Por Ronaldo Faria
No mar as ondas brincam de
coração, a ir e vir como o sangue que bombeia sem parar. No que há de fátuo, o
fato incontestável de um dia ser, nem que em sonhos múltiplos e mutilados,
calados, castrados, cansados de andanças sem ruas a caminhar, sem danças a
rodar nos salões.
Embriagado de si mesmo, a
brincar de cavaleiro solitário, o homem tropica e cai diante da bica seca que
enche as bocas aflitas. Sem rumo, sem prumo, no devaneio que lhe acolhe em cada
noite o travesseiro e o leva a sonhos loucos e cadafalsos, se vê só e sem ter
porque viver. Do seu lado, a filha de cinzas o espera a olhar quieta com os
olhos de DNA. “Ao menos num lugar de carinho poderei aportar”, diz pensar.
No asfalto sem vasto devaneio
a viajar, o calor sobe telúrico e condensa no seu corpo o que resta de ácido
úrico. O copo, quente e seco, sem bolhas a traduzirem o seu torpor, se esquece
de ser vidro ou algo mais. O único abrigo no antigo peito do amigo já não há. O
sol expulso por aqui talvez agora brilhe em Bagdá. Num lugar próximo os pais
tentam colocar a cria a nanar. Melhor não tê-los, descobrir-se-á mais tarde,
quando for tarde demais para se descobrir. Na curva glicêmica, um lugar de
morte e paz. No mais, loucuras que certamente incriminam o cardeal primaz. Nalgum
lugar, de muito tempo atrás, os maltrapilhos do amor buscam apenas vestes para
seus corpos em pó e andrajos.
II
O amor e Laurinha na praia. As
duas e crianças mais, entre os raios que o sol balança nos ventos da brisa. Corpos
a buscarem um tanto de areia para os pés pisarem na quentura que o universo
mistura entre esperança e verso. Ao longe, o homem ouve Rashid e a batida do rap.
Na esquina, o casal se arrepia com o pio da coruja que se fez despertar com a
sirene do carro de polícia. Certamente, na mente que agoniza em além-mar, o ausente
sente o redescobrir da imaginação que exorciza. Na vida que se abre defronte de
duas ruas, a vazante que derreia num congá acima das cabeças. Do alto, um raio
brinca de alumiar o céu e desce para a terra em eletricidade que adormecerá a
cidade, sem luz. Numa viagem própria, apropriada de si mesma, a vocalizar e verbalizar
o silêncio, a insignificante orgia que se acaba em desmazelo. No colo da
moradora de rua, a criança recém-nascida espera um pouco de zelo.
III
A regar um jardim seco e sem
flores ou folhas mortas, sem plantas sequer, o homem sonha que a mulher que se esgueira
em si mesma consiga romper seus grilhões e senões. Temporãos, os ínfimos toques
de um dedilhar equânime de dois dedos se desvencilha da vida e encilha um
cavalo para cavalgar por qualquer e ínfimo lugar. Nas patas que pranteiam os pântanos
onde as sensações surgem num minuto atrás, o vento rompe a pele que foi feita
para se beijar. Certamente no canto de um cântico milenar haverá um luar onde a
esfera branca se tornará escuridão a tornear os corpos que se enroscam em
desejos que esperam um único dia para rebrotar. A regar o jardim insólito e
sórdido, o homem deixa se molhar. Quem sabe ele molhado não fará o único botão
do lugar nascer? Camaleão na boca do leão do tempo, o resto que resta a se
adequar na madrugada que pranteia a paixão afogada em oceanos de cada um.
IV
O bafo abafado, travestido e
tragado se imiscui nas entranhas estranhas da solidão. E traz sonhos bisonhos,
rostos risonhos, lábios famintos e famélicos, retintos à espera da saliva que
reviverá o destino em pouca sina. De um lado, o sobrevivente. Do outro, a
menina. Submissos aos signos, sexos e próprios tropeços. No horário marcado,
tomar o remédio. Que tédio... Aos píncaros pródigos do nada, um oceano todo a
se nadar. Seja o porto escondido aqui ou acolá. No cais, a prostituta, o
marinheiro e o padre loquaz viram uma verborragia sem salamaleques ou frágeis perfumes
a rolar na brisa que pernoita entre barcos afundados e barafundas do jamais...
o adeus, como disse o poeta em nova geração, fica para nunca mais.
V
Retornar dias, meses e anos.
Coisa difícil de rever. O tempo, saibam, não sai esbugalhado dos olhos cheios
de lágrimas e louvor. Nem é oração que se diz ao alhures de alguém. O que se
foi, mesmo logo ali na frente de nós, se foi. No momento que brinca de vento,
que não se estoca nem no estoicismo do mais crente amante, o alento de que logo
mais nada será. Nas galhardias vadias que se embaralham a cada dia, a soberania
tardia do nunca mais se fará metonímia (seja lá o que isso for). Talvez um
risco de lembrança que dança ainda criança nos últimos e ínfimos neurônios que permeiam
doses alcoólicas e utópicas a crer se tornar dono do trono que há muito foi
destronado. Calado, a colidir com o desejo e a ladeira abaixo, o poeta volta a
Olinda, brinca em Caraíva, aporta em Porto de Galinhas, vislumbra um Itacaré no
meio do Trancoso, retorna ao Rio que um janeiro qualquer joga as águas da
Cascatinha para correr trilhos de trem quentes e cheios de medo. No bloco do
recordar, sanfona bisonha se faz mistura de cuíca, pandeiro e ganzá. Méier,
Madureira, Leblon que se esgueira. Desde menino misturado entre o Nordeste e a “cidade
grande”, no cheiro do lampião de querosene e da luz que a eletricidade tudo
tenta dar, vai-se o tempo, riscado de momentos, olhares, lamentos, unguentos,
perdas e descobertas. Alguma fresta nas janelas, talvez. E se não houver, tanto
faz. No cérebro que finda em si mesmo mil rimas e poesias métricas ou milimétricas,
a mulher que surge e se insurge para arrancar a raiz nunca plantada. A emoção,
púbere, fatiada. A tragédia que a comédia dá. A comédia que a tragédia faz. No
ar, as notas e acordes acordam para, com certeza, não deixarem o tempo adormecer...
VI
Amigo, verbo fatídico.
Tragicômico entre um ou outro trago. Canção de quatro. No amargo da cachaça ou
do tremoço que o português vendeu estragado. Ao redor, um monte de gente que
vomita aspargos e come grama pisada pelo gado. “Vai uma bagaceira aí?” A resposta
na mente é “tome cuidado com essa caneta enlouquecida na conta”. Nas ruas que
se aprumam perto, o desafeto descrê que o feto natimorto não fede igual ao
chulé do Mané (não se leia aqui o Garrincha e suas pernas tortas). Isso é fato
concreto. Há uma ladeira de eira e beira, janelas que não fecham nem com
tramela, um quintal onde uma cabeça de boi se mistura a pichações e senões que
batem de antemão num quem sabe e talvez. Nunca serão. Porque vidas não se
escrevem com sonhos, não se entranham nas bucólicas saudades e, amiúde,
viscerais e madrigais embustes, se enroscam nas roscas e rosas que desabrocham
de quintais e padarias.
VII
Cantarolar e rodar, gargalhar
feito doido, dedilhar sem dedos, cortados pela tristeza. Praguejar igual a um
meliante arfante de um amor sem fim, entre o cheiro do jasmim e o vintém chinfrim.
Percorrer e correr com medo do corrimão que se dá de antemão para quem ama
demais. Frigir ovos de óvulos nunca fecundados, cacos de um copo dado pelo filho,
fulgidos lumiares nunca vistos ou extintos. Com cortes na mão, melhor parar de
delirar.