sábado, 27 de julho de 2024

Sentença da solidão com Renato Teixeira

 Por Ronaldo Faria


A casa de fazenda descansa muda e seca à vida que habita a secular sequência entre o tempo de entranhas marcadas a chibatadas e o recomeçar. Parece um quadro de pinceladas malfeitas a se esgueirar no tempo que a cada dia a Terra dá. Como a esquecer da dor, caminho entre os portos e a resistência daqueles que não foram mortos até o interior do lugar que lhes iria profanar. Na prosa que já não proseia, a teia da aranha apanha das intempéries a sobreviver.
-- Rosinha, você casa comigo? Te prometo cama da boa, de palha, e te encher de filhos e filhas pra alegrar a casa. E juro que vamos criar todos pra serem donos desse mundão que Deus, do alto, vê.
-- Sei não, Honório. Emprenhar um monte de vez, dar de mamar, desmamar e dar de mamar outra vez. E se a parteira um dia não puder vir? Quem vai vencer as léguas até a cidade para fazer a criar sair?
-- Vou ter uma charrete rápida, colocar uns quatro cavalos pra guiar. Nada de carro de boi, com canga pra segurar. Garanto que a gente chega rapidinho no médico que der pra pagar. Senão, a Dona Vitória vai ter que estar a esperar. Ela nunca falhou com as mulheres daqui.
-- Honório, você vai me desculpar, mas não dá pra arriscar. O bucho é meu.
-- Rosinha, então você casa e a gente só deita quando você souber que não vai dar cria. Mas eu queria ser pai de uns dez, no mínimo. Filho é a certeza de que a gente continua vivo mesmo depois de morrer.
-- Honório, deixa de pensar besteira. Eu é que vou ter de parir a vida inteira.
Desacorçoado, o rapaz monta no alazão e sai em disparada pela estrada. No céu, a lua cheia recheia de visão o caminho até o lugarejo onde já tem luz de eletricidade a pipocar. Ele para o cavalo cansado e suado diante de um cocho, amarra o bicho e entra na casa que a luz vermelha faz cenário à beira. Se Rosinha não o quer, uma outra mulher do mundo há de querê-lo. Afinal, para quem está só, qualquer quirela de amor deve servir.
-- Honório, você por aqui?
Telma, vinda da Capital, dona do bordel, cumprimenta o visitante raro como fosse alguém que está lá todos dias, noites e tempos.
-- Dona Telma, Amora está aí?
-- Está com cliente. Mas esse é rápido. Parece andorinha. Logo ela volta pra sala. Quer tomar uma canjebrina?
-- Pode descer uma e mais outra.
-- Jeremias, desce uma da boa pro Honório! E já manda duas.
Enquanto espera por Amora, ele vê os casais se encontrarem, se beijarem, entrarem nos quartos ou sair no galope, gritarem ou sussurrarem na noite que está a brilhar no luar. Da sua cabeça, porém, Rosinha não sai. Estava tudo bem para virar semente diante do padre e depois chegar o amém. Mas qual, ela prefere virar freira ou enjeitada a ter dez ou doze filhos pra botar na estrada.
Quando Amora deixou o homem que demorou nem tanto tempo, ele a pegou pelo braço, levou para o quarto e fez tudo o que podia até quando o sol resolveu dizer para a lua ir buscar seu quintal. Amou, desamou, beijou, xingou, esbravejou, fez súplicas de amor, promessas até de altar. A moça, como já estava acostumada às bravatas dos seus amantes delirantes e errantes, bêbados e largados, apenas dizia a tudo que sim. Quando o gozo findasse e a realidade retornasse a Honório, ela sabia que tudo seria um sono demente a suspirar. Quiçá, o roncar de um boiadeiro.
Quando a manhã raiou, não rara em demora nesses tempos de agora, onde tudo parece já ter acontecido outrora, Aurora acorda Honório. “Já está na hora de pegar estrada boiadeiro.” Com seu pensamento a sorver o que ainda resta de entranha, Honório se levanta, lava o rosto na pia que pinga e pega seu rumo. Malvado, o cavalo amigo, está lá, ainda selado, a lhe esperar. Ele pede desculpas ao animal e toca a espora para onde for o destino final. Numa curva da estrada de terra, contudo, o cavalo trupica e cai desalmado. Malvado depois consegue se levantar, mas Honório bate a cabeça numa pedra grande de danada. Sangra até morrer na última morada. É encontrado horas depois por vaqueiros e sua vaquejada. Enterrado no local, com uma cruz bonita, colorida de azul e bem cortada, não teve tempo sequer de saber que Rosinha decidiu se mudar pra Capital e virar professora de maternal.

Zé dá o Tom final

 Por Ronaldo Faria “Em quantos mililitros parar? Não enquanto existir espaço vago e vazio nalgum lugar e banheiro altaneiro em rota segura n...