Por Ronaldo Faria
Carta amarelada pelo tempo, ausência de vento e luar. Na esquina, um violão dedilha a urdida poesia que sai pela noite a voar. Há canção e unção para fazer a criança ninar. Na varanda que se debruça na rua, um casal troca olhares e tece juras para quando o tempo não mais tardar. De malas prontas, a saudade se prepara para viajar. Há um pedaço de beijo jogado ao lado dos lábios, um abraço largado feito fado e um passo perdido no chão ensanguentado da dor. A tudo isso chama-se amor. Uma receita de condimentos e ervas que suam à panela gelada para no olfato exalar lembranças das crianças que nunca fomos. No forno, queimando entre chama e carvão, uma receita de volta escrita feito oração.
Coloque uma pitada de segredo sobre o degredo que a partida do amor faz e fará.
Encha de canções que marcaram,
lugares que ficaram e madrugadas que se achegaram.
Cozinhe tudo em fogo brando,
sem a panela fechar. A inexata tristeza far-se-á queimar.
Polvilhe a massa do passado
com recordações felizes. Deixe descansar num canto do coração.
Não esqueça de mexer sempre com
grãos de fotos, cartas, frases, cheiros e sentidos.
Frite qualquer pedaço de
rancor no óleo quente. Deixe queimar de propósito e se desfaça de todo ele.
Lave a frigideira.
Corte bem pequeno o desejo de
voltar. Ponha tudo num pote separado e rotule para, no futuro, saber se ainda quer
utilizar.
Descasque com faca afiada o
que não foi bom. Em tiras curtinhas. Mas, cuidado para nessa tarefa não se
cortar.
Pegue um pouco de pimenta,
daquelas que aquecem os sonhos, e jogue dentro da panela que agora estará em
ebulição.
Tampe e espere o tempo que
for. Quando, lá fora, a primeira chuva chegar, vá ao jardim e colha lírios,
rosas e jasmim.
Decore o prato com exatidão e
destreza. Ponha uma toalha florida à mesa. Não esqueça o vinho e a sobremesa.
Vire tudo o que está na panela
numa tigela branca e reluzente. Daí, saiba, há de voltar tudo o que estava
ausente.
Depois, ao ouvir a amada (ou o
amado de fato), abra a porta devagar, respire fundo, erga os olhos, estique os
braços para um abraço apertado e deixe a vida entrar.
E, claro, bom apetite ao que vier e restar...