terça-feira, 30 de julho de 2024

Milton, com toda nobreza

Por Edmilson Siqueira


 
As últimas apresentações de Milton Nascimento durante sua despedida dos palcos me despertaram um pouco de pena do gênio mineiro. Embora todas a qualidade de sua música estivesse ali presente, Milton se esforçava para cantar do jeito que já cantou. E quem ouviu, por décadas, o brilho incomparável de sua voz, não poderia ficar totalmente feliz com a performance de um grande cantor que, agora já com idade avançada, não era o mesmo, nem poderia ser. Há poucos Jagger e Matogrosso no mundo. E mesmo o brasileiro faz ótimos shows poupando agudos e danças pelo palco.
Claro que o fato de a voz de Milton não ter o mesmo brilho de forma algum empalidece sua carreira. O último ano em que ele passou pelos palcos foi uma despedida sincera, de gala eu diria, relembrando uma obra imortal.
E como não teremos mais aquele mesmo Milton ao vivo e como dificilmente ele vai gravar novamente, o jeito é curti-lo indiretamente, através de grandes artistas que não só preservam sua obra regravando-a, mas fazendo de forma magistral.
É o caso do CD que está rodando agora no meu Panasonic: "Milton - Por Monica Salmaso e André Mehmari". Ouvi uma música acho que foi no YouTube e nem esperei terminar para encomendar o bichinho.
Quando chegou foi um completo deleite.  
Monica acho que dispensa apresentações. É uma das melhores cantoras brasileiras atualmente, com um repertório e parcerias irrepreensíveis. 
André Mehmari é pianista (toca marimba de vidro também no disco). Além disso é compositor e arranjador. Dois parágrafos da Wikipedia bastam para deixar qualquer um de boca aberta: "Suas obras foram executadas pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), Orquestra Petrobras Sinfônica e Orquestra Amazonas Filarmônica, dentre outras importantes formações brasileiras. Na música popular, gravou discos com o bandolinista Hamilton de Holanda e cantora Ná Ozzetti.
Em 2010 assinou contrato com um dos mais importantes selos italianos de jazz, EGEA, que representa o artista na Europa e para o qual vai lançar cinco discos solo. O primeiro deles ("Miramar") foi gravado no Oratorio Santa Cecilia, no centro histórico de Umbra (Itália) e já foi lançado nesse país."
Ou seja, o cara é muito bom.  
E, além dele, há ainda a participação especial de Teco Cardoso tocando flauta baixo e sax soprano.
O resultado dessa união é um disco que dá prazer em ouvir do começo ao fim, colaborando para tanto as incríveis interpretações de Monica, o piano meio mágico e André e o acréscimo em duas faixas, do colorido do sopro de Teco.
"A Lua Girou", canção que inicia o disco, composta só por Milton, é quase uma oração pedindo a devida proteção aos deuses da música para abrir os trabalhos. O casamento entre a voz de Monica e o piano de André é perfeito.
Após o longo respiro da primeira faixa, o piano se encorpa a seguir para "Noites do Sertão, com música de Milton e singela poesia de Tavinho Moura.  
A terceira faixa é uma dessas que se tornaram clássicas, não só pela beleza da música e da letra, mas pelo conjunto apontar para um tempo em que não vivíamos sob o tacão da ditadura militar. "Saudades dos Aviões da Panais" ou "Conversando no Bar", de Milton e Fernando Brant, é dessas músicas que, a gente tinha prazer de dizer quando Milton a lançou, enganaram os censores do regime de exceção que a tudo proibiam.
Nova canção só de Milton, "Morro Velho" dá sequência às pérolas que Monica e André nos presenteiam. Interpretação no ponto certo, com o mesmo clima que Milton criou lá atrás e que ainda retemos na memória.



A quinta música une as genialidades de Milton e Caetano. À melodia rápida e à letra complicada, mas com todo sentido, é feita a leitura de um trecho do conto homônimo de João Guimarães Rosa, do livro "Primeiras Estórias". Fica tudo muito bonito e adequado, pois André deixa o piano para tocar marimba de vidro, à qual é acrescentada a flauta baixo de Teco Cardoso.    
"Canção Amiga" é o resultado dessas uniões mágicas que só a música e a poesia podem proporcionar. Um poema de Carlos Drumond de Andrade musicado por Milton, se transforma em sons imaginários que agarram as palavras do poeta e as torna mais belas ainda.
A faixa seguinte não é de autoria de Milton e sim da artista chilena Violeta Parra. Está no disco não só por sua excelência e significado, mas porque Milton a gravou no Clube da Esquina 2. Composta por Violeta em 1953, essa música fez parte da peça produzida por Leonard Bernstein para inauguração do "John F. Kennedy Center for the Performing Arts", em 1971.
"Paixão e Fé", composta por Tavinho Moura e Fernando Brant ficou nacionalmente conhecida na voz de Milton. Aqui, Monica faz jus à interpretação do mineiro e o piano de André a povoa com um brilho especial, num arranjo sensacional.
"Milagres dos Peixes", de Milton e Fernando Brant foi uma dessas canções que a cretina censura da ditadura proibiu de ser executada. O jeito foi inseri-la no disco, na ocasião do seu lançamento, sem a letra. Depois que a ditadura acabou, pudemos conhecer a letra e percebemos que a poesia era apenas um canto de amor de amor ao próximo, coisa da qual, certamente, os obtusos censores não entendiam. O sax de Teco Cardoso, aliado à voz de Monica e ao piano de André dá o tom certo e preciso para a bela canção.
"Credo", de Tavinho Moura e Fernando Brand, é a faixa seguinte. Canção forte, de esperança em dias melhores, é acrescida de uma citação à clássica San Vicente que lhe dá o devido ímpeto final em mais um grande trabalho vocal e instrumental da dupla.
"Paula e Bebeto" de Milton e Caetano Veloso, fecham esse momento precioso da música popular brasileira. Quase nada a acrescentar aqui à excelência do disco como um todo. A mensagem universal da música ("Qualquer maneira de amor vale a pena") hoje é quase um mantra que se espalhou por aí e deve ter produzido frutos muito bons.
Encerro com uma boa notícia: o disco pode ser ouvido - e assistido como um show particular! - na íntegra no YouTube:  https://www.youtube.com/watch?v=af1cJBh4pj0 e, claro, está à venda por aí nos bons sites do ramo.

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