terça-feira, 23 de julho de 2024

Adeus 2023

 Por Ronaldo Faria


-- Vade retro, 2023. Vá para o limbo da eternidade da história e não volte nunca mais!
-- O que é isso, Demerval? Foi tão ruim assim pra você?
-- Cê tá louco? E pra você, foi bom?
-- Sei lá... acho que não cheirou e nem fedeu. Foi um ano a mais.
-- Então, parabéns. Enfim achei alguém que curtiu esses 365 excrementos diários.
Demerval tinha até do que reclamar. As chuvas famosas de início de ano haviam derrubado o barraco construído com tanto esforço de comprar material a prazo, surrupiar de outras obras, improvisar quando o cobrador vinha à sua moradia cobrar as prestações atrasadas. Mas não foi só. Maria, cansada de ser mulher de verdade, mesmo sem se chamar Amélia, resolveu em agosto, mês do desgosto, deixá-lo. Fernandão Pé de Mesa conquistou a morena com promessa cama, casa de alvenaria, comida e noites de gozo só.
Antes, porém, lá por março, como a falta de um cadarço, Demerval havia tropeçado no trabalho. Tinha faltado quatro dias seguidos. Deu por esquecido, tentou dizer que teve amnésia profunda advinda de uma queda soturna, mas o bafo de cachaça não convenceu o mestre de obras. Rua sem direito nenhum. Durante uns dias fez bico de segurança numa boate em Copacabana, vendeu capinha de celular na Rua do Ouvidor, sentiu dor no coração, mas curou no centro de umbanda que funcionava no Méier. Depois, como tudo que tem que piorar tem sempre um depois, depôs na 13ª DP sobre a agressão contra um turista boçal que tinha chamado ele de resto de Carnaval. “Seu delegado, mexeu com a minha Mangueira ou meu Flamengo, eu não tenho sustento na mente.” Para seu azar, o delegado era vascaíno e portelense e levou três meses no xadrez.
-- Você acredita que o pessoal da facção queria que eu fixasse um posto na comunidade. Eles diziam que eu tinha personalidade. Mas, pra quem já fodido, não vale a pena se foder e meio.
Quando saiu da cana, Demerval tentou vaga de flanelinha, apontador de bicho, pintor de parede. Acertou em alguns trampos, mas por pouco tempo. Chegou em novembro já meio mais pra lá do que pra cá. Para ele, sobrou um cartaz de “compra-se ouro e prata” no peito, em plena Avenida Suburbana, agora Dom Hélder Câmara. Dava para o trem e uma gelada na promoção. Vez ou outra vinha um extra como camelô cobrindo a falta de um parça. Ia se virando como dava. Mas Demerval sabia que o pior estava por vir. Dezembro era o seu mês de angústia. Neste, o Papai Noel filho da puta nunca tinha lhe dado nada em infância. Não seria agora, num 2023 tão morfético, que um velhinho iria lhe dar refresco.
-- O meu velho, dia após dia me enchia de porrada. Você acha que outro velho, que mora lá no Polo Norte, ia me trazer sorte?
-- Porra, Demerval, também não é assim. Eu conheci o Seu Vitalício e ele até que era bacana. Tirando bater na Dona Carola às vezes e chegar bêbado em casa sempre, tinha seus momentos de bom pai.
-- Cacete, tu tá aqui pra conversar ou pra me sacanear?
-- Desculpa, foi ruim.
Mas dezembro, quando vagas pululam no comércio e outros afins, Demerval acreditava que seria um mês melhor. Correu o comércio da Vila da Penha, Madureira, Honório Gurgel e Vicente de Carvalho. Ao fim das corridas, a mesma palavra: “caralho!” Ninguém tinha vaga pra nada. Nem bico aleatório. Por fim, conseguiu um trampo passageiro num crematório. “Fica aí que nesses fins de ano sempre aumenta a procura”, disse o gerente a lhe mostrar os macetes da fornalha. Agora, na folga, no boteco do Carlão, com as brejas descansando na mesa e o amigo do lado, um resto de porção de torresmo a servir de aeroporto das moscas em voos rasantes, Demerval só pensa no próximo Carnaval. Um companheiro de agruras já lhe prometeu vaga na Cidade do Samba para ajudar na montagem dos carros alegóricos da Verde e Rosa.
-- Em 2024 eu tenho a certeza de que as coisas vão mudar. Sabe que eu estou até de prosa com a Dora. De repente, ela aceita ir pro meu cafofo novo. É pequeno, de três cômodos, mas dá pra dois corpos. Se ela não se incomodar de morar meio longe e ter de ouvir o trem passar, dá rolo. Eu sei que no próximo ano a coisa vai virar. Como Exu Bará vai ser o regente, quem sabe não dá jogo. Vai ter que dar.
Na rua logo do lado duas Patamos passam chutadas e rápidas. Deve ter bala sobrando logo ali perto. Mas deixa pra lá. “Eles que são PMs, milicianos e traficantes que se enfrentem e se entendam.” Para Demerval, já quase na virada do ano, o importante é esquecer o que não foi e torcer para aquilo que deve vir ou virá. O Réveillon vai ser no Piscinão de Ramos, com direito a show no palco e fogos de artifício. Com Dora, claro. Afinal, a vida tem a mágica de transformar bosta em ouro. Basta crer que acreditar é ainda o maior tesouro.
-- Carlão, manda a saideira de 2023. Melhor, desce logo três pra rimar com este ano que vai arder no calor do inferno. Aliás, que calor do cacete que está nesse mundo.
Suando como camelo, Demerval espera logo mais não ser uma cifra a mais nas pesquisas dos ausentes.
 
(Ao som de João Bosco)

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