Por Ronaldo Faria
“Samba é pra levantar o
astral. Senão, de que vale bailar na avenida vazia, sem vida, sem a morena a
rebolar?”
A voz de Genovésio na mesa do
bar, cercada de garrafas vazias de cerveja por todos os lados, ecoa na viela
que se entorta na subida do Morro da Pedra Caída. Defronte ao boteco, para
alguns apenas uma birosca a mais, o barraco de Jovelina, sem ter sequer pérolas
negras, está iluminado. Malfadado seja, pois, o tempo que desagua na estrada de
pó e terra entre ruelas pequenas e cheias de gatos que iluminam a madrugada ou
servem de tamborim no Carnaval.
“Seu Juvenal, mestre dos
petiscos de além-mar, traz mais outras Brahmas pra gente esvaziar. E anota pra
depois de amanhã.”
O pedido de Genovésio é logo
atendido. E alguém puxa um cavaquinho, outro saca uma caixa de fósforos e mais alguém
surge com o pandeiro. “Agora fodeu”, pensou o trabalhador braçal que, logo
perto, desperto, queria poder dormir. Aos poucos, vozes entoarão forte o samba
esquecido há muito, sentirão saudades do poeta que se foi, brincarão de rimas e
sustenidos para ver aquilo que o universo fora do verso não dá. Quem sabe um
bloco não será formado logo depois, no após que o apocalipse da vida dá.
“Alguém sabe que horas são?
Para! Pode parar! Aqui ninguém vai saber. A vida é só uma. O pagode não pode
esperar ou se esmerar no dia raiar.”
Malandro no mundo da ilusão
que só a vida dá, Genovésio puxa um samba novo e outro antigo. Antípoda de si mesmo,
a esmo, como quem toca banjo sem saber sequer dedilhar, levanta o dedo e manda
descer mais litrões. “Se é pra morrer logo ali, vivamos as ilusões que são o
negror da noite que nunca mais vai rebrilhar igual.” Num ou noutro barraco, desses
que na primeira chuva forte pode descer o asfalto, o som reverbera feito gérbera
que cresce em qualquer lugar.
“Seu Juvenal, fugitivo de Portugal
pra descobrir aqui que o melhor é sair de onde o povo se acha mais do que é, manda
uma porção de calabresa pra forrar.”
Na esquina que pouco existe
numa favela, o pai de santo deixa a oferenda para Exu e Pomba-Gira. Marafo e
frango cortado no pescoço com sangue a esvair, farofa e vela, esperança do
futuro melhor, e o destino entra em desatino no perder das raras horas. “Oxalá,
meu santo maior, meu Omolu que me dará a morte tranquila, minha Iansã que derrubará
as águas para lavar o mal, sejam bem-vindos”, pensou Genovésio. Ali perto, no
alto de onde o morro vê o mundo girar, um casal se enrosca na cama entre
orgasmos e magros rebentos. Os ventos servem apenas para envolver o teatro do
acaso.
“Vamos lá, moçada, faltam as
dez últimas saideiras antes da derradeira. Vamos deixar rolar que sexta-feira é
só uma vez em cada sete dias.”
Genovésio, o inverso do verso
nunca cantado na escola de samba que não sai do grupo pra subir para algum
grupo que está longe do sambódromo entrar, solta o verbo. E vem a saudade da
índia do Pará, com seus cabelos lisos e negros, que se refugia no asfalto do
subúrbio e sabe-se lá se viva está. Onde vive é difícil até para ele voltar à estação
de um trem que morre do lado da avenida proscrita em seus cubra-libres e gins
com tônica. Tempos de amores mil, telefonemas em fonemas, bichos de pelúcia,
batas, quando ainda era preciso sinal pra discar, soberba do passado perdido e
urdido, desses ardidos que nem a pimenta que se derrama na linguiça dá. Nalgum
lugar existirão outros lábios de mel ou fel.
“Que porra é essa que parece
brilhar no céu? Quem chamou o sol pra ele acordar? Puta que pariu, porque a vida
não nos deixa viver? Por quê?”
Revoltado, Genovésio bate
forte na mesa de metal quase a cair de tanto enferrujada. Seu companheiro de
birita se irrita e diz apenas: “Genê, dá pra segurar a onda e a loucura? A cura
está aqui na mesa. Quer destruir a receita do doutor da ilusão que ao menos
deixa a gente esquecer que tem outro dia pra acordar e viver?” Genovésio
entende o recado e cai na real. É preciso abrir a roda pra deixar o coração
participar. Levanta o dedo, pede outra e olha para o céu em cores a derramar e
se redescobrir na madrugada fria que virá se aquecer. Ao redor, um cachorro
urina no poste, o ajudante de padeiro desce o morro para cumprir seu labor, uma
sirene de carro de polícia vem atender outro defunto perfurado de balas a
descansar no asfalto. O mundo permanece igual. Tal e qual.
“Ô português, obrigado por nos
deixar sonhar! E viva a Light que deixou a geladeira gelar.”
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