Por Edmilson Siqueira
Gil e Jorge
Ele estava escondido no meio da estante de CDs, um trabalho único realizado em 1975 por dois dos maiores compositores e cantores brasileiros e agora tem estado em primeiro lugar no hit parade lá de casa. Gil e Jorge eu tinha em vinil. Até sei onde desapareceu: ficou na casa de um irmão ou cunhado de um amigo chamado Pardal. Acho que foi uma festa, eu levei o disco, esqueci lá e nunca mais voltei para apanhar. Por quê? Sei lá.
O fato que interessa é que muitos anos depois ele foi
reeditado em CD e eu fui um dos felizes compradores. Saiu numa série chamada,
muito a propósito, Colecionador. A impressão que se tem é que colocaram os dois
geniais músicos dentro do estúdio e, sem ensaio, eles começaram a cantar,
deixando que o talento de cada um se encarregasse de tudo. E não deu outra.
O CD começa com uma oração, Meu Glorioso São Cristóvão, de Jorge Ben (naquele época ele ainda não era Benjor) que, parece, o Gil não sabe a letra. Vai repetindo tudo o que Jorge canta, em 8 minutos de gravação. Depois vem aquele suingue que Gil fez em Londres e que por aqui ninguém entendeu, Nega, com 10 minutos de música e improviso de deixar gringo babando. Outros 10 minutos são ocupados por Jurubeba, do Gil também, uma brincadeira com todas as qualidades medicinais da planta, num ritmo alucinante.
Quem Mandou, de Ben, é “curtinha”: apenas 6 minutos e 46
segundos desse ‘sambalada’ romântico, delicioso. Depois temos 12 minutos do
clássico Taj Mahal, talvez a mais elaborada do disco, com percussão e
contrabaixo. Depois vem outra de 6 minutos: Morre o Burro Fica o Homem,
composição bem ao estilo de Jorge Bem, seguida de mais uma brincadeira de Gil,
Essa é Pra Tocar no Rádio, que parece ter sido feita no estúdio mesmo, já
prevendo que o disco jamais cairia nas graças dos programadores de rádio. Ainda
mais que os dois não faziam parte dos esquemas de mutretas que imperavam
(imperam?) nas emissoras. O clássico Filhos de Ghandi também mereceu 12 minutos
de pura magia nas vozes e violões dos dois.
E, para encerrar, um sarro. Pois é, a música chama Sarro
mesmo e, para espanto geral, só tem 1 minuto e 23 segundos. É apenas um batuque
com Gil improvisando uns sons, encerrando essa verdadeira jam session tupiniquim, na voz e no talento de dois dos maiores
representantes da MPB que já aportaram por esse planeta musical chamado Brasil.
O samba não morre
Como o verão anda meio reticente – talvez nesse domingo ele já tenha se instalado por aqui, mas quando escrevo, 6 dias antes, as manhãs ainda têm um arzinho frio e nas noites não dá para ficar no terraço bebericando uma Bohemia – eu vou tentando melhorar o clima ouvindo um sambista da gema, desses que fazem samba como se conversassem com a gente, tal a fluidez da melodia, a precisão do ritmo e a beleza das letras. Estou falando de Moacyr Luz e seu último CD, Samba da Cidade, que anda em primeiro lugar na parada de sucesso lá de casa.
Moacyr está com 45 anos (ele é de abril de 58), carioca e cada vez melhor. Também pudera: além do talento para fazer samba, se alia a parceiros como Aldir Blanc, Martinho da Vila, Paulo César Pinheiro, Nei Lopes e Luiz Carlos da Vila. Às vezes inverte a proposta: faz a letra e Wilson da Neves, por exemplo, faz a música. E tome samba das melhores lavras.
O CD flui calmo, sem arroubos de avenida mesmo quando
canta, com Martinho, a querida Vila Isabel (Afilhada da Portela /Olhei pro céu
e vi /Jaburu, Waldir, Monarco/Diz como te amo Vila Isabel). Ou então quando
homenageia o grande Lan, numa parceria com o genial Aldir Blanc. Lan, um mito
entre os desenhistas brasileiros, é retratado pela fina pena de Aldir como num
samba-enredo que acaba se tornando uma homenagem a muitos outros artistas que
passaram pelo traço de Lan.
Um dos pontos altos do CD é um samba de Moacyr com Paulo
César Pinheiro, onde o tema é ninguém menos que o velho Pixinguinha. Chama-se
Som de Prata e tem um arranjo que mistura na flauta temas do genial Pixinga.
Algumas das músicas nos remetem às origens africanas, como uma das
classificadas num festival da Globo – Eu Só quero Beber Água – ou então à
saudável e antiga malandragem carioca, como em Briga de Família, um delicioso
samba de costumes.
Moacyr Luz é uma dessas provas de que o samba agoniza,
mas não morre. Nesses tempos em que o samba começa a retomar seu lugar –
ocupado por uns tempos pelos nefandos pagodes, hoje restritos a programas de
televisão classe C – é muito bom saber que tem gente que leva o samba à posição
que ele merece, num trabalho sério, honesto e que não tem como único objetivo a
caixa registradora da gravadora e os bolsos dos “artistas”. Moacyr Luz faz
samba e cultura. Daqui a cem anos, ninguém vai se lembrar dos tchans da vida.
Mas Moacyr é presença obrigatória em qualquer enciclopédia da música popular
brasileira.