Por Ronaldo Faria
O som rola enrolado na voz do cantor e se arrasta num arrasta-pé que
viaja na noite fria e famélica de emoções que brotam no coração que espera o
São João. Quando virá? De fato chegará? Quem sou eu para prever?
O homem quase garoto, garoto
ainda menino, infante e libertino, olha sua amada a rodopiar na fogueira, livre
e tardia, com os seios a balançarem na roupa de chita e colorida feito o
pássaro que passeia no céu e proseia com a solidão para ela acabar.
Depois a vê dançar num
terreiro largado em Pernambuco como fosse um capuco daqueles que a criança carrega
no carro de boi de madeira que se esgueira na terra carcomida da seca. E vai a
rumar sem prumo àquilo que o futuro nem sabe se um dia existirá.
Agora, como uma rês que se afugenta
naquilo que nem ela sabe para onde irá, longe de seu rebanho, o homem, hominídeo
há milhares de anos, está desamparado, esquartejado, vivo apenas por memórias
insanas e bêbadas, coisas desconjuradas em si.
E o frio? Ele apraz? Se desfaz?
Viaja como andorinha em busca do novo ninho, com uma cadela a vociferar? Quem
poderá responder? O rio defronte da fazenda matou o avô que tirava bicho de pé
do neto sob a luz do lampião que tem cheiro de querosene e canção.
Agora eu vejo o pequeno poço
que sobrevivia à seca e trazia no lombo de um jumento a água para o mínimo da
casa fazer. Vejo ainda o mandacaru que nunca deixou de brotar e sinto o cheiro que
invade os poucos neurônios que teimam em ficar e se interligar.
Ouço também o enxame de abelhas
africanas a passar milímetros acima da morte certa. Um zumbir ou zunir em suas
asas negras e rápidas. Ávido de algo ser, o menino nunca esquecerá essa cena obscena
e cenográfica, nunca captada em lentes ou mesmo sofreguidão.
Sinto o cheiro de farinha na casa
onde um tacho quente a faz virar comida e percorro trilhas de cruzes de
anjinhos nunca nascidos. Tudo como a descoberta incerta de brincadeiras de
alguém que acredita ser um defunto de férias pronto para somente descansar
enfim.
Na dança que se encanta na
noite sem lua, o aluar de uma saudade que nunca findará. E o pasto esquecido no
quarto do milho colhido e seco. A certeza incerta de uma marcha que vai de um
lugar a outro qualquer sem nem saber se existirá quando a lucidez voltar.
Hoje, agora, sem aforismo e
festa, apenas a incerta certeza de que o que se foi nunca voltará. Sem odores e
visões. Tudo apenas como quânticas alucinações em insana lucidez. Com certeza
de que uma vela acesa na capela conseguirá em si virar algo que valha lembrar.