quarta-feira, 14 de agosto de 2024

O Maestro da Rua

Por Edmilson Siqueira

 

Em 2001, Zezé e eu realizamos nossa primeira viagem internacional juntos. Ela já conhecia Londres, onde havia passado um ano fazendo um curso de inglês bem antes de me conhecer. Em ternos "internacionais" eu tinha ido uma vez, de ônibus, até o Paraguai, naquela cidade da fronteira para comprar muamba... bem, não pode ser chamada de viagem internacional...
Mas em 2001, tomamos coragem, compramos as passagens, reservamos hotéis, compramos alguns travellers cheques (alguém aí se lembra do que era isso?) e partimos para a Europa. Roma, Paris e Londres (lira, franco e libra eram as moedas, o euro só viria no ano seguinte, a libra continua até hoje) era o nosso roteiro. Um mês longe de casa.
Mas como esse não é um site de turismo, vou logo ao assunto. 
Passeando por Londres, mais exatamente no Vitoria Embankment, um conjunto cultural, ao lado do Tâmisa, inaugurado em 1951 pelo então príncipe, hoje rei, Charles, encontramos ali, embaixo de uma árvore, um senhor numa cadeira de rodas, tocando um clarinete suave e bonito. Com um equipamento que reproduzia um acompanhamento simples, ele fazia solos e improvisos jazzísticos. Paramos pra ouvir. Numa pequena prateleira no chão, vários CDs. Chegamos mais perto e vimos que eram discos dele, à venda ali. 
Timidamente, tentei levar um papo, disse que éramos do Brasil e se ele tocava alguma coisa de Jobim. Antes de dizer se tocava ou não, disse que tinha uma relação muito grande com o Brasil: era casado com uma brasileira. E, claro, Jobim estava no seu repertório, como provou logo depois tocando "Wave".
Seu nome artístico e apelido era Teddie. Como explica o texto na contracapa do CD, Edward "Teddie" Hook nasceu na pobreza, em 1924 (se estiver vivo - não encontrei referência alguma a ele na internet - estará completando 100 anos) e foi criado num orfanato. Seu talento para o clarinete foi logo descoberto e assim que pôde foi trabalhar profissionalmente em bandas de baile e, depois, em shows em cabarés. Logo se tornou um comediante de sucesso e multinstrumentista. Tinha tudo para uma carreira de sucesso, mas em 1980 sofreu um grave acidente de carro que o levou, depois de um bom tempo de recuperação, a depender de uma cadeira de rodas. Essa recuperação teve a grande ajuda de Tercila, sua mulher, a quem o texto nomeia como "uma charmosa brasileira". 
Da descoberta toda ali no Embankment, trouxemos um CD dele que se chama, mui propriamente, "Pavement Maestro!" ou "Maestro de Rua" numa tradução livre.
Acompanhado de piano, bateria e contrabaixo, Teddie desfila tranquila e talentosamente com seu clarinete pelas 15 faixas do disco, das quais duas são de sua autoria: "Big Brown Eyes" e "Coração do Amor", assim mesmo, em português, com certeza dedicada a Tercila.
Pelas outras faixas descobrimos clássicos do jazz como "Unchained Melody", "Let's Fall in Love", "Alfie" e "Satin Doll"; um clássico - "Bolero" de Ravel - e outras canções menos conhecidas, mas todas agradáveis de se ouvir. 
Infelizmente, o CD não pode ser encontrado por aí. Talvez a venda sempre tenha sido feita por ele mesmo, ali no parque ou em apresentações em outros locais, direto para seus fãs antigos ou eventuais que, como Zezé e eu, nos encantamos pela qualidade de sua música, pela doçura de sua conversa e, depois, passamos a admirá-lo ainda mais pelo que sofreu e superou. Mesmo numa cadeira de rodas, continua distribuindo, a quem quiser ouvir, seu talento ao som de um clarinete muito bem tocado, como um maestro da rua.

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