infelizmente nem ela nem eu guardamos a folha, mas da história me lembro muito bem.  


A segunda música inaugura uma seleção de clássicos da MPB: "Meditação", de Jobim e Newton Mendonça, ainda só como violão, bateria e contrabaixo acompanhando o solo do violino de Grappelli.  


A única música de Baden no disco vem a seguir. Trata-se de "Berimbau", parceria com Vinicius de Moraes, o mais famoso afrosamba da dupla. É a única que tem um acompanhamento orquestral. 


A seguir, "Desafinado", também de Jobim e Newton Mendonça, é aberta com uma introdução ao violino que não lembra a melodia, própria de um jazzista como Grappelli.  

"Samba de Uma Nota Só", de Jobim, abre o "lado B" do disco original. A melodia simples de Jobim ganha ótimo improviso de Baden e também de Grappelli, e acaba tendo 5 minutos e 42 segundos, a terceira maior do disco. 


O sucesso de João Gilberto, "Isaura", de Herivelto Martins e Roberto Roberti, também entrou na "Grande Reunião" na forma de um sambinha lascado, que diverte quem ouve. 


"Amor em Paz", de Jobim é a penúltima faixa do disco. A belíssima melodia do nosso maestro soberano desliza pelo violino de Grapelli e pelo acompanhamento inicial de Baden com a nobreza que lhe é peculiar. O disco todo é ótimo, mas essa faixa acaba ganhando ares de especial pela qualidade da interpretação dos dois instrumentistas. 


Por fim, quase uma homenagem à terra dos autores de todas as músicas do disco, Grapelli e Baden interpretam "Brazil" que foi o nome que "Aquarela do Brasil" recebeu ao iniciar sua turnê internacional ao fazer parte da trilha de um desenho animado da Disney, onde estreava o "personagem" Zé Carioca, criação baseada no que Disney entendeu ser o o malandro da cidade do Rio de Janeiro. Mas é um dos maiores sucessos de todos os tempos da nossa MPB.


Tanto do CD quanto o LP ainda são vendidos por aí, nos bons sites do ramo. No YouTube dá pra ouvir não só o volume 1 como o 2 também, mas o segundo tem apenas duas músicas brasileiras. O link do YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=SxRo_R9bz-8 . 

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...